O homem que pôs o design de televisão a sambar

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Helena Colaço Salazar

Nos anos 1970, revolucionou a identidade visual da TV Globo. Uma esfera cinzenta e aborrecida transformou-se, nas mãos de Hans Donner, num globo tridimensional, colorido e quase cósmico. O designer, autor do logótipo da SIC, esteve em Lisboa para dar uma palestra e inaugurar uma exposição sobre a sua carreira

O fabuloso destino de Hans Donner, designer brasileiro nascido na Alemanha e criado na Áustria, inclui encontros imediatos em elevadores, inspirações estratosféricas, guardanapos de papel, bananas, macacos, algum samba e vários globos e esferas animados. Parecem muitas histórias para uma só vida, mas para o homem que criou os logótipos da TV Globo, nos anos 1970, e da SIC, nos anos 1990, uma vida é que parece pouco.

"Eu não planejei nada", explica um radiante Donner enquanto salta de episódio em episódio, percorrendo a sua vida com a mesma destreza com que desliza, levíssimo, entre swipes e pinches, pelo ecrã do iPad.

A resposta à primeira pergunta da revista 2, sobre o impacto do seu trabalho na linguagem de televisões de todo o mundo, é visual: um slideshow comandado por dedos ágeis e enérgicos: "Você quer ver como era?" - e só um sotaque praticamente imperceptível, carregando um pouco mais nos "erres", denuncia as origens do director artístico. E o que vemos: um logótipo cinzento e contido, estático e apertado - a imagem da Globo na era pré-Donner - liberta-se e explode para se encher de cor, volume e movimento. É um autêntico "grito do Ipiranga" do design de produto no contexto da televisão. Uma revolução que, para o bem e para o mal, mudou para sempre a cara da Globo e transpôs as fronteiras do Brasil, repercutindo-se na forma como televisões de todo o mundo passaram a ver, e a vender, a sua identidade visual.

"Houve um antes e um depois de Hans Donner?", perguntamos. O designer não se entrega a falsas modéstias. "Sim. Se você trabalha numa TV que atinge seis milhões de pessoas, você imagina quantas pessoas começaram a sonhar em ser designers vendo o seu trabalho? Todo o mundo acelerou. As pessoas aceleraram, os publicitários aceleraram, as televisões aceleraram. Centenas e centenas de televisões de todo o mundo começaram a fazer o mesmo: a investir na imagem e a deixar que designers com talento fizessem o seu trabalho. Pense que uma televisão é como qualquer produto. Imagine se um produto que invade a sua casa tem a embalagem perfeita..."

Hans Donner tinha 25 anos quando aterrou no Brasil à procura do seu El Dorado particular. Gosta de repetir que se sentiu atraído pelo país ao assistir à transmissão do campeonato do mundo de futebol na televisão. Estávamos em 1958 e Hans, longe de saber que viria a ser conhecido como o "mago dos efeitos visuais", olhava embevecido, o Brasil a "sambar" sobre o relvado, movendo-se no interior da caixinha mágica. A paixão pelo futebol foi o rastilho. A paixão pelo país inteiro veio depois.

Quase 20 anos mais tarde, Rio de Janeiro. Ao longo de 20 dias, Hans bate a todas as portas que conhece, com o portfólio, ainda fresco, debaixo do braço. Quando se prepara para regressar a casa, um encontro inesperado, num elevador, abre-lhe as portas para "o melhor emprego do mundo". Algo místico, Donner descreve este encontro fortuito "com um mulato, da cor da Valeria [a sua mulher, a ex-bailarina de Samba e Globeleza, Valeria Valenssa], da cor do Brasil" como determinante na sua vida. Foi ele que o levou até Walter Clark, então director-geral da estação. Donner relata este capricho do acaso com todo o detalhe nas palestras que dá, perante milhares de pessoas, porque acredita que ali estava a "chave do Paraíso". Nesse dia, foi apresentado às pessoas certas, mostrou o seu trabalho e foi contratado para trabalhar na equipa de design da Globo. Faltava acertar detalhes burocráticos e, no voo de regresso à Europa, a bordo de um avião da Swissair, Donner criava o primeiro esquisso da lendária esfera da Globo, desenhando o logo, ainda num monocromático azul Bic, sobre um guardanapo de papel. "O avião descola e eu projecto", explica entusiasmado. "Só preciso segurar a caneta. O resto sai... É o destino do projecto..."

Em rigor, Hans Donner pode até não vir de um país tropical, mas todo ele transmite e respira "brasilidade". O Brasil é um país de contrastes, de mestiçagens, e no maravilhoso melting pot sul americano, um europeu de olhos azuis e sorriso ingénuo, pode dar-se ao luxo de ser mais brasileiro que os próprios brasileiros.

Por isso, quando diz que gostaria de mudar a bandeira nacional, e inverter a orientação da faixa branca, que aponta para baixo, dando um novo impulso ao lema "ordem e progresso" não podemos senão acreditar nele.

"Brasilidade é uma coisa que você vê na Copa do Mundo. O que me fez sempre curtir muito o Brasil é essa maneira muito espontânea de ser, esse ir de coração aberto. Se eu tivesse ido para o Canadá ou para o Japão, eu não teria encontrado essa abertura. Na Copa do Mundo, o Brasil dá sempre uma lição de alegria. Com toda a dificuldade que existe, eu sonho que um dia o Brasil pode dar uma lição de alegria para o mundo, e de simplicidade também. Um brasileiro é capaz de ser alegre com muito menos do que uma pessoa de qualquer outro lugar do mundo."

A ligação ao futebol - outro esférico numa história redonda - mantém-se. Hans Donner fez parte do júri - com o escritor Paulo Coelho, a cantora Ivete Sangalo, a modelo Gisele Bundchen e o arquitecto Oscar Niemeyer - que escolheu o logótipo do campeonato que o Brasil acolhe em 2014. "O meu design era sempre azul, prata. A minha linguagem era muito fria. Aí eu cheguei no Brasil e o Brasil me transformou. O Brasil e as mulheres maravilhosas, as florestas, as praias. Da minha sala, eu vejo o Cristo Redentor e a Floresta da Tijuca. O Brasil é explosão, cor..."

Atravessamos o Atlântico, e entra a SIC. Se nos anos 1970, no Brasil, Donner revolucionava a linguagem televisiva com uma esfera tridimensional, cinética e colorida, nos anos 1990, em Portugal, com a abertura do primeiro canal privado do país, a imagem da SIC era uma valente e audaciosa pedrada no charco. "Na SIC eu tentei levar um bocadinho dessa alegria, que me transformou e que transformou o meu design, para Portugal. Eu fiz uma explosão de cor [volta a pegar no iPad para mostrar o logo original da SIC] e tentei colocar o arco-íris, só não usei o verde."

Cor e movimento, e a ideia de união, são os elementos-chave destacados pelo crítico de televisão Eduardo Cintra Torres quando evoca o nascimento da SIC. "Era um arco-íris, do amarelo ao azul-escuro, com predominância visual das cores quentes. Ao centro, o "i" de independente marcava uma posição e a diferenciação face ao operador do Estado. O anel reproduz a mais constante forma de representação da multidão unida em torno do espectáculo visual, com forte dimensão emocional, criada para sempre pelos arquitectos e engenheiros do Coliseu de Roma."

"O arranque da SIC começou com um videoclip, entre o abstracto e o concreto, no qual formas geométricas sugeriam prédios altos, gente e cidades movimentadas, numa apropriação da simbologia da modernidade que a canção pop confirmava anunciando "a televisão de todos nós, não serei eu nem tu, seremos nós": o "tu" da desenvoltura, o "nós" do anel, a promessa (que tem sempre uma dimensão demagógica) de que a audiência é quem faz o canal", prossegue o crítico.

Para Nicolau Tudela, actual director de meios de produção da RTP, a SIC inovou sobretudo pelo uso da cor: "O modelo SIC abriu uma porta à utilização da cromaticidade para a diferenciação da marca. Penso que o público reagiu mais à presença da cor do que à forma", afirma. Vinte anos depois, o responsável da RTP aponta para uma imagem mais afectiva: "No actual panorama audiovisual, as televisões procuram novos caminhos e soluções estéticas. No meu ponto de vista, é necessário reinventar novos conceitos de comunicação, reinterpretar as formas de comunicar, explorar a capacidade crítica e criativa relativamente ao processo de concepção, aplicação e consumo da imagética mediática no contexto fenoménico da arte e da comunicação. Transmitir afectos e menos efeitos."

Em 1992, Hans Donner e a sua equipa foram responsáveis por toda a imagem que marcou o kick-off da estação de Carnaxide. Donner conhecia pouco da realidade portuguesa e sabia que o tinham ido buscar provavelmente porque a sua realidade - imaginada, virtual, televisiva - tinha muito pouco que ver com a nossa. "Eles estavam-me deixando muito livre", recorda Donner a propósito do seu trabalho para a SIC e do briefing que recebeu dos responsáveis do canal. O design de Donner tinha a mesma matriz do seu trabalho para a Globo e era muito semelhante à imagem "exportada" pela televisão brasileira para outras estações da Europa, como a TV Montecarlo. Incluía o logo, separadores, genéricos e o look-on-air da estação. Como os cenários de Tomás Taveira, a desempoeirada imagem de Hans Donner para a SIC veio agitar as águas da televisão nacional.

"Fiquei impressionado com a diferença entre a imagem que a SIC transmitiu e a da RTP de então. Pensei, e disse: "A televisão portuguesa não voltará a ser a mesma." A diferença entre a SIC e a RTP era abissal. O ecrã RTP envelheceu décadas em poucos minutos. Era kitsch, burocrático, antiquado, "escuro". O ecrã SIC era pop, desenvolto, actual, "quente"", recorda Cintra Torres. "Julgo que a RTP ficou em choque, dado que a imagem da SIC exprimia uma forma de fazer televisão, de procura de ligação com a audiência, que não constava do quadro mental do operador público monopolista", conclui.

Vítor Duarte, actual director criativo da SIC, e que em 1992 integrava a equipa que fez os primeiros genéricos da estação de Carnaxide a partir do design de Donner, é mais moderado: "A imagem da RTP era muito institucional, porque também era esse o seu posicionamento, e também porque não tinha concorrência. As cores, o dinamismo e a diferença da imagem da SIC vieram valorizar a importância do design de produto, neste caso específico, a televisão. A embalagem, como noutros casos, é fundamental para nos atrair e aproximar das marcas, e a SIC mostrou ser diferente." Ao longo dos anos, mantendo a sua identidade e "intactos os conceitos iniciais, de cor e movimento", segundo Duarte, "o logo sofreu actualizações e interpretações, com uma abordagem mais preocupada com um estado de espírito do que com a espectacularidade, com um estilo europeu fresco, com alguma modernidade e juventude".

Os anos 1980 e 1990 foram a época dourada de Donner. Tudo era possível, criavam-se as aberturas mais loucas e impensáveis, primeiro com as mãos, pintando corpos, montando cidades inteiras e paisagens intermináveis, e depois com a ajuda das ferramentas digitais ("Sempre usei a tecnologia em função da criação, nunca usei o efeito especial pelo efeito especial", afirma).

Para além do logótipo da Globo (que hoje é uma das marcas mais valiosas do Brasil), do look dos telejornais e da supervisão de toda a imagem da estação, Hans Donner criava ainda o visual do mais poderoso produto da TV brasileira: as novelas. Tieta, Brega & Chique e Ti-ti-ti são alguns dos títulos mais famosos com genéricos criados por Donner.

Designer, criador de efeitos visuais, director artístico, Donner aventurou-se também noutras áreas, como o design de mobiliário, mas nem tudo foram rosas. A sua cadeira pós-moderna, Chair Brasil, inspirada (de novo) na bandeira brasileira, foi um flop, e nem uma reedição conseguiu verdadeiramente relançá-la. Donner justificou-se dizendo que tinha sido incompreendido e que a peça era demasiado avançada para a época, mas as vozes críticas afirmam que é apenas mais uma cadeira, e não precisamente das melhores.

O seu trabalho, visto à luz dos dias de hoje, não é consensual. Para alguns, estará simplesmente datado; para outros, ultrapassado. Mas é inegável que o design de Donner foi para a TV Globo absolutamente diferenciador, identitário e marcante. Ele deu um rosto à televisão que é o rosto do Brasil. "Quando eu cheguei, a Globo tinha o corpo formado, mas não tinha a cara. Aí, comigo, ela ganhou a cara. O Boni dizia que o meu trabalho começou a influenciar até o cameraman que ia para a rua e escolhia um enquadramento. O design está em todo o lado."

Nos anos 1970, calças à boca-de-sino descendo o Calçadão, Donner podia até ver o design "em todo o lado", mas as barreiras eram muitas e por vezes invisíveis e subtis: "Quando eu cheguei no Brasil em 1974, como eu não falava nem uma palavra de português, eu não percebi a situação real. Anos depois, eu percebi que eu estava chegando e o país estava saindo da escuridão, do ponto de vista político, do regime militar... Foi a "virada", e eu cheguei nesse momento, da virada. Até na televisão... começou a cor. Antes, a minha mãe ligava-me preocupada com as notícias que chegavam do Brasil. A minha mãe ligava-me depois do Carnaval e a maior preocupação dela era saber se eu estava vivo... Hoje não. É lógico que agora como se inverteu tudo, as notícias daqui também batem lá... Grécia, Portugal. É um flip: a Europa estava lá em cima, o Brasil estava lá em baixo. Mas tudo se movimenta."

Recuando no tempo, é fácil imaginar Donner a contornar a censura: provavelmente fê-lo com um sorriso. Seguramente, com muita descontracção. "Na novela Brega & Chique, decidimos colocar um homem nu de mão no bolso. Mas avisaram-me que ele não podia estar nu, que tinha que pôr uma folha para tapar. Aí, eu pus uma folha na bunda dele. Ficou grotesco. Aí eles disseram que estava grande demais, a folha. Eu reduzi, ia para o ar, e voltava para trás. No quarto dia, eles disseram: "Deixa ele nu mesmo", e eu deixei milhões de mulheres felizes!"

Indubitavelmente generoso, Donner será, para muitos, um visionário. Daí que não surpreenda que se identifique com - e cite com frequência - Steve Jobs. Curiosamente, na abertura da telenovela Explode Coração, que criou em 1995, surge um personagem de tablet na mão, passando imagens que se transformam numa cigana de carne e osso.

"Eu tinha um sonho que já virou realidade: a Globo. O segundo sonho é uma missão que está prestes a virar realidade... Time Dimension." Hans fala de um relógio digital, formado por três círculos concêntricos em constante movimento, onde vemos, "fisicamente", o tempo passar. Segundos que se transformam em minutos, que se transformam em horas, em contrastes de claros e escuros. E passa o filme do Time Dimension, um marcador de tempo que foi integrado no sistema operativo Windows Vista e que se prepara, como Donner, para voar.

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