Era um lugar dedicado à arte, às experiências, à subversão, pelo que a Factory era o lugar perfeito para os Velvet Underground, escrevia John Cale, co-fundador do grupo, na sua autobiografia (What's Welsh For Zen?) lançada no ano passado. É isso. O nome dos Velvet Underground haverá de estar sempre ligado a um tempo, a uma cidade e a um homem - a segunda metade dos anos 1960, quando a Nova Iorque boémia e artística pulsava na Factory, o espaço imaginado por Andy Warhol. E se existe um disco capaz de personificar, melhor do que qualquer outro, esse turbilhão criativo ele é The Velvet Underground & Nico, o "álbum da banana", como haveria de ficar conhecido, por causa da icónica capa da autoria de Warhol.
Haverá álbuns dos Beatles, Stones, Dylan, Cohen ou Doors, tudo nomes mais consensuais do que os Velvet, que figurarão na lista dos mais influentes de sempre para a generalidade dos mortais. Mas para uma parcela muito significativa dos melómanos e para a mais estimulante música dos últimos trinta anos, esse álbum foi determinante enquanto farol, influência, símbolo. É por isso um acontecimento, é sempre um acontecimento, mais uma reedição por alturas do 45º aniversário do seu lançamento. Há formatos para todos os gostos. Existe uma deluxe edition com dois CDs (contendo o alinhamento do álbum, versões alternativas, sessões de estúdio e gravações até aqui inéditas de ensaios realizados na Factory em Janeiro de 1966), até uma caixa com seis CDs, versões mono e stereo do álbum, demos, CDs ao vivo, misturas alternativas e o álbum Chelsea Girl de Nico. Uma guloseima que mostra que ainda há coisas por descobrir acerca de um dos álbuns mais marcantes de sempre.
Sem ele não teria havido David Bowie, Stooges, Can, Roxy Music, pelo menos da forma como os conhecemos. É impossível pensar na Nova Iorque artística da segunda metade dos anos 1970, personificada na música pelos Talking Heads, Television ou Patti Smith, sem passar por este disco. É difícil imaginar o punk e o pós-punk simbolizado pelos Sex Pistols e Clash ou pelos Joy Division e Echo & The Bunnymen sem vislumbrar a silhueta desse álbum. É impraticável não vislumbrar esse espectro no melhor rock do final dos anos 1980 e início dos anos 1990 (Sonic Youth, My Bloody Valentine) ou no renascimento rock impulsionado, nos anos 2000, por Strokes ou Interpol. Como é difícil acordar num domingo de manhã solarengo sem pensar em Sunday morning.
Algumas notas celestiais, uma voz de hippie andrógina, uma balada envolvente, uma luz transparente, uma canção delicada. Essa canção, que saiu em single antes do álbum, é viciante, a aparente antítese de uma tripe ao inferno. Mas depois dessa canção, que abre o álbum de estreia dos Velvet, nada parece normal. Há a voz de Lou Reed, espécie de vampiro cantante que seduz as mais belas melodias em I'm waiting for the man ou Heroin. Existe o contracanto espectral e cândido da loira Nico em Femme fatale, I'll be your mirror ou All tomorrow's parties. Ouvem-se as mantras espaçosas impostas pelo piano ou pelo violino de John Cale em The black angel's death song, e as guitarras ruidosas em estado de putrefacção em Venus in furs.
Pela primeira vez uma banda soava niilista, ou parecendo provir do lado errado dos sonhos psicadélicos, com qualquer coisa de transcendente. É um disco onde tudo é obscuro, extremo, tóxico, desencantado, mais próximo das ideias percorridas pelos espíritos livre do jazz do que dos modelos mais convencionais do rock.
Esse lado mais primitivo e alienado pode ter sido diluído pela passagem do tempo, mas ainda está lá, imune às circunstâncias. É uma música intensa aquela que é proposta, seja quando as arestas parecem mais polidas, num registo de balada pop, ou deixadas em aberto, guiadas pelas descargas de energia.
Anomalia
O disco saiu em Março de 1967, em pleno "Verão do amor", e era uma anomalia desse tempo. Os Velvet não eram hippies, nem queriam nada com eles. As letras não tinham nada de All you need is love, preferindo abordar paranóias, heroína, sadomasoquismo, desejo, morte, o lado B dos anos 1960.
Também não havia longos e virtuosos solos de guitarra à Hendrix, apenas solos curtos e acordes básicos. E o visual era fora de época: todos de negro, óculos escuros, atitude distante. Claramente os hippies não gostavam deles. Quando tocaram em São Francisco, ao lado dos Jefferson Airplane e Frank Zappa, foram vaiados. Eram a banda certa, na cidade certa, na época errada.
A retórica da paz & amor, da meditação e do sexo livre, passava-lhes ao lado. Eles viviam e cantavam o submundo de Nova Iorque. Só podiam resultar em qualquer coisa de diferente. Tão distintos que nenhuma multinacional se veio a interessar. Em 1996 receberam uma nota da Columbia dizendo que ninguém no seu perfeito juízo se viria a importar com aquilo.
Tudo começou quando o galês John Cale conheceu Lou Reed em 1964, quando foi estudar música clássica para Nova Iorque. Cale já trabalhara com compositores das vanguardas como Cornelius Cardew e La Monte Young, mas também se interessava por rock e Reed era essa porta de entrada. Mais tarde haveriam de juntar-se-lhes o guitarrista Sterling Morrison e a baterista Moe Tucker, que mal sabia tocar. Em Dezembro de 1965 um grupo de boémios, liderado por Warhol, acabou por assistir a um concerto do grupo no Café Bizarre. Encantado pela prestação demoníaca dos quatro, Warhol felicitou-os, propôs que actuassem na Factory e sugeriu que integrassem a loira alemã Nico para cantar algumas canções.
A reputação de Warhol deu-lhes maior visibilidade, acabando a tocar na Factory. Enquanto Warhol apresentava slides e filmes e alguns bailarinos criavam performances com chicotes e cruzes, os Velvet tocavam uma música repleta de ruído e reverberação.
Apesar de creditado como produtor, Warhol pouco agiu sobre a música, cotando-se como o homem que lhes atribuiu o sentido de liberdade, a caução artística, a visibilidade mediática e uma capa icónica - uma das mais célebres de sempre. Ainda recentemente um juiz nova-iorquino indeferiu o processo levado a cabo por Lou Reed e John Cale contra a Fundação Warhol pela utilização da imagem da banana criada por Warhol. Os dois músicos invocavam licenciamento ilegal da imagem para utilização comercial indevida e enganosa para iPads e acessórios.
Aliás, as histórias que rodeiam esse álbum, e a vida do grupo que se viria a desintegrar em 1973, estão recheadas de contendas, não só entre os dois principais obreiros do grupo (Cale e Reed) como entre estes e o mundo exterior. O que é curioso é que quando o álbum saiu poucos deram por ele. Nos primeiros cinco anos foram vendidas 30 mil cópias, insuficiente para a época mas essencialmente pouco se pensarmos na sua influência posterior. Nem sempre é pelo sucesso comercial que se aquilata da ascendência de um disco. Um dia o músico e produtor Brian Eno afirmou, realçando o seu efeito, que poucos o terão comprado quando saiu, mas de entre todos os que o fizeram terão sido poucos os que não foram logo de seguida formar uma banda.
Ouvir um álbum destes, quase meio século depois, pode levar alguns a pensar em anacronismos. Mas é difícil encontrar um outro disco que tenha sobrevivido ao tempo de forma tão imparável. Não é uma peça triste de museu. É uma peça viva. Os Velvet foram, à sua maneira, a primeira banda "alternativa" do rock, colocando em causa os modelos normativos da época, ao mesmo tempo que construíram o seu próprio espaço. Não foram apenas o lado B dos anos 60. Com a sua acção, cantando o não visível, o não enunciado, a viscosidade do existir, tornaram-se também, à sua maneira, na banda sonora das últimas décadas do mundo contemporâneo.
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