Antonio Campos desce do seu quarto de hotel, na Avenida Atlântica. Só daqui a semanas partirá para Lisboa, onde será o homenageado do festival Córtex (28 de Novembro a 2 de Dezembro, em Sintra), com curtas-metragens como Puberty (feita aos 13 anos), Buy it Now, The Last 15 e My Adventures in Ladies' Under Garments, 4th Floor (além de uma masterclass onde falará desses seus primeiros trabalhos e da Borderline Films, a produtora que criou com Josh Mond e Sean Durkin).
Aqui no Rio, Antonio apresentou Simon Killer, sua segunda longa-metragem, no Festival Internacional de Cinema, e suou para falar português. É filho de um brasileiro que há mais de 40 anos anos foi viver para Nova Iorque como correspondente, Lucas Mendes, apresentador do programa Manhattan Connection. Antonio nasceu em Manhattan e nunca viveu no Brasil. A mãe, Rose Ganguzza, é americana e produtora de cinema. Lucas e Rose estavam na apresentação carioca de Simon Killer, mas não era como se António estivesse em casa. O Rio não é a sua segunda casa. Por isso marcámos no átrio do hotel. Ele mal conhece a cidade.
"O momento em que sabemos que conhecemos uma cidade é quando alguém nos pára na rua e sabemos dar direcções", diz ele, em nova-iorquês, quando atravessamos a Avenida Atlântica até ao calçadão. O plano é caminhar na direcção do Forte de Copacabana, quase toda a baía. Falar e andar, com a cidade a vir na nossa direcção, ou nós na dela.
"Eu sei dar direcções em Nova Iorque e Paris. Em mais lado nenhum." No Brasil, a cidade que conhece melhor é Belo Horizonte. O pai tem raízes mineiras, há lá uma casa na montanha com a sauna que a família construiu. A família Mendes - que inclui o poeta Murilo Mendes (1901-1975), tio de Lucas, e portanto, tio-avô de Antonio - tem a mania das saunas.
A primeira longa de Antonio, Afterschool, passa-se entre estudantes no interior do estado de Nova Iorque. Simon Killer foi feito em Paris. "Sempre vivi em Nova Iorque até mudar para Paris, aos 22 anos, mas nunca fiz um filme em Nova Iorque. É a cidade que conheço melhor, então para fazer um filme lá tem de ser muito especial." Em Paris viveu uns meses, depois mais uns meses para fazer a segunda longa. "E havia uma fase em que ia a Paris regularmente."
No calçadão é a hora antes do poente, centenas a caminharem entre o Leme e o Forte, colados à areia, ondas ao fundo. "Não gosto de areia. Gosto de olhar para ela, e gosto de entrar na água, mas se pudesse saltava a parte de tocar na areia."
Palidez e entusiasmo
Antonio é um daqueles prodígios que aos 13 já fazia filmes. Fez e devorou cinema, uma adolescência mais dentro que fora, mais no escuro que no claro. E tem essa palidez, e esse entusiasmo, quando fala de cinema. "Os meus parceiros [na produtora] podem passar oito horas na praia. Eu gosto do Rio, mas estou aqui há quatro dias e só hoje toquei na areia."
Estamos a chegar aquele ponto em que vai aparecer o Copacabana Palace. Se algum Rio pode ser familiar a Antonio, é este. "Para mim, o Rio era Copa. O meu pai e a minha mãe vinham e ficavam no Copa. A minha mãe fazia o meu pai ficar lá dois dias, antes de ir para Minas Gerais." O Copacabana Palace, na memória de Antonio, era "grandes pequenos almoços" e "as raparigas na piscina".
Lá vai o Copa, já atrás das nossas costas. O pôr-do-sol cheira a fritos, a areia está parda, mas há sempre namorados.
Nas férias brasileiras destes Mendes, o Rio era a paragem entre Nova Iorque e Belo Horizonte. A memória principal de Antonio é a da casa do avô em Belo Horizonte, com a família à mesa. "Era uma sala de jantar linda, uma casa com muita personalidade." A sauna fazia-se ao fim-de-semana, na montanha. "Primeiro sauna, e depois uma grande feijoada. E nós vínhamos só uma vez por ano, então toda a família se juntava. Foi lá que me embebedei a primeira vez, aos 16 anos, com os meus primos."
Agora o calçadão está tomado por três modelos, em pose para o fotógrafo. Copacabana é todo um palco. Mas se falarmos das ruas de dentro, Antonio vai ficar perdido. Nunca pensou passar aqui um mês que fosse, mergulhar na cidade? "Quero fazer isso, mas não parei de trabalhar nos últimos cinco anos. As minhas férias são viagens a festivais. Se eu não trabalho sinto-me estranho. Então, quero vir ao Brasil mas quero que haja uma razão, um projecto. Gostava de passar uns seis meses. Seria a história do meu pai, e da minha família, e de mim, sendo brasileiro, meio brasileiro, não-brasileiro."
Porque nasceu e cresceu em Nova Iorque, mas o que se passava em casa "era muito latino", a começar pelo pai. "Ele falava sempre em português comigo. Sábado tornou-se mesmo o jantar do português. Só se podia falar português. A minha mãe fala português fluente, aprendeu na escola, viveu em Porto Alegre. O marido anterior da minha mãe também era brasileiro."
Agora cheira a erva, aquilo a que os brasileiros chamam baseado. E barracas de espigas de milho cozidas, um palco a ser montado, vendedores ambulantes, ciclistas.
A propósito de Paris falamos de Woody Allen. "Ele filma sempre da mesma forma todos os lugares." Essa Paris não tem nada a ver com a Paris nocturna e claustrofóbica de Simon Killer. "Eu estava interessado na arquitectura de Paris, em Pigalle, talvez uma visão de Pigalle do Georges Simenon. A polícia não se importa com Pigalle. Os franceses vão dizer que a prostituição está na rua, mas eu estive dentro dos bares e sei como funciona."
Na praia, os jogadores de vólei vão entrar pela noite. Já Antonio podia passar uma noite inteira a falar de Georges Simenon. Leu-o metodicamente, um livro atrás do outro. Quando algo lhe interessa é compulsivo. O cinema brasileiro nunca lhe interessou? "Não tenho grande relação com ele. Mais com o cinema europeu contemporâneo e cinema dos anos 70." Se lhe pedirem que nomeie um filme sobre o Rio, vai escolher "Notorious, de Hitchcock.
Entre rodagens e festivais, que mais faz? "Escrevo e produzo argumentos dos meus amigos. Na escola via dois, três filmes por dia. Agora se vir um a cada dois dias já é muito. O processo de fazer filmes tornou-se mais excitante do que ver filmes. Chegar ao momento em que estou a fazer. Em que tudo o que estou a pensar é o que está a acontecer, em que as minhas decisões têm uma consequência imediata. Escrever é solitário, cerebral. Eu só quero chegar ao ponto em que estou a fazer."
E parte sempre de uma história. "Preciso de filmar em volta de algo para construir tensão. Em Simon..., é uma trama claustrofóbica, eu queria que tudo se passasse na cabeça dele. Ele encontra o seu objectivo quando encontra aquela rapariga [prostituta de Pigalle], e a câmara segue isso. São as personagens que motivam tudo."
Dias antes de Simon Killer passar no Rio, João Botelho apresentara no festival o seu Filme do Desassossego e defendera que "histórias são coisas do século XIX". Comentário de Antonio: "Um filme sem um fundo narrativo desmorona-se. A minha mãe queria levar-me para Hollywood e o meu pai queria levar-me para filmes esquisitos em que nada acontecia. Algures no meio encontrei algo. Percebo a gramática dos dois."
Traduzindo isto em nomes - esse meio em que ele se acha confortável - dá nisto: Michael Haneke, Paul Thomas Anderson, Bruno Dumond. Mas também O Deserto Vermelho, de Antonioni, especificamente O Deserto Vermelho. Também Bergman. E, destacado, David Lynch: "A coisa mais perto de ver um pesadelo no cinema. De viver algo realmente único."
Já é noite, e já invertemos a caminhada, estamos a fazer a baía na direcção do Leme. Se lhe perguntassem o que gostaria de comer, Antonio responderia em carioquês: coxinha. "A primeira coisa que faço quando chego ao Rio é comer coxinha. Comer e beber são as boas partes de estar fora de casa. "Não gosto muito de viajar." Mas saindo do Rio vai fazer Nova Iorque-Londres- Chicago-Filadélfia-Los Angeles-Lisboa. Mora em Brooklyn (Williamsburg), com a namorada, sua antiga vizinha. O próximo filme, sim, está decidido, será em Nova Iorque.
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