A pesada herança

Real ou imaginária, é bem conhecida a história da idosa que um dia assistiu à passagem pela sua aldeia do novo Presidente do Conselho, o doutor Marcello Caetano. Interpelada sobre que impressão retivera do ilustre visitante, terá dito a anciã: “Este salazar é mais simpático do que o outro”.

Eis um resumo curioso do que foi o consulado marcelista, tanto nas suas esperanças como nos seus dramas. Mais do que a chefia de um governo, Marcello Caetano herdara a liderança de um regime. De um regime extremamente personalizado, autoritariamente personalizado. Essa foi a razão maior do seu infortúnio. No Estado Novo, o poder encontrava-se de tal forma centrado na figura de Salazar que o povo das aldeias julgava que aquele apelido não era um nome, mas a designação de um cargo vitalício. O regime adquirira, não por acaso, a denominação de “salazarismo”. Ora, fora no interior do salazarismo que Marcello, desde os 20 e poucos anos de idade, construíra a sua carreira. Se é certo que, por vezes, não poucas, se afastara de Salazar, é igualmente inquestionável que sempre integrou o regime, já que este, enquanto ditadura, assumia, por assim dizer, um carácter “totalizante”, que absorvia todos os que nele tivessem projecção pública e notoriedade política, mesmo quando episodicamente se resguardavam nas cátedras das universidades.

Até quando não esteve com Salazar Marcello não se afastou do salazarismo. Pelo menos não de forma a inutilizar as suas hipóteses de vir a assumir, como assumiu, o fardo da sucessão. Mais do que Presidente do Conselho, Marcello Caetano era, dizia-o a idosa da aldeia, um “salazar” - ou, pior ainda para os seus desígnios e ambições, o sucessor de Salazar. Viam-no como “mais simpático” do que o anterior chefe do Governo, prova de que procurou instaurar - e, nesse ponto, com algum êxito - uma “diferença” relativamente àquele a quem sucedeu. Mostrava-se ao país de uma forma que Salazar nunca praticara: aparecia na televisão, conversando em família com os portugueses, era um homem casado, com filhos e netos que as revistas exibiam na intimidade, deslocava-se pelo país em inaugurações e visitas. Este último aspecto, aliás, assinala uma curiosa ruptura com a prática política do salazarismo. Até 1968, existira uma interessante divisão de tarefas entre os presidentes da República e do Conselho: este último, gerindo cuidadosamente a “retórica da invisibilidade” (José Gil), era parcimonioso nas suas aparições públicas, deixando aos diversos presidentes da República o exercício de funções representativas que, no fundo, adensavam a ideia de que a chefia do Estado se cingia ao desempenho protocolar de funções ornamentais. Marcello era diferente. Disputava “a rua” a Thomaz, entregava-se a “banhos de multidão” e tentava conquistar as massas graças a meios de comunicação cuja influência bem conhecia. Estava consciente da importância da opinião pública nas sociedades modernas, e até teorizara sobre o assunto. O seu projecto político, esse, permanece um enigma. Porventura, até para o próprio - o que talvez explique o seu trágico desfecho.

Neste contexto, o presente livro representa um contributo utilíssimo para o conhecimento do marcelismo. É sempre de saudar, até pela sua raridade, a publicação dos resultados de colóquios ou encontros como aquele que, ao longo de várias sessões, deu voz a algumas figuras cimeiras do marcelismo, bem como a alguns dos seus oposicionistas, da esquerda e da direita. Não se compreende, por exemplo, que os vários e grossos volumes que contêm as diversas intervenções num colóquio organizado em 1990 pelo Centro Nacional de Cultura sobre os anos 60 permaneçam por publicar. Aí existem intervenções interessantíssimas de enormes vultos da vida política e cultural dessa época. Os nossos editores andarão distraídos?

A recolha de testemunhos orais não tem, naturalmente, a pretensão de reconstruir a História de um ponto de vista objectivo. Pelo contrário, é o olhar subjectivo e pessoalíssimo que, neste caso, interessa fazer ressaltar. Daí que estas obras constituam fontes históricas de extrema utilidade, podendo citar-se, a par deste, os de José Freire Antunes sobre a guerra de África ou os de Manuel A. Bernardo sobre o 25 de Abril, indispensáveis obras de consulta para quem pretenda conhecer, pela voz dos seus protagonistas, a história recente de Portugal.

No caso em apreço, como salienta Manuel Braga da Cruz na Introdução, deparamos com depoimentos de praticamente todas as grandes figuras do regime ou de personalidades que tiveram papel de relevo nos acontecimentos da altura. Dos vivos, praticamente ninguém ficou de fora. E, entre os que testemunharam, alguns já desapareceram: João Oliveira Martins, Elmano Alves, Walter Marques. À vastidão dos contributos junta-se o facto de muitos deles, ainda que naturalmente “comprometidos”, trazerem dados novos ou, pelo menos, infirmarem muitas das impressões que possuíamos. Os testemunhos sobre a “ala liberal” - o de Mota Amaral, em particular - mostram, por exemplo, que esta, nos seus alvores, não teve a coesão interna que por vezes se pensa: não surgiu na vida política como um grupo homogéneo, nascido sob a égide de Melo e Castro e liderado pelo carisma de Pinto Leite. Muitos dos seus futuros membros nem sequer se conheciam quando tomaram lugar em São Bento. É igualmente interessante o debate travado entre os juristas que acompanharam a revisão constitucional de 1971. Para eles, foi esse o grande ponto de viragem do marcelismo, o tempo das desilusões. Sendo ou não acertada esta visão, ela vem mostrar que houve vários momentos de ruptura com o marcelismo: para alguns, com destaque para a “oposição democrática”, as eleições de 1969 terão sido o marco fundamental. Para outros, foi a recandidatura presidencial de Thomaz, em 1972. Os constitucionalistas colocam o acento tónico na revisão de 1971. O que tudo isto demonstra é que, no fim de contas, o desencanto com Marcello foi muito mais “subjectivo” do que “objectivo”, isto é, dependeu muito mais das expectativas de cada indivíduo ou grupo do que de um momento que todos possam aceitar como decisivo para o que viria a acontecer depois, em Abril de 1974.

Mais consensual é a ideia de que o marcelismo teve dois tempos: um allegro primaveril, em que muitíssimos, muitos mais do que se julga, depositaram grandes esperanças numa promessa de reformismo; e, depois, um andante outonal, quando não invernoso, em que cresce o isolamento internacional, o regime se enclausura, os deputados e tecnocratas liberais se afastam, a oposição se radicaliza e a repressão endurece.

Organizados por Braga da Cruz e por Rui Ramos, estes colóquios tiveram como título Tempos de Transição. Numa das sessões, Rui Vilar questionou o uso do vocábulo e do conceito que lhe está subjacente, já que o mesmo poderá inculcar a ideia de que uma “transição”, fossem quais fossem os seus contornos específicos, se encontrava nos desígnios políticos de Caetano. Num ensaio final que remata o volume, Rui Ramos explicita o sentido daquele termo: a palavra “transição” é aqui apresentada como sinónimo de “transformação” ou “passagem”, já que, efectivamente, alguma coisa mudou. Em Portugal, mas também no estrangeiro, com o Watergate e a retirada americana do Vietname, com o choque petrolífero de 1973 ou a contestação juvenil em vários lugares do mundo. The Times They Are A-Changin'', cantava Bob Dylan desde 1964. Os tempos eram, de facto, de “transição”, não implicando o uso desta expressão qualquer tentativa de, por exemplo, equiparar abusivamente o caso português ao espanhol. De resto, mais arriscado se presta falar em “Transição Falhada”, título da obra coordenada por Fernando Rosas e Pedro Oliveira e dada à estampa em 2004 (cf. A Transição Falhada. O marcelismo e o fim do Estado Novo, 1968-1974, Lisboa, Ed. Notícias, 2004). Na verdade, na ideia de transição falhada pode estar implícita a pressuposição de que Marcello teria inscrito nos seus propósitos uma tentativa de provocar, a partir de dentro, uma mudança de regime - e que fora o falhanço desse projecto de transição que, afinal, precipitou as coisas no sentido de uma revolução.

Na interpretação avançada por Fernando Rosas, Marcello herdara uma situação militar “relativamente controlada” em Moçambique e em Angola (pp. 16-17) e, internamente, conseguira agrupar em seu redor, numa tessitura urdida ao longo de décadas, um bloco político relativamente consistente (os “marcelistas”), o que lhe garantia à partida uma correlação de forças favorável no interior do regime. Resta saber, todavia, se daí resultou a existência de um espaço de manobra para proceder a reformas profundas. A resposta de Rosas é algo ambígua a este propósito, já que tanto refere que, no início do seu consulado, Caetano “gozava ainda de algum espaço de manobra” (p. 17), como diz que, em Setembro de 1968, ao principiar funções, tinha “muito pouca margem de manobra” (p. 19). Em todo o caso, é indiscutível que, entre os candidatos à sucessão de Salazar, Marcello era o mais bem posicionado, técnica e politicamente. Mais do que a confiança de Salazar ou Thomaz, Marcello tinha o apoio de sectores reformadores que, segundo Rosas, “transcendiam em muito o oficialismo dos círculos marcelistas”. Enfim, terá sido essa a razão pela qual pôde ascender à chefia do Governo com bastante facilidade, rapidamente ultrapassando os seus pretensos rivais, todos situados mais “à direita” do que ele. Sem contestar totalmente esta ideia, Rui Ramos atribui o sucesso da ascensão política de Caetano muito mais às controvérsias internas e às divisões fratricidas da elite salazarista do que à existência de um “partido marcelista” uno e coeso. Acentua, por outro lado, o carácter ditatorial do regime, desde os seus alvores até Abril de 1974. E, reconhecendo a existência de mudanças efectivas em vários domínios (por exemplo, no plano social, aprofundando opções já tomadas no período final do salazarismo, como mostrou Fátima Patriarca), avança uma interpretação para este facto: “O Estado Novo, entre 1968 e 1974, nunca deixou de ser uma ditadura, nem nunca sequer começou a deixar de ser uma ditadura” (p. 490). É que, segundo Rui Ramos, Caetano nunca se dispôs a abdicar dos instrumentos que lhe permitiriam controlar uma hipotética mudança. Poderia subscrever e proclamar a fórmula “evolução na continuidade” mas existia uma inconciliável diferença de perspectivas entre Marcello e os seus críticos liberais: para estes, a “evolução” não era possível com a ditadura; para ele, pelo contrário, só a ditadura poderia tornar possível a “evolução”.

Sobre este ponto, não interessa discutir o óbvio: Marcello não era um democrata e não iria democratizar o regime. Quanto à questão colonial, dificilmente poderia ter protagonizado uma mudança capaz de reconhecer, mesmo em termos limitados, o direito à autodeterminação. Preocupava-o sobremaneira o destino dos portugueses radicados nos territórios ultramarinos. Nesse particular, as viagens triunfais que faz a África, e os apelos que aí escuta das comunidades brancas tê-lo-ão encaminhado decisivamente num sentido adverso a aventuras federalistas, muito menos independentistas. Além disso, não dispunha de espaço nem de tempo políticos para, mesmo que o quisesse (e era duvidoso que o quisesse...), fazer avanços significativos em matéria colonial. Sem resolver essa questão, tudo o resto seria relegado para um plano secundário: a excepcional performance económica registada até 1973, o aumento dos níveis de bem-estar e de prestações sociais, a “liberalização” estrangeirada da vida social urbana (este é, porventura, o aspecto menos estudado do marcelismo).

No livro ressaltam aspectos pessoais que têm uma relevância muito maior do que frequentemente se julga (por exemplo, a doença e a morte da mulher, como é salientado por Marcelo Rebelo de Sousa). Marcello Caetano foi, de facto, uma dramatis personæ, que terminou os dias no Brasil, amargurado com o seu país. Sentiu-se um injustiçado da História e, por isso, reagiu com a melhor arma que tinha: o poder do intelecto. Fez conferências, deu aulas, deixou livros, mas nem essa intensa actividade intelectual terá pacificado o seu atormentado espírito. Marcello contra mundum morreu de ataque cardíaco no Rio, em Outubro de 1980. Ao contrário de Thomaz, nunca quis regressar a Portugal.

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