Tudo o que comemos a 50 km de Lisboa

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Helena Colaço Salazar

O movimento que defende que devemos comer produtos locais e da estação tem vindo a ganhar força. Em Nova Iorque pode não ser fácil, mas à volta de Lisboa há quase tudo. Será suficiente?

Cinquenta quilómetros - talvez um pouco mais, mas não muito. Será que conseguimos subsistir se decidirmos que só comemos alimentos produzidos num raio de 50 quilómetros em redor de Lisboa? A escolha da capital é apenas por razões práticas. A pergunta poderia aplicar-se a qualquer outra cidade - e é o que muita gente tem feito, de Londres a São Francisco.

Em inglês chamam-se locavores - são os defensores da ideia de que, para evitar a pegada ecológica causada pelo transporte de alimentos de países distantes, devemos tentar consumir, tanto quanto possível, o que cresce à nossa volta. Fala-se também em "quilómetro zero". Resultaria em Lisboa? O desafio foi tentar durante uma semana. E, entretanto, procurar perceber de onde vem a comida que consumimos e como é que ela chega à cidade.

Primeiro passo: o supermercado. Incursão muito rápida e um primeiro embate com a zona das frutas: abacaxi do Equador, maracujá da Colômbia, abacate do Peru, manga e marmelo de Espanha, lima, papaia de melão verde do Brasil, anona também espanhola, romã de Israel, laranja da África do Sul, kiwi do Chile, coco da Costa do Marfim.

Restam os dióspiros, que são de Portugal, tal como as clementinas, as maçãs (muitas variedades), algum limão e a pêra-rocha. As regiões não estão indicadas, mas sabemos que a pêra-rocha do Oeste é um produto da zona de Sintra, por isso parece seguro (a ideia não é ser fundamentalista, mas, tanto quanto possível, respeitar o limite de 50 quilómetros).

Espreitamos o frigorífico dos congelados e reparamos num pacote de ervilhas da Iglo Forever Food, tomando nota mental de ir ler sobre o projecto - mais tarde espreitamos o site e, de facto, há uma série de informações sobre tudo o que a Iglo faz para reduzir a pegada ecológica (os produtos são transportados apenas por via terrestre ou marítima e não por via aérea, por exemplo), mas neste momento isso não resolve o nosso problema dos 50 quilómetros.

Passamos para os ovos, que são da marca própria do supermercado, e que têm a indicação de serem "produzidos em gaiolas melhoradas" (uma exigência da legislação europeia). E, embora correndo o risco de partir algum, abrimos a caixa para tentar identificar a região. Se quisermos levar isto realmente a sério, é preciso saber ler o carimbo que está em cada ovo e que indica não só se são biológicos ou não, como se são de Portugal, a região, e até a exploração de onde vêm. Mas, como não sabemos a que número corresponde cada região, deixamos os ovos na prateleira.

Ao lado, estão outras caixas, estas de ovos biológicos da Casa do Aido, em São Pedro do Sul, distrito de Viseu. O site é óptimo, cheio de informação, e eram uma boa possibilidade, mas são 300 quilómetros. Vamos tentar conseguir melhor.

Sábado de manhã é dia de mercado biológico no Príncipe Real (Lisboa) e isso pode resolver vários problemas. A primeira paragem é a banca da Maria José Macedo, da Quinta do Poial. Aqui não há dúvidas. Conhecemos bem a quinta, ao pé de Azeitão, e os produtos são óptimos. Trazemos pimentos e grelos. Na banca da Ana Paula Moreira, ao lado, podemos comprar pão e, se quisermos esticar um pouco o limite dos 50 quilómetros, conseguimos levar ervilhas secas e grão-de-bico da Herdade de Carvalhoso, em Montemor-o-Novo (são 100 quilómetros).

E, de repente, vemos os ovos. São biológicos e do Casal dos Planetas, uma exploração em Castanheira do Ribatejo. A omolete com legumes do Poial está garantida. Procuramos o contacto e combinamos ir visitar o Casal dos Planetas.

Quem vive em Lisboa parece ter a vida muito facilitada comparada com Adam Gopnik. Explico: foi um capítulo do livro deste autor que escreve habitualmente para a revista The New Yorker que inspirou este artigo. Nele, Gopnik descreve os esforços para comer durante uma semana utilizando apenas produtos da região de Nova Iorque. Para isso recorre à ajuda do Just Food (www.justfood.org), uma organização que faz a ponte entre produtores e consumidores, para tentar comprar uma galinha. Vai parar ao Bronx, a um sítio chamado The Garden of Happiness (O Jardim da Felicidade) em plena reunião do comité para as galinhas do City Chicken Project, que apoia a exploração de galinhas poedeiras na zona de Nova Iorque, encorajando as pessoas a comer e a vender os ovos ("passar a dádiva", como eles dizem).

É hilariante a descrição que Gopnik faz da reunião, onde se discute "as situações existentes a nível de galinhas" e a "busca de novas oportunidades de ovos". Mas o mais complicado é mesmo comer uma galinha criada e abatida em Nova Iorque, porque este projecto destina-se apenas à produção de ovos e, se alguma galinha é vendida, é de forma mais ou menos clandestina. A coisa arranja-se para Gopnik, mas não sem algum esforço. A cena acaba com o autor a ser "expulso do Jardim da Felicidade", quando os seus interlocutores percebem que ele queria a galinha para a matar e comprar um exemplar num matadouro, aceitando que será certamente um animal criado fora da cidade (mas pelo menos abatido ali).

Gopnik tinha começado por pedir ajuda a uma conhecedora, que lhe disse que não seria difícil conseguir legumes das quintas em Staten Island e Brooklyn, mel produzido nos telhados da cidade e até ovos. Difícil seriam as outras proteínas. Por entre idas ao Central Park, com os filhos, em busca de plantas comestíveis, e reacções indignadas das crianças perante a hipótese de comer animais que passeavam no parque, como esquilos ou pombos, recorda como no passado Nova Iorque foi auto-suficiente a nível alimentar, uma situação que acabou no início do século XX, quando a cidade se tornou dependente das importações.

Decidimos também pedir conselhos a alguém que percebesse realmente do assunto - André Magalhães, um dos proprietários da Taberna da Rua das Flores, onde se consome, preferencialmente, produtos da zona de Lisboa. Ele dá algumas pistas. "Para queijo de cabra, ervas aromáticas, frutas de época, cogumelos selvagens, fala com o Adolfo Henriques, na Maçussa."

No dia seguinte estávamos a caminho da Maçussa, perto do Cartaxo (75 quilómetros de Lisboa, mas pareceu-nos aceitável), onde Adolfo produz o seu queijo chèvre. "Sim, há muita variedade de produtos à volta de Lisboa, mas se de repente a cidade ficasse isolada em pouco tempo morríamos à fome", diz-me. Ou seja, a variedade é grande, o problema é a quantidade. "Quando houve a greve dos camionistas, há uns anos, ao segundo dia os supermercados estavam com as prateleiras vazias." E se dantes os pequenos produtores enchiam os mercados municipais com os seus produtos, hoje "as pequenas lojas fecharam todas e há um grande envelhecimento". Parece que se todos os lisboetas decidissem comer local teríamos um problema de abastecimento.

"Antigamente toda a gente tinha uma pequena capoeira e podia-se comprar ovos ou galinhas", conta Adolfo. Mas depois as pessoas foram ouvindo dizer que não era permitido vender e "ficaram com medo". A pouco e pouco, as pequenas vendas do produtor ao consumidor foram-se reduzindo. É pena, diz, que muita gente não saiba que desde 2008 a legislação permite a venda de pequenas quantidades de produtos directamente ao consumidor final ou a estabelecimentos de comércio local que forneçam o consumidor final.

Depois de uns telefonemas a produtores amigos, chegamos à portaria do Diário da República - a 699/2008 de 20 de Julho. E, de facto, segundo esta portaria, é permitida a venda pelo produtor primário de pequenas quantidades de leite de vaca cru (até 50 litros por dia) ou carne de aves de capoeira e aves de caça de criação (excepto avestruzes), no máximo de 200 carcaças por semana, ou peças de caça selvagem (coelhos bravos, 10 por dia), ou ainda pequenas quantidades de ovos (350 por semana), mel (500 quilos por ano) e pescado (150 quilos por semana). Proibida é a venda de moluscos bivalves vivos. Se mais pessoas soubessem disto, diz Adolfo, a pequena economia local poderia ficar a ganhar.

Despedimo-nos de Adolfo e seguimos viagem para Rio Maior. André Magalhães tinha, nas suas sugestões, falado das salinas, e é para aí que nos dirigimos.

O sal de Rio Maior

Na época da recolha do sal, o cenário é muito mais bonito, mas, mesmo sem as pilhas brancas, as salinas de Rio Maior são lindas ao princípio da tarde de um dia de Inverno com sol. À nossa frente está a Rua Principal de Marinhas do Sal, de casas toscas de madeira, antigos armazéns do sal hoje transformados em pequenas lojas. Entramos na primeira, a Loja do Sal, uma empresa familiar que já vai na quarta geração, como prova a fotografia do fundador na parede, e que recuperou produtos antigos como os queijos de sal, simples ou com pimenta, que podem ser raspados sobre a comida.

Atravessamos a rua das casas de madeira até aos armazéns grandes ao fundo. Estes pertencem à cooperativa de produtores e é o director-geral, José Casimiro Ferreira, quem nos vai contar a história destas salinas que têm existência registada desde 1177, mas provavelmente seriam exploradas muito antes disso. E por que é que há sal aqui, se estamos a cerca de 30 quilómetros do mar? É que por baixo dos nossos pés está, desde há séculos, uma mina de sal-gema que é atravessada por uma corrente subterrânea de água.

Casimiro leva-nos até ao poço de nove metros de profundidade no centro das salinas e molha a mão. "Esta água é sete vezes mais salgada que a do Atlântico", diz. E, nos meses quentes, os proprietários das salinas trazem-na para cima, colocam-na nas pequenas piscinas, os talhos, e esperam que a água se evapore, deixando o sal. Agora é Inverno e não há sal cá fora, mas dentro do armazém um grupo de mulheres rodeia um monte branco do qual vai retirando todas as pequenas impurezas, pequenas palhas ou algum mosquito que ali possa ter caído.

"Este é sal que exportamos para a Alemanha, para fazer pão", explica Casimiro, "e os alemães são extremamente exigentes". Daí o moroso trabalho manual. Mas as coisas não estão fáceis. A cooperativa produz perto de duas mil toneladas por ano e precisa de escoar o sal, por isso vende grande parte dele a granel, por exemplo para piscinas. Só há cerca de um ano é que começou a tentar entrar no mercado gourmet, mas enfrenta a concorrência de sal importado, que se encontra à venda nos supermercados. "Se as salinas portuguesas estivessem todas a produzir, Portugal não precisava de importar sal", garante.

Esta não é a primeira crise que enfrentam. Foi precisamente por causa de uma crise grande, em 1979, que os vários produtores decidiram juntar-se e fundar a cooperativa. "Nesse tempo, se vinha cá alguém e queria comprar 20 toneladas não era fácil, porque ninguém tinha." Os produtores começaram a desanimar, alguns abandonaram o negócio e os armazéns de madeira começaram a cair.

A cooperativa veio dar a volta à situação e decidiu não só relançar o negócio do sal como desenvolver o potencial turístico da zona. As casinhas de madeira foram recuperadas, algumas são restaurantes, outras locais de venda e há até um posto de turismo no início da rua. "Há 30 anos isto era uma aldeia em que ninguém vivia", conta. "Os salineiros vinham para aqui e passavam a noite à espera que os chamassem para, na vez deles, tirarem a água do poço." Agora, sobretudo aos fins-de-semana, chegam os turistas e a ideia é animar ainda mais a zona com a Aldeia Natal e os Presépios de Sal, que vão começar no final de Novembro e duram até ao Dia de Reis.

Mas há quem pense que a aposta deveria ser numa valorização da marca Sal de Rio Maior e num mercado mais seleccionado, em vez de se vender a granel. É essa aposta da Loja do Sal, com os queijos de sal, a flor de sal gourmet, o sal para banhos ou com ervas aromáticas e outros produtos. Deixamos as salinas de Rio Maior com sal para tempero produzido em redor de Lisboa.

Legumes e fruta

Lembramo-nos do projecto Prove, que permite que pequenos produtores façam chegar os seus produtos a Lisboa e arredores, e procuramos o contacto trazido em tempos do Centro de Artes Culinárias do Mercado de Santa Clara, onde é feita a distribuição desses cabazes. Ligamos para Ana Marques e combinamos encontro na quinta dela, na Moita.

Ana aparece, a chamar os cães, que estão alvoroçados com a chegada de um carro. Nas estufas a mãe e a avó fazem a monda. Este é também um negócio familiar que, explica Ana, engenheira agrícola, estava a enfrentar cada vez maiores dificuldades no escoamento dos produtos. "A minha mãe chegou a vender 600 caixas de morangos no mercado abastecedor e nos últimos tempos vendia 100 com grande dificuldade. Foi sobretudo desde 2005 que as vendas entraram em queda livre."

Os campos na região são férteis, o potencial de produção é muito grande, o problema é outro: como é que o produtor faz chegar o seu produto ao consumidor? Isso tornou-se cada vez mais difícil. As lojas foram fechando, nos mercados abastecedores também se vendia cada vez menos, "a abertura dos supermercados veio dificultar o escoamento" e Ana achou que a saída seria vender para uma cooperativa. Mas as coisas não correram bem e foi preciso rever a estratégia.

Soube do programa Prove através da Associação de Desenvolvimento Local da Península de Setúbal. Abriu o primeiro núcleo, na Moita, em 2009. Dois anos depois abriu o do Seixal e este ano chegou a Lisboa. Todas as terças-feiras, entre as 17h30 e as 19h30, Ana aparece no Centro de Artes Culinárias com os seus cabazes cheios de legumes e fruta, e os clientes, que previamente a contactaram confirmando que queriam um, passam por ali para o ir buscar.

Vêm legumes e frutas, cerca de 5 ou 6 quilos, do que existe na altura, três hortícolas para sopas e acompanhamentos, dois tipos de salada e dois tipos de fruta - Ana constrói os cabazes, que custam dez euros, a partir do que tem disponível em cada época. E a experiência tem sido enriquecedora, porque começou a adaptar a produção às necessidades dos clientes, e apostou em produtos novos porque percebeu que teriam saída. "Lisboa é um mercado interessante, tem italianos, franceses, espanhóis, ingleses, que procuram coisas diferentes, e isso obriga-me a inovar, o que é bom."

Dos 25 cabazes com que começou na Moita, saltou para os 100. "E temos capacidade para aumentar", afirma, enquanto mostra as muitas variedades que tem plantadas na estufa. É um trabalho diferente daquele que faziam antes. Se no passado tinham cinco culturas principais, agora têm vinte em estádios diferentes para poderem ter sempre produtos disponíveis para os cabazes.

O Prove não é a única alternativa para quem quer comprar legumes e fruta e ter a certeza de os estar a comprar directamente ao produtor. Existem outras soluções do género. Um exemplo é a Quinta do Arneiro, na Azueira, Mafra, que tem o De Volta à Horta - Cabazes Biológicos de Entrega ao Domicílio. Espreitamos o site para perceber como funciona. "Evitando intermediários ganha o cliente e ganha o agricultor", explicam. E apresentam três tipos de cabazes: um em que o cliente escolhe os produtos de uma lista que lhe é enviada semanalmente (20 euros de valor mínimo); outro, em que a escolha não é feita pelo cliente, e que inclui produtos para duas sopas, duas saladas, legumes para acompanhamento e fruta para a semana para uma família de 3 ou 4 pessoas; e um cabaz da quinta, com base nos produtos da época e com um valor de 25 euros.

Peixe e carne

Adam Gopnik pode ter tido dificuldades em arranjar uma galinha em Nova Iorque, mas em Lisboa é possível chegar sem muitos problemas a Daniel Verdasca, produtor de perus, pintadas, patos e frangos biológicos, que lançou a marca Bosque Biológico. E que está baseado no Cadaval.

Os animais do Bosque Biológico são criados na natureza e, por isso, têm um custo muito superior - um frango pode custar entre 15 e 20 euros. Mas Daniel Verdasca diz que os clientes que se preocupam com o que comem estão dispostos a pagar mais por carne de animais "alimentados com farinhas biológicas, sem químicos, e que, além disso pastam, retiram mais da natureza, e são animais felizes". A marca Bosque Biológico tem cerca de 25 produtos feitos a partir daqueles animais, e em breve lançará novidades como o hambúrguer de pato.

Para salsichas, carne de porco ou de vaca, é preciso percorrer mais alguma distância, mas conseguimos ainda ficar dentro dos 100 quilómetros - a Herdade do Freixo do Meio, em Montemor-o-Novo tem criação de porcos, vacas, cabras, ovelhas, perus. E vende-a às quintas, sextas e sábados no seu talho no Mercado da Ribeira, em Lisboa.

Falta o peixe. Mas também aí não há qualquer problema. Aos mercados de Lisboa chega peixe pescado na região (é preciso ter uma peixeira de confiança que diga exactamente qual é a proveniência do peixe) - e se tal não acontecesse, bastaria ir até ao mercado de Setúbal.

André Magalhães tinha aconselhado uma ida à Trafaria para comprar marisco. Vamos até lá, mas regressamos de mãos vazias. O peixe e o marisco ali apanhado têm que passar pela lota e as empresas não o podem vender directamente ao consumidor final. Mas não é preciso ir muito longe: basta dar um salto até a uma loja na Costa da Caparica e também o problema das amêijoas fica resolvido.

O leite dos Miranda

Para os pequenos-almoços falta ainda uma coisa essencial: o leite. Quando visitámos Ana Marques na Moita, passámos, na estrada, por uma exploração com vacas. Paramos para saber se podemos comprar leite. Não, não é possível, diz Fernando Miranda, um dos responsáveis da vacaria, que é também um negócio familiar.

O leite não pode ser vendido directamente ao consumidor, explica. "Dependemos do monopólio que existe no país [a Lactogal domina o mercado], e no sector do leite isso é muito evidente. Temos capacidade para abastecer o país, somos dos poucos sectores auto-sustentáveis. Infelizmente temos um monopólio que não protege a produção, e que adquire leite lá fora a um preço superior ao que poderia pagar aqui."

O grande problema dos produtores de leite é o preço muito baixo a que o vendem, e que tem sido acompanhado pelo aumento dos custos de produção. Fernando Miranda aponta para as vacas à nossa frente. São 400 animais que têm que comer todos os dias. "Hoje estou a vender o leite ao custo de produção. Só a ração subiu 70 ou 80 euros por tonelada este ano, e 65% da minha facturação vai directamente para a empresa que me vende as rações. E ainda temos que criar as novilhas, que não estão a produzir."

Fernando gosta muito do que faz. Se não fosse isso já não estaria aqui, a ajudar o negócio do pai. "O meu pai começou há 50 anos, com uma vaca", conta. Depois foi aumentando, a pouco e pouco. Mas isso era no tempo em que havia leiteiros que iam buscar o leite às vacarias para depois o venderem nas lojas de bairro. Agora tudo tem outra escala. E não vale a pena falar em "quilómetro zero". Fernando explica que as vacas são criadas aqui, às portas de Lisboa, mas que o leite é depois recolhido por uma empresa que o leva até Portalegre para ser pasteurizado e embalado.

Um dos grandes problemas, segundo Fernando Miranda, é que "a transformação está toda no Norte do país", e não dá uma resposta adequada às necessidades da produção, "que na última década, década e meia, tem vindo a sofrer uma deslocalização para Sul". Se houvesse unidades que fizessem a pasteurização, o embalamento e a manteiga mais próximo "evitaria os custos do transporte" para um alimento, que, repete, "é produzido às portas de Lisboa".

E a hipótese de criarem uma marca própria? "Somos uma pequena lancha ao pé de um navio. Não temos capacidade para isso", diz, apesar de neste momento estarem já integrados numa cooperativa que reúne nove produtores, e que foi um passo essencial precisamente para resolver o problema da escala.

Nos últimos anos, continua Fernando, têm fechado várias vacarias, e, se o negócio continua assim, a não dar para os gastos, vão certamente fechar mais. Atravessamos a zona das vacas, que dali a bocado terão de ser ordenhadas, e vamos ver os vitelos. Fernando abre a porta a um, que salta, satisfeito com aquela inesperada liberdade. O produtor vai buscar um biberão de leite e dá-lhe. "Há anos e anos que não sei do aparecimento de novas explorações. Eu só estou aqui porque gosto mesmo disto, porque fica-se preso." Todos os dias é preciso tirar o leite das vacas, e para 400 animais, há apenas 12 pessoas.As explorações que conhece ali à volta são negócios que até agora têm passado de pais para filhos. Mas até quando?, interroga-se.

Os ovos de Marina

É preciso gostar - é isso que se percebe também quando se fala com Marina Pereira. Tínhamos pensado visitar o Casal dos Planetas, a tal exploração em Castanheira do Ribatejo, de onde vêm os ovos biológicos, e aqui estamos a olhar para as galinhas poedeiras de Marina.

Alguns animais andam ao ar livre, e comem as ervas que encontram. Outros estão dentro do galinheiro - há dois, cada um com capacidade para 1200 galinhas -, mas também aí têm espaço. Existe uma zona mais reservada onde vão pôr os ovos, que rolam depois por um tapete até ao exterior, onde são recolhidos, mas durante o resto do tempo andam por ali, e sobem aos poleiros quando vão dormir.

Esta quinta era já dos bisavós de Marina - foram eles que, por a propriedade estar numa posição elevada, e por o bisavô gostar de observar os astros e informar os vizinhos sobre as melhores alturas para semear ou colher, ficaram conhecidos como o Casal dos Planetas. "O meu bisavô era um curioso dos astros e uma espécie de Borda d"Água, e chamavam-lhe Planeta, depois começaram a chamar à minha bisavó Maria Planeta e ficou o Casal dos Planetas."

A história é semelhante a tantas outras - a quinta passou para os avós de Marina e foi-se transformando. Ao princípio fazia-se uma agricultura de subsistência, com cereais, árvores de fruto, olival. Depois, já com o pai de Marina, começou-se a apostar na vinha para uva de mesa, e plantaram-se pessegueiros, e em 1994 fez-se a conversão para a agricultura biológica. A certa altura, entra em cena Marina, que decide deixar o emprego numa companhia de seguros e dedicar-se à agricultura. "Numa formação ligada ao vinho vieram à conversa as galinhas." Em 2005 lança-se na aventura: compra as galinhas e começa a vender os ovos. Mas poucos meses depois entra em vigor a lei que obriga a que os ovos sejam carimbados, e a vida de Marina complica-se muito.

"Agora os ovos têm que ir a São Pedro do Sul para serem carimbados", explica. E lembramo-nos dos ovos da Casa do Aido que tínhamos visto no supermercado. Afinal, viemos encontrar ovos de uma produção a poucos quilómetros de Lisboa, mas, tal como o leite, também eles andam para baixo e para cima, o que arruína o nosso objectivo do "quilómetro zero".

Apesar de todo o processo poder ser feito no Casal dos Planetas, está fora de questão para Marina comprar a máquina que carimba porque isso implicaria "tratar um milhão de ovos para ter um custo aceitável". Mas - encolhe os ombros - como "o grande desígnio dos dias de hoje é a rastreabilidade" não há como evitar o carimbo que identifica a origem de cada ovo.

Reconhece que os ovos biológicos custam "quatro vezes mais do que os outros" (a nossa meia dúzia custou 2,30 euros), mas tem a mesma opinião que Daniel Verdasca, o produtor de aves: quem se preocupa com o que come, e quer ter a certeza de que não está a consumir químicos, está disposto a pagar mais por isso. Há mercado para o biológico, afirma. E mesmo com a crise não tem notado quebra no consumo.

"Aqui cada galinha tem o espaço que no convencional dá para cinco galinhas. E não fazemos ciclos de iluminação para elas porem mais ovos. A noite aqui tem oito horas." Quando começou a vender os ovos ia aos pequenos supermercados de bairro para explicar às pessoas a diferença. "Percebi que não têm a noção do que é um ovo de produção intensiva. As pessoas preocupam-se tanto com as touradas, mas não pensam nas galinhas. Deviam questionar-se sobre como é que se pode ter uma dúzia de ovos a um euro."

O arroz português

Por essa altura já temos praticamente tudo o que precisamos - fruta, legumes, carne, peixe, marisco, ovos, leite. Falta, se quisemos ser quase exaustivos, o arroz. Já que estávamos na lezíria ribatejana, resolvemos ir à Orivárzea, junto a Salvaterra de Magos, a poucos quilómetros de Castanheira do Ribatejo, a produtora da marca Bom Sucesso.

Pela estrada passamos por várias vendas improvisadas de produtores locais, e ainda aproveitamos para comprar alguma fruta. Há campos de couves e vinhas, e vêem-se à venda couves e abóboras. Mais à frente surgem os arrozais, neste momento já secos, porque a colheita do arroz está a terminar. Vemos os silos da Orivárzea ao longe e dirigimo-nos para lá. Somos recebidos por Jorge Parreira, o director de marketing, que começa por confirmar o que queríamos saber: o arroz é totalmente nacional e produzido aqui, a pouco mais de 50 quilómetros de Lisboa. Produzido, tratado, e embalado.

E a história repete-se: também aqui os produtores perceberam que sozinhos não tinham escala e em 1997 resolveram juntar-se numa sociedade anónima. "A indústria tende a esmagar os preços e, ao juntarem-se, os orizicultores conseguiram outra valorização." Mas a grande aposta foi a criação da marca própria, em 2001, e o posicionamento dessa marca no mercado. O arroz Bom Sucesso apresenta-se não só como o "maior produtor nacional" (32 mil toneladas, 5300 hectares), "100% português", com uma produção integrada, e com certificado de qualidade e segurança alimentar (não havia sequer caderno de encargos para o arroz, foi preciso criar um).

"Até aí a nossa estratégia tinha sido vender o máximo de quilos para marcas próprias [das grandes superfícies]. Mas pensámos: por que não entrar no mercado pela diferenciação? Na altura fomos mal compreendidos, mas achámos que havia mercado. E há mercado para tudo o que é bem feito."

Além disso, mesmo contrariando o que parece ser a tendência do mercado português para consumir mais o arroz agulha, têm apostado numa variedade de arroz nacional: o carolino, do qual são "o maior produtor a nível europeu". "O agulha só entrou no nosso país há 25 ou 30 anos, e foi através de uma marca estrangeira", diz Jorge Parreira. Mas, embora tenham ficado em primeiro lugar em quase todos os itens numa Escolha do Consumidor (iniciativa que existe em vários países e regularmente avalia as preferências dos consumidores), não ganharam num que lhes é particularmente caro: o de marca nacional. "Curiosamente, quem ganhou foi o Arroz Cigala, que é uma marca espanhola."

No mercado nacional continua a haver arroz importado, afirma Parreira, mas existe um potencial de aumento de produção nacional. Para já, o Bom Sucesso está a exportar - e começou mesmo a exportar para a China, com a marca Baby Rice, dirigida a crianças. Nesse caso parece evidente que o "quilómetro zero" não se aplica, mas esse não é um problema nosso.

As teorias

Despensa cheia, pequenos-almoços, almoços e jantares "quilómetro zero" e uma pergunta: vale a pena?

Procurar na Internet informação sobre o movimento de defensores de comida local, locavores, "quilómetro zero" ou food miles é entrar num mundo infinito de opiniões que vão em direcções opostas e de onde se sai com mais perguntas do que respostas.

No início dos anos 90, o britânico Tim Lang, especialista em questões de alimentação, criou o conceito das food miles para calcular a pegada ecológica causada pelo transporte de alimentos de locais longínquos até aos nossos supermercados.

Mas Lang, que esteve este ano em Portugal a convite da Gulbenkian, e na altura conversou com o PÚBLICO (edição de 10 de Abril), tem hoje uma posição diferente em relação ao tema, e avisa que é preciso levar em conta outros factores. Se para termos uma determinada fruta fora de época for preciso cultivá-la em estufas em vez de a importar, é preciso medir a pegada ecológica de ambos os processos e compará-la para tomar a melhor decisão.

Nos Estados Unidos o assunto desperta paixões. Os locavores são ferozes defensores da necessidade de consumir produtos locais. Mas há quem os ataque com igual ferocidade. A revista The Atlantic relatava recentemente um debate lançado pelo canadiano Pierre Desrochers, autor do livro In Praise of the 10 000 mile diet (numa tradução para português seria "Em Defesa da Dieta das 10 mil milhas"). Numa palestra em Washington para apresentar o livro, Desrochers falou do movimento a favor de uma alimentação local como "uma rebelião contra a globalização, a agro-indústria, e a forma como a comida é produzida".

O argumento de Desrochers é o de que não se pode ter crescimento económico sem urbanização, e não se pode ter urbanização sem comércio de longa distância, portanto não se pode aumentar a densidade urbana e a produção de comida ao mesmo tempo. Defender o contrário disto faz dos locavores reaccionários que querem fazer recuar todo o progresso conquistado nas últimas décadas que permitiu produzir mais comida em menos terra, aumentar a quantidade de alimentos disponíveis e torná-los mais baratos.

Mas, para irritação de Desrochers, o movimento por uma comida produzida localmente tem vindo a crescer nos EUA, onde o número dos mercados de produtores está a aumentar - aliás, com o apoio da Administração Obama, e de programas estatais como o Know Your Farmer, Know Your Food.

Outros, como John Mariani na revista Esquire, impacientam-se com o facto de os defensores da comida local se apresentarem como os arautos de um novo mundo quando, diz Mariani, este tipo de movimento sempre existiu, com maior ou menos intensidade, ao longo da História e não é preciso hoje ter um site como Locavores.com ou um desafio como o Eat Local Challenge, para o pôr em prática. E há, claro, quem leve este tipo de desafios ao exagero - o The New York Times contava num artigo de 2007 como Jessica Abel, uma entusiasta da comida local, tinha recolhido água do mar para conseguir ter duas chávenas de sal para usar na sua cozinha.

Um artigo da Time de 2006 citava números do Worldwatch Institute segundo os quais a comida vendida nos supermercados americanos viaja uma média de 2400 quilómetros, o que representava um aumento de 25% em relação a 1980. No entanto, afirmam os críticos, a pegada ecológica do transporte de bananas do outro lado do mundo pode, devido às grandes quantidades transportadas de carga que viajam de cada vez, ser menor, comparativamente, com a de transportar um cacho de bananas entre o supermercado e a nossa casa. Um exemplo que se pode aplicar também a um pequeno produtor local que transporta alguns quilos de legumes na sua carrinha até à cidade, se comparado com uma grande empresa de transporte.

Além disso, mesmo os mais ardentes locavores confessam que não estão dispostos a nunca mais comer chocolate ou café só porque estes não são produzidos num raio de 100 quilómetros. O debate levou a um afinar do conceito. Michael Pollan, autor de O Dilema do Omnívoro, veio dizer que comer local significa também comer produtos da estação, evitando assim a produção em estufas.

Mas há mais argumentos que vão no sentido oposto aos de Pierre Desrochers. O britânico Chris Pollock, especialista em agricultura e alimentação, defende no blogue Global Food Security que o Reino Unido deveria produzir mais alimentos. O país perdeu a auto-suficiência alimentar durante a revolução industrial e nunca mais a recuperou. "Tivemos sempre a capacidade para comprar comida noutros sítios e o mercado alimentar mundial tornou-se tão eficiente que a proporção de rendimento gasto em alimentação caiu de 33% em 1957 para 15% em 2006."

E, no entanto, Pollock acha que as próximas décadas podem esconder surpresas, em primeiro lugar porque a necessidade de alimentos vai aumentar "em pelo menos 50%" devido não só ao aumento da população mas também às alterações de dieta de povos como o chinês, e em segundo lugar por causa das alterações climáticas. Por isso, escreve Pollock, "devemos usar da melhor maneira a capacidade produtiva do Reino Unido". Ou seja, cultivar mais - mais perto de casa.

Mas não vale a pena ser fundamentalista. Nada poderá ser inteiramente "puro" - a menos que queiramos fazer como Jessica Abel e ir buscar água ao mar para termos sal. Um outro artigo no Global Food Security explica que podemos comprar bolachas de chocolate feitas no Reino Unido, mas que os ingredientes destas vêm de inúmeros sítios à volta do mundo, do açúcar ao chocolate.

E no The New York Times, John Tierney entrevista Charles C. Mann, autor de 1493: Uncovering the New World Columbus Created (numa tradução literal, "1493: Revelando o Novo Mundo que Colombo Criou"), que lembra que muitos dos vegetais e frutas que hoje plantamos nas nossas hortas vieram em tempos de outros pontos do mundo, e que foram as trocas de plantas e animais que aconteceram depois de Cristóvão Colombo ter descoberto a América que fizeram com que hoje "haja tomates em Itália, laranjas nos Estados Unidos, chocolates na Suíça e malagueta na Tailândia".

A dieta dos europeus melhorou radicalmente com a introdução das batatas vindas da América, diz Mann, e foi o guano (fezes de aves e morcegos), um poderoso fertilizante, proveniente do Peru que, dizem os especialistas, permitiu a primeira "revolução verde", ou seja, o grande aumento da produção agrícola. Mas se a introdução de milho e batata doce na China ajudou à subsistência das populações, provocou também erosão que levou à inundação dos arrozais.

E, ainda segundo o mesmo artigo, terá sido um navio que transportava guano para a Europa que trouxe o organismo que destruiu as culturas de batata e levou à grande fome na Irlanda em meados do século XIX. Charles Mann conclui que as trocas podem ter consequências imprevisíveis e desastrosas para o ambiente, mas a globalização também nos ajudou a comer melhor.

E se é bom consumirmos o sal de Rio Maior, ou os ovos de Castanheira do Ribatejo, sobretudo porque estamos a apoiar produtores locais que trabalham com qualidade, também podemos, sem peso na consciência, comer cerejas do Fundão ou chocolate de São Tomé, tal como podemos vender arroz aos chineses.

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