O ultra-solitário

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Aas mulheres são especialmente representativas do oceano de solidão que submerge as figuras de Edward Hopper - estejam elas num quarto de hotel, ao sol, num escritório, ao balcão de um bar na esquina de uma rua

Fixou a marcha das sociedades modernas e a solidão a que fomos sendo sujeitos em quadros que cruzam o familiar e o inquietante. Retrospectiva no Grand Palais, até ao final de Janeiro.

Uma mulher, dois homens e um empregado, num bar iluminado, na esquina de uma rua. Uma luz teatral, uma cor que agarra pela surpresa, o tempo suspendido, gente perdida no deserto nocturno, numa expressão exterior de vidas interiores.

Nighthawks (1942) está para Edward Hopper (1882-1967), como a Mona Lisa para Da Vinci, tendo sido reproduzido milhões de vezes nos mais diversos suportes. É um ícone contemporâneo. E é exemplar da totalidade da obra do pintor norte-americano, embora esteja longe de a resumir. Não espanta que o ambiente seja quase irrespirável na última sala das galerias do Grand Palais, em Paris, onde estão os seus quadros mais afamados, do pós-guerra, e onde há três semanas inaugurou uma retrospectiva de Edward Hopper (até 28 de Janeiro). Está demasiada gente. E lá fora, à entrada do edifício, há filas de pessoas que esperam pacientemente a sua vez para entrar.

A exposição é um dos acontecimentos do Outono parisiense e o frenesim com Nighthawks é compreensível, embora contrarie o propósito da retrospectiva: mostrar Hopper em toda a amplitude e dar a ver partes menos reconhecidas da sua obra. Ainda assim, inevitável admitir que há um estilo Hopper: mistura de realismo e estranheza, personagens imóveis, quase sempre solitárias, sob uma luz crua. Uma grande ênfase na atmosfera, nos cenários ou na composição minuciosa da luz.

As representações de exteriores revelam-nos pequenas figuras, sós, perdidas na paisagem. Os interiores mostram sujeitos em momentos de reflexão, focados em si mesmo quando acompanhados, separados do exterior por janelas, vidros ou portas. São figuras alienadas, aquelas que vemos, colocadas em situações de uma familiaridade estranha. Muitos quadros parecem captar um antes e um depois de uma situação qualquer, sem que se perceba exactamente o quê. Fragmentos na continuidade do visível. Uma espécie de cessação do ritmo quotidiano que cria segredos e uma sensação de incompletude. Nem início, nem fim, apenas a transitoriedade dos estados de espírito ou das relações humanas.

Quando se entra na exposição, a primeira sensação que se tem é que já se conhece aquele mundo. Não é só o facto de alguns dos seus quadros mais conhecidos já fazerem parte do nosso imaginário, tendo sido absorvidos pela cultura de massas, mas também a percepção de que o seu cosmos contaminou o de outros. Aquela luz, aqueles ambientes, aqueles cenários, aqueles estados de alma, já os vimos: conhecemos aquilo do cinema de Scorsese, de Antonioni, de Wenders, de Lynch ou de Hitchcock. Conhecemos aquilo de histórias inquietantes, de final feliz impossível, que nos devolvem afastamentos, silêncios, atitudes e sentimentos que aliamos à desolação e à resignação perante ela.

O cinema influenciou-o e ele influenciou o cinema. Compreendeu-o como poucos artistas plásticos o fizeram e melhor do que muitos cineastas. Apreendeu que a manhã de um quadro deve evocar todas as manhãs. Da mesma forma que cada homem é os homens. E uma mulher as mulheres. A construção das suas imagens tem qualquer coisa de indiscutível, mítico e definitivo. Como planos fixos.

Reconhecemos o seu cosmos também na música, em especial no jazz, nalgumas baladas de Coltrane, de Miles Davis ou de Stan Getz, no piano de Monk e Bill Evans, na voz sussurrada de Chet Baker ou na rouca de Tom Waits. Mundos trágicos mas com potencial de atracção. Almas perdidas, mas não desperdiçadas.

E não são apenas o cinema ou a música. A sua obra fecundou o imaginário americano do século XX, estilhaçando-se e afectando todos os campos da cultura: fotografia, literatura, BD e até televisão, em séries como Mad Men.

Apesar de esta ser uma daquelas exposições de ambiente frenético, como são as das grandes figuras da arte contemporânea, há quem se detenha longos minutos defronte das obras de maior sedução, confrontando-se com o mutismo das personagens. Por vezes parece perigosa aquela excessiva identificação emocional com Hopper, mas é inevitável quando se percorrem as salas e se olha para aqueles seres vivos mortos, ou para as paisagens, as bombas de gasolina junto às estradas desertas, os motéis, os faróis, as pontes, os velhos cinemas.

Um território mental

Edward Hopper revela 164 obras, na sua grande maioria óleos, mas também aguarelas pouco conhecidas da fase inicial, esboços de estudos de movimento, gravuras, desenhos publicitários ou ilustrações, na generalidade pertencentes a museus e colecções americanas. A primeira parte reflecte os anos de formação do pintor (1900-1924), reflectindo também a influência das estadias em Paris ou em Espanha na primeira década do século XX e a descoberta de Velázquez, Rembrandt, Degas e dos Impressionistas. São desse período gravuras como Night Shadows (1921) ou The Railroad (1922), que já enquadravam casas ou figuras isoladas. A segunda metade centra-se no seu período de consolidação, desde as primeiras pinturas mais representativas (House by the Railroad, 1924) até aos últimos trabalhos (Two Comedians, 1966).

Durante anos, Hopper viu-se forçado a ganhar a vida como ilustrador numa agência de publicidade, actividade que depreciava. Aos 31 anos vendeu o seu primeiro quadro, mas foi aos 43 que saiu definitivamente do anonimato, quando das 16 aguarelas que mostrou numa exposição não sobrou nenhuma. Por essa altura já se havia casado com Josephine Nivison, ex-companheira de estudos de arte, também pintora e admiradora da cultura francesa.

Era ela que posava para os seus personagens femininos. Mantiveram-se juntos, mas a sua relação não foi fácil. Ele tinha uma personalidade difícil. Desde a infância era um solitário, como as suas figuras - lacónico, raramente falando de si. E era meticuloso e lento, não produzindo mais do que dois ou três quadros por ano. Lia muito (Hemingway, Steinbeck, Dos Passos, Baudelaire ou Verlaine) e gostava de teatro (em especial dos dramas de Ibsen) e de cinema, sobretudo dos filmes de gangsters dos anos 1930.

House by the Railroad marca a afirmação do seu estilo. Não pretendia mais do que retratar uma banal casa, mas o que resulta daí é um espelho tocante e desolador da realidade. A partir daí as suas telas enchem-se de casas, de salas de cinema, de gares ou de quartos de hotel. E sobretudo de personagens sós - ou acompanhados, mas apenas para sublinhar ainda mais o seu afastamento, numa espécie de atomização de todos os indivíduos, perdidos num mundo que se revela esmagadoramente amplo.

A constância - ou a repetição, dirão os detractores - é flagrante dos anos 1920 até à sua morte: de Hotel Room, em 1931, a New York Office, em 1962, o sistema Hopper não vacila por um momento.

Todos os personagens, homens e mulheres, secretárias ou jardineiros, prostitutas ou reformados, se reduzem à sua definição profissional. A ordem social é tão estrita como a geometria das cidades. A pintura de Hopper é comandada por ângulos e proporções exactas, num rigor de linhas contínuas e de gestos regulares.

As mulheres de Hopper são especialmente representativas do oceano de solidão que submerge cada uma das suas figuras, estejam num quarto de hotel (Hotel Room), dentro de um comboio (Compartment C, 1938), ao sol (Morning Sun, 1952) ou perante uma máquina de costura (Girl at Sewing Machine, 1921). Nenhum pitoresco, nada de possibilidades eróticas, apenas uma relação com janelas que as expõem à indiscrição, mas que também as protegem do mundo exterior. São mulheres em fuga, em viagem, divorciadas, actrizes ou prostitutas.

Na pintura de Hopper não há romantismo, nem expressionismo, nem experimentação plástica. Não há gesto nem matéria. Há secura, ausência de voluptuosidade. Um sentimento de interioridade e de silêncio, onde a luz cria espaço, e o espaço é percorrido pela luz, criando um território mental de contemplação. Podemos aproximar-nos de Hopper através da análise filosófica ou sociológica, ou enquadrá-lo neste ou naquele movimento artístico. Mas escapará sempre qualquer coisa. A verdade é que os seus quadros falam.

Cada um deles é a atomização de uma imagem que faz parte de um filme mais comprido. É isso que cria a emoção. Isso e a taciturnidade revelada pela pintura, essa harmonia entre o desenho, a cor, a matéria, a luz, a composição. Um género de poesia onde a banalidade se transcende pela arte. Não há procura do grandioso ou sequer do exótico. Apenas o comum, o familiar, o modesto.

À saída, Nigthawks mantém-se omnipresente, disseminando-se nos catálogos, nos acessórios e nos calendários que se levam para casa, nos inúmeros cartazes exteriores. Mas o mistério manter-se-á: de onde vêm e para onde vão aquelas pessoas? O que terá acontecido nas suas vidas? O que pensam ou recordam? Terão alguma vez amado, sentir-se-ão amadas? Estão apenas enfadadas por existir? Detêm certamente um passado, mas terão um presente ou desejarão um futuro? Cada um criará a sua própria história.

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