Crónica de uma competição desamparada
Os premiados do Lisbon & Estoril Film Festival, que mostrou todas as direccções do actual cinema de autor, são divulgados hoje
Os 11 filmes escolhidos para a competição do Lisbon & Estoril Film Festival (LEFFest) corresponderam, de longe, à melhor e mais consistente selecção de sempre do certame. Ao longo de uma semana, abrangeram-se todas as direcções que o cinema de autor explora neste momento, das fronteiras porosas entre o documentário e a ficção aos olhares confrontacionais sobre assuntos actuais. Pelo caminho, descobriram-se bastantes filmes acima da média e pelo menos três grandes obras.
De Laurence Anyways, do canadiano Xavier Dolan, já falámos; juntamos-lhe Después de Lucía, do mexicano Michel Franco (o melhor filme que vimos na competição), e Sueño y Silencio, quarto filme do espanhol Jaime Rosales (para nós, o mais interessante dos cineastas da actual "escola catalã").
Después de Lucía é um violentíssimo murro no estômago que desenha o desespero de uma adolescente transplantada para a Cidade do México após a morte da mãe e apanhada numa engrenagem infernal de bullying da qual ninguém se apercebe. Quase insuportável no modo implacável como encena as humilhações diárias de Alejandra (paredes-meias com a dureza de um Michael Haneke), a segunda longa de Franco evita à justa o maniqueísmo voyeurista e equívoco graças à abordagem sem complacências de um tema actual.
Há também uma morte na família em Sueño y Silencio, e Rosales explora delicadamente, a preto e branco e com uma atenção infinita ao pormenor, o antes e o depois desse momento. É um filme atento e contemplativo sobre o modo como a vida continua, mesmo quando o vazio parece inultrapassável, ou quando os fantasmas do passado começam a vir ao de cima.
Não faltaram outras boas propostas. Em L"Intervallo, primeira e frágil ficção do documentarista italiano Leonardo di Costanzo, dois adolescentes napolitanos que um castigo da Mafia junta num colégio abandonado acabam por libertar a sua verdadeira juventude num "intervalo mágico", longe dos olhares dos mais velhos. No pólo oposto, Avalon, estreia do sueco Axel Petersén, é uma comédia desesperada de travo amargo sobre o que acontece quando diletantes idosos e irresponsáveis que ainda se julgam jovens e intocáveis esbarram com o mundo real. E houve a "carta solta" do documentário russo Winter, Go Away!, realizado por dez estudantes de cinema que foram para a rua filmar a campanha eleitoral de 2012 em que Vladimir Putin foi reeleito. É uma obra abertamente política e activista, que revela os meandros kafkianos da política à russa e pinta um retrato urgente da luta desigual entre o regime e a oposição, mais interessante pelo valor documental do que enquanto objecto cinematográfico; teria feito todo o sentido, por exemplo, na selecção deste ano do DocLisboa.
Ainda bem que houve público interessado em descobrir estes filmes. Mas, na dezena de sessões públicas a que assistimos (todas no cinema Monumental em horários nobres da noite), nunca foi muito. No máximo, contámos cinco dezenas de pessoas - o que não deixa de ser notável face ao absoluto desinteresse a que a competição foi votada pela própria organização do LEFFest: nem um único cartaz dos filmes a concurso, nem um esforço mínimo de divulgação da selecção, subalternizada perante a passadeira vermelha das estrelas convidadas (algumas das quais para fazerem parte do júri competitivo), enquanto o trailer da nova produção de Paulo Branco, Operação Outono, era exibido no início de todas as sessões.
Isto é tanto mais de lamentar quanto o director do LEFFest construiu a sua reputação precisamente a apostar a "fundo perdido" no tipo de cinema de autor a concurso. E esta competição, a melhor dos seis anos do certame e mostrando filmes importantes que ressoam com o momento em que vivemos, representando o presente do cinema de autor e os nomes que poderão fazer o seu futuro, justificava de corpo inteiro a divulgação que, infelizmente, não teve.
Os premiados do júri (composto pelos convidados Fanny Ardant, Sonia Wieder-Atherton, Hanna e António Damásio e Alfred Brendel) serão divulgados hoje, em cerimónia a decorrer, pelas 18h00, no Cinema São Jorge.