Sem-abrigo: censos foram "oportunidade perdida"

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Censos de 2011 contabilizou apenas 696 sem-abrigo

INE excluiu até os que pernoitam em abrigos, mas mesmo os que dormem na rua surgem sub-representados

O número chega a ser irrisório, de tão desenquadrado da realidade: os Censos 2011, que pela primeira vez referenciaram os sem-abrigo como variável autónoma, contaram apenas 696 pessoas naquela condição. A operação censitária não passou assim de "uma oportunidade perdida quanto à caracterização do fenómeno", segundo Sérgio Aires, coordenador da Rede Europeia Antipobreza.

De fora da categoria sem-abrigo ficaram os que, mesmo não tendo habitação, residem em prédios abandonados, casas-abrigo e mesmo em abrigos naturais, "por exemplo grutas", conforme explicou o Instituto Nacional de Estatística. Este organismo escuda-se no facto de ter tido que seguir o conceito internacional de sem-abrigo.

Equivale isto a dizer que, pelo menos à luz dos Censos 2011, sem-abrigo são aqueles que, no momento censitário, se encontravam a viver na rua ou noutro espaço público como jardins, estações de metro, paragens de autocarro, pontes, viadutos ou arcadas de edifícios. Por "questões operacionais", ficaram também excluídas as pessoas que, não tendo uma residência habitual, se encontravam na altura em que foram distribuídos os questionários a viver em hospitais, quartos de pensões pagas pela Segurança Social ou centros de acolhimento.

Acresce que os sem-abrigo recenseados na rua tiveram que ser ligados a um edifício ou alojamento. O que levou a que os pernoitavam na Estação do Oriente, em Lisboa, tivessem que ser incluídos nos edifícios mais próximos, no caso dois prédios de luxo. "Nada disto faz sentido. A própria referenciação das pessoas por zonas de residência ignora que a maior parte destas pessoas não tem permanência estável num mesmo local", reage Sérgio Aires, para quem os Censos 2011 estão longe de espelhar "mesmo o número restrito daqueles que moram na rua".

Para este responsável, a definição adoptada pelo INE ignora "o conceito europeu de sem-abrigo, que é muito mais abrangente". A definição adoptada pela Federação Europeia das Organizações Nacionais que Trabalham com Pessoas Sem-Abrigo, da qual fazem parte organizações como a AMI e a CAIS, inclui na categoria os que vivem na rua, mas também os que vivem sem casa (em casas-abrigo para mulheres vítimas de violência, por exemplo), em alojamentos temporários e mesmo os que vivem em casas sem arrendamento legal. Embora mais restritivo, o conceito constante da Estratégia Nacional para os Sem-Abrigo não deixa de incluir os que vivem em abrigos de emergência, fábricas e moradias abandonadas.

"Há", lembra a propósito Sérgio Aires, "organizações que consideram sem-abrigo até os que vivem em casas sociais, o que pode ser radical, mas não invalida que os conceitos europeu e nacional vão muito além do universo composto por aqueles que moram na rua propriamente dita". O coordenador lamenta "a pobreza da análise" oferecida pelos Censos 2012, considerando-os "uma oportunidade perdida".

Ao PÚBLICO, a directora da Acção Social da AMI lembra que, nos primeiros seis meses de 2012, 1209 sem-abrigo passaram pela instituição. "Já se vê que a realidade nacional é muito superior ao número apontado pelos censos", declarou, recusando mais comentários por não conhecer em pormenor o relatório do INE. Neste, e em linha com a definição adoptada, o INE contabilizou ainda 2103 famílias que residem em barracas, mais 4315 famílias que, no momento em que os inquéritos foram feitos, moravam em alojamentos improvisados e em locais não destinados a habitação, como "moinhos, celeiros e garagens".

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