Não há nenhum país da Europa onde se pague o ensino obrigatório
Passos Coelho indicou à TVI que o financiamento da educação poderá ser mais repartido entre os cidadãos e o Estado. Está aberta a porta para que os pais sejam chamados a pagar pelo ensino obrigatório?
Não há nenhum país da Europa a cobrar pelo ensino obrigatório, que na maioria dos casos se prolonga por nove ou 10 anos. Mas na quarta-feira, numa entrevista à TVI, o primeiro-ministro Passos Coelho admitiu que se possa criar em Portugal um sistema de financiamento da educação "mais repartido" entre os cidadãos e o Estado. Ao fim da tarde de ontem, o Ministério da Educação e Ciência garantiu, contudo, ao PÚBLICO que "o Governo nunca pôs em causa a gratuitidade da escolaridade obrigatória". O que significará então um financiamento "mais repartido"?
"A única forma dessa repartição ser feita é através do pagamento de propinas. Não vejo outra, já que os serviços prestados na escolaridade obrigatória funcionam como um todo. Só que isso não é possível do ponto de vista legal", comentou Adelino Calado, da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas. "O que o primeiro-ministro está a dizer é que os cidadãos vão ter de pagar pela formação dos seus filhos, que no ensino obrigatório tem sido gratuita. É a única interpretação possível", confirma Manuel Pereira, presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares.
Para este responsável, a declaração de Passos Coelho "abre portas, de uma forma encapotada" a que a educação volte a ser um privilégio só ao alcance de quem tenha posses. E isto numa altura em que "muitas famílias já nem conseguem garantir o sustento diário", frisou.
"Só não tenho mais receio porque a Constituição estabelece que o ensino obrigatório é universal e gratuito. Mas não deixo de ficar assustado e penso que o primeiro-ministro deveria afastar em definitivo esta nuvem que caiu agora sobre a escolaridade obrigatória", diz.
Manuel Pereira frisa também que a escolaridade obrigatória "é um todo, onde se incluem os transportes, a alimentação, os manuais escolares. Não sei o que se pode tirar deste universo para ser pago". Lembra, a propósito, que a necessidade de o Estado assegurar transporte para as escolas se tornou agora maior com a criação dos centros escolares e o fecho de centenas de escolas do 1.º ciclo, já que "milhares crianças têm de se deslocar para fora das suas localidades de residência".
Desde 2011, e contando já com os cortes previstos para 2013, a redução das verbas para o ensino básico e secundário é de cerca de cerca de 1,5 mil milhões de euros. Na entrevista à TVI, quando se chegou ao tema do corte adicional de quatro mil milhões de euros na despesa pública, anunciado pelo ministro das Finanças, a jornalista Judite Sousa perguntou a Passos Coelho se iríamos ter de pagar pelas escolas públicas à semelhança do que já acontece com alguns serviços do Serviço Nacional de Saúde. A resposta do primeiro-ministro foi a seguinte: "Temos uma Constituição que trata o esforço do lado da Educação de uma forma diferente do esforço do lado da Saúde. Na área da Educação, temos alguma margem de liberdade para poder ter um sistema de financiamento mais repartido entre os cidadãos e a parte fiscal directa que é assumida pelo Estado."
Durante o dia de ontem foi noticiado erradamente que Passos Coelho tinha afirmado na entrevista que a Constituição "não trava mudanças no financiamento do sistema educativo, que pode assim passar a ser semipúblico com a introdução de co-pagamentos nos níveis de ensino que hoje são gratuitos".
Segundo dados da rede europeia Eurydice apresentados na sua última publicação sobre os sistemas educativos europeus, o ensino básico e secundário é gratuito em todos os países da União Europeia e a tendência é até a de alargar esta gratuitidade a níveis não abrangidos pela escolaridade obrigatória, como é o caso do pré-escolar.
Portugal é um dos três países da UE que tem agora um maior tempo de escolaridade obrigatória - 12 anos. O alargamento de nove para 12 anos foi aprovado em 2009. Este ano chegou ao secundário a primeira vaga de jovens já abrangidos por esta extensão.
Pais já financiam escolas
Rui Martins, dirigente da Confederação Nacional Independente de Pais e Encarregados de Educação, diz que simplesmente não percebe as palavras do primeiro-ministro. "Não há margem de manobra para uma maior participação dos pais no financiamento da educação. Os pais já financiam uma parte", diz. Como assim? Rui Martins explica: pagam manuais, refeições e, em tempos de crise, são cada vez mais chamados a "contribuir com bens essenciais que os orçamentos que as escolas têm" não suportam - "Papel higiénico, por exemplo. Há várias escolas no país a pedir aos pais para levarem papel higiénico."
Para Rui Martins, o Governo está "a atacar a escola pública". E a convicção deste encarregado de educação não se prende apenas com as intenções relacionadas com os futuros cortes. "Já se aumentou o número de crianças por turma, já se diminuiu o número de auxiliares... isso já é atacar a escola pública."
Sem nada ter sido ainda decretado quando à repartição do financiamento, Adelino Calado, que é director do agrupamento de escolas de Carcavelos, confirma que "os pais já estão, neste momento, a ajudar a financiar as escolas". Isto acontece porque, explica, as escolas estão a ter "uma série de limitações" para adquirir materiais necessários ao seu funcionamento, como por exemplo papel para fotocópias.
Estas dificuldades derivam não de problemas de orçamento, mas sim de uma série de "obrigações legais" relacionadas com a central de compras do Estado, a que as escolas têm de recorrer para as suas aquisições. Como não estão a conseguir realizá-las, o mais provável é que a taxa de execução dos seus orçamentos seja este ano inferior. Ou seja, acrescenta Adelino Calado, vai traduzir-se para o Estado numa "poupança significativa", já que as verbas não gastas terão de ser devolvidas pelas escolas. com A.S.