Monte Hellman continua estrada fora

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Two-Lane Blacktop e The Shooting: dois dos motivos de culto a Hellman

A sua filmografia é um trajecto de emoções: o desejo de viver e de amar uma ilusão: o cinema. O cineasta norte-americano esteve no Lisbon & Estoril Film Festival. Tem 80 anos, diz que não vai parar

Descrevamos da seguinte maneira o lugar de Monte Hellman na história do cinema: poucas pessoas, mesmo as mais cinéfilas, conseguirão dizer mais do que dois títulos da sua filmografia (iniciada nos anos 50). Mas ainda assim as suas obras são uma das principais fontes de inspiração das últimas cinco décadas - até para os dias de hoje, e pensamos em Gus Van Sant ou Quentin Tarantino. Depois de uma retrospectiva na Cinemateca em 2009, as obras de Hellman foram mostradas no Lisbon & Estoril Film Festival. Desta vez, o norte-americano, 80 anos, esteve presente para discutir com o público filmes que atravessam os mais conhecidos géneros de Hollywood: o western, o road-movie, o terror, as histórias de amor. Todos eles banhados por uma mesma adoração: o gesto de criar cinema.

"Adoro actores"

Como muitos da sua geração, entrou no cinema através de Roger Corman, realizador da série B que procurava colaborações com jovens aspirantes. Ao contrário de alguns destes, como Coppola ou Scorsese, nunca construiu carreira solidificada. "Tenho dado aulas de Cinema nos últimos anos e vejo que os alunos pensam muito na carreira", disse na sua masterclass. "Não tínhamos nenhum conceito sobre o que era ou não uma carreira. Eu só pensava em poder conseguir fazer um filme, quanto mais ter uma para mim."

Não surpreende que o seu primeiro filme seja feito sob influência de Corman: Beast from the Haunted Cave (1959). "Quando comecei a filmar, não tinha confiança em mim próprio. Ficava acordado noites inteiras a desenhar cada plano, sem perceber que os desenhos não são imagens em movimento." Nos filmes seguintes, a realização já transmite o sentimento ardente de quem vive para o cinema, algo impulsionado pelo encontro com Jack Nicholson. Juntos fazem Flight to Fury (1964) e Back Door to Hell (1964).

Este último, filme de guerra de pouco mais de uma hora, é um exemplo extraordinário das emoções e dúvidas de um grupo de homens numa situação extrema. Algo que não terá escapado ao olhar de Kubrick nem ao Tarantino de Sacanas sem Lei (2009). Também porque Hellman, como esses autores, ganha vida ao filmar os rostos humanos. "Adoro o processo de filmar e adoro actores. Sinto prazer em dirigi-los. Quando faço um filme, rio-me muito, choro muito, e isso passa também para a representação e aquilo que os actores fazem passar." Por isso, pertence à rara espécie de realizadores que transmite uma tremenda sensualidade nos filmes.

A colaboração com Nicholson estender-se-ia para dois westerns: Ride in the Whirlwind (1965) e The Shooting (1966), dois filmes maiores que estão na origem do culto ao realizador (tal como as etiquetas de "existencialista" e "beckettiano"). Aí, Hellman explorou a tragédia de homens sem destino na paisagem deserta do mundo quebrando o formato da narrativa hollywoodiana, mas para isso alimentou-se da história que o precedia. "A minha paixão pelos westerns começou com a personagem do Lone Ranger [justiceiro solitário e fictício do Oeste]. Quando comecei a filmar, regressava aos westerns que me inspiravam: The Virginian (1929, Victor Fleming), Cavalgada Heróica (1939, John Ford), O Aventureiro Romântico (1950, Henry King), A Paixão dos Fortes (1946, John Ford) ou Shane (George Stevens, 1953)."

Amor como morte

Outro encontro viria a impulsionar o seu percurso: Warren Oates, que se tornou recorrente no seu cinema. Assim foi em A Estrada Não Tem Fim (Two-Lane Blacktop, 1971), road-movie sobre uma corrida entre três homens pela estrada norte-americana e que, como nos seus westerns, espelha personagens em conflito com as suas próprias emoções. Mais tarde, Oates ficaria com o papel principal em Cockfighter (1974), personagem muda dividida entre a paixão pela mulher da sua vida e o vício em apostas.

"Tive a sorte de trabalhar com operadores de fotografia maravilhosos, como Gregory Sandor, em Ride in the Whirlwind e Two-Lane Blacktop, mas também com Nestor Almendros [operador de Terrence Malick, Rohmer, Truffaut] e Giuseppe Rotunno". Este último trabalhou com Hellman em China 9, Liberty 37 (1978), western que carrega um sentimento presente em todo o seu cinema: a inevitabilidade da paixão ou ainda o sacrifício de um amor proibido. As paixões das personagens de Hellman revelam os medos escondidos. É esse o motivo de Iguana (1988), produção acidentada que recria o mito da bela e do monstro, tal como Silent Night, Deadly Night III (1989), em que um tenebroso assassino mata por amor. "Não queria fazer um outro filme de terror, mas aceitei-o na condição de esquecer o guião que estava escrito e construir um outro numa semana. Foi uma das melhores experiências de filmagem até à altura, sentia que era o melhor filme que já tinha feito. Na verdade, sinto que melhoro à medida que avanço no tempo."

Os paralelos entre este estranho filme de terror (ou estranha história de amor) com o cinema David Lynch são gritantes. Pensamos em Um Coração Selvagem, de 1990, e Mulholland Drive, de 2001. O mesmo se disse do recente Sem Destino-Road to Nowhere (2010), estreado em Portugal, talvez o seu filme mais livre e apaixonado.

"Os actores fazem mudanças mínimas numa rodagem que podem mudar o percurso de um filme. Tento garantir um ambiente em que as pessoas se sintam livres para criar. Peço a todos que desliguem o seu cérebro e trabalhem apenas a partir do instinto. Sem Destino foi a primeira vez em que trabalhei assim." E promete não parar - o que interessa é percorrer a estrada, não tanto saber onde se vai chegar.

"O cinema é viciante. Cada realizador é obcecado em manter o controlo, tal como os actores. Mas algo acontece quando ambos desistem de o fazer. Gosto desses acidentes que acontecem nas filmagens. E quando começamos a trabalhar dessa forma, é impossível voltar atrás." Mr. Hellman, já estamos apaixonados. Faça de nós o que quiser.

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