O dia despertou carrancudo. Ricardo Lafuente e Ana Carvalho tinham avisado que não andariam debaixo de chuva a mapear casas devolutas na baixa do Porto, talvez por isso às 10h só Patrícia Barbosa e Luís Costa estivessem com eles no ponto de partida do Transparência HackDay.
Juntaram-se à volta de uma mesa numa pastelaria da praça da Liberdade. E logo ali dava para ver que o "hacker" — por de?nição alguém que trata de conhecer e mudar dispositivos, programas e redes de computadores — não tem de ser solitário e, de algum modo, malé?co. Era um casal de ar frágil e mente veloz e dois amigos com vontade de tornar a sociedade mais transparente, a democracia mais profunda.
Um par de consultores web, Cláudia Amorim, de 41 anos, e Victor Cardoso, de 40, criou a página electrónica “Geodevolutas”. Não querem caçar as 734 846 casas vagas que há no país — umas novas, outras antigas, umas óptimas, outras a cair. Querem chamar a atenção para o estado de abandono da cidade. “Este tipo de informação, num mapa, torna-se mais forte”, considera Ricardo.
O projecto está a arrancar. Têm de trabalhar até o nome porque o olhar não valida a de?nição legal de devoluta — prédio ou fracção vazia há um ano, sem facturação de água, gás, electricidade. As ideias saltam para cima da mesa, sem di?culdade. Casas esquecidas? Abandonadas? Tristes? Em Espanha há o blogue casastristes.org. Foi nele que se inspiraram para o site que foi apresentado no ?nal de Outubro, num workshop, e que, de repente, já tinha gente a assinalar casas em Braga, Viseu, Lisboa, Faro e Funchal.
Há um núcleo duro atrás do Transparência HackDay, que sábado se viveu no Porto e no próximo dia 1 de Dezembro se viverá em Lisboa. Estavam, diz Ana, cansados de ?car sentados a discutir. Queriam “sujar as mãos”. E “sujar as mãos”, para eles, é pôr “'software' livre ao serviço da cidadania”. Não se dedicam a quebrar códigos de segurança para pregar partidas. Preferem pegar em bases de dados de carácter público que amiúde existem apenas em bruto, e, através de "mashups" e infogra? as, tornam-nas mais claras. Há dois anos que os designers de "interface" Ricardo e Ana andam a trabalhar no Demo.cratica. O site, que já lhes consumiu horas in?ndas, tem duas partes: uma série de “ferramentas de extracção, análise e catalogação” de dados e um site que apresenta, de forma simples, informação sobre os deputados eleitos desde 1976 e as transcrições de cerca de 70% das sessões plenárias que decorreram na Assembleia da República.
Tiveram de converter as transcrições para um formato amigável. Já se divertem a fazer pesquisas. Por exemplo, a expressão “muito bem” aparece perto de 140 mil vezes. Os deputados tendem a fazê-lo com maior frequência nas situações mais tensas. Mas o objectivo é conquistar a memória do que se passou na casa da democracia, recuperar um tempo que nem Ricardo, com 28 anos, nem Ana, com 29, viveram. E generosamente partilhar essa possibilidade com quem deseja, como investigadores ou jornalistas ou simples cidadãos que, por exemplo, queiram saber o que se disse sobre determinado tema ou que participação teve certo deputado.
Na manhã de sábado desceram e subiram a rua Mouzinho da Silveira, que liga a Ribeira do Porto à estação de São Bento, a apontar casas abandonadas. De tarde, fecharam-se no Maus Hábitos com outros sete "hackers" a colocar informação, a falar de novos projectos, a trabalhar nos projectos em curso. Luís Costa, assessor de comunicação, de 25 anos, está com o Mila, um site sobre acessibilidades para pessoas com di?culdades motoras. Só faltou o engenheiro Nuno Moniz, de 25 anos, que lançou “O teu orçamento de estado”, no qual os contribuintes podem seguir o rasto dos impostos.