Herbie Hancock quer pôr a música a lutar pela cidadania global

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"É importante que os artistas não se metam na gaveta do entretenimento", insiste Hancock Fernando Veludo/NFactos

As mãos até podem estar a descer sobre o teclado e a percorrer caminhos que já sabem de cor, mas o homem que voltou a trazer o jazz para a primeira linha dos Grammy em 2008 com River: The Joni Letters (só Stan Getz e João Gilberto tinham alguma vez vencido na categoria principal de Álbum do Ano, em 1965, apesar de todos os John Coltranes, Miles Davis e Charles Mingus desta vida) não consegue desligar-se da inquietação mais premente destes dias. A frase que nos repete ao telefone, um misto de convicção e uma reza com que parece apelar a instâncias superiores, é clara: "Obama tem de ganhar."

Nos últimos anos, Hancock tem defendido uma noção de cidadania global, para a qual a música foi igualmente requisitada. The Imagine Project, o disco que se seguiu ao Grammy, era precisamente um convite ao diálogo intercultural, promovendo colaborações com gente tão diversa quanto os congoleses Konono n.º 1, os malianos Toumani Diabaté, Oumou Sangaré e Tinariwen, os irlandeses The Chieftains e Lisa Hannigan, a brasileira Céu, o somali K"naan, as indianas Anoushka Shankar e K.S. Chithra, o colombiano Juanes e os chicanos Los Lobos.

Com uma carreira sedimentada no aventureirismo musical - Hancock pertenceu ao mítico quinteto de Miles Davis de meados da década de 1960 e foi um dos principais impulsionadores do cruzamento do jazz com o funk nos anos seguintes, graças em grande parte ao piano eléctrico que adoptou e registou na obra-prima Head Hunters -, deixou marcas óbvias em muita da música que hoje conhecemos. Nos seguidores dentro da esfera do jazz, claro, como Robert Glasper ou Fred Hersch, mas também em alguém da estirpe pop de Prince. Com os anos, no entanto, a sua música passou a fazer parte de um plano maior, em que The Imagine Project se inclui. "Estou muito interessado em fazer o que posso fazer, musicalmente, para mostrar exemplos do valor da comunicação global, da paz", diz-nos. "Desta forma, podemos criar não apenas ideias musicais mas soluções para os problemas que não poderiam ser conseguidas dentro de uma só cultura."

A atitude de Herbie Hancock não é única. Se Esperanza Spalding lhe segue os passos na defesa de questões ambientais, o papel da música como elemento regenerador e alternativo à política e à diplomacia (quando estas falham na resolução de conflitos entre povos) é fortemente defendido por gente como o catalão Jordi Savall ou a West-Eastern Divan Orchestra - imaginada e criada pelo maestro israelita Daniel Barenboim e pelo pensador palestiniano Edward Saïd (1935-2003). "Devemos mostrar a música como algo interessante, fresco, excitante, agradável, mas também provocador e que nos obrigue a pensar e a reexaminar os nossos valores", diz Hancock.

"A música", argumento também desembainhado por Savall e Barenboim, "toca no coração das pessoas". E esse poder deve, por isso, ser usado para "sublinhar desafios como os direitos civis e as questões sociais", tal como aconteceu repetidas vezes no passado. "As grandes causas são iluminadas quando têm uma grande canção associada. We shall overcome é um grande exemplo disso mesmo na sua associação ao movimento dos direitos civis." We shall overcome foi a canção entoada por dezenas de milhar de pessoas no funeral de Martin Luther King Jr., depois de ter evoluído de um tradicional gospel para um tema popularizado e recriado por Pete Seeger e Joan Baez - que a cantou em 1963 no Lincoln Memorial e a repetiu diante de Obama na Casa Branca, em Fevereiro de 2010.

"É importante que os artistas não se metam na gaveta do entretenimento", insiste Hancock. "Não digo que toda a gente tenha de o fazer, mas aquilo que dá valor ao estatuto de celebridade é usá-lo para elevar o espírito humano, para encorajar e inspirar as pessoas. Isso pode ser feito sob a forma de ideias políticas ou até religiosas e filosóficas."

Com Obama
Esta ideia do mundo como um todo, cujas fronteiras se diluem sistematicamente, volta a entrar no discurso de Hancock quando nos fala de Obama: "É muito importante [que seja eleito] pelo efeito não apenas nos Estados Unidos, mas também no resto do mundo. Concretizando: com Romney receio que muitos dos grandes avanços alcançados possam ser eliminados e seremos novamente empurrados para trás no tempo, de volta para alguns dos processos dos quais nos tentávamos afastar." Hancock está a pensar "na saúde e nos direitos das mulheres", mas também nessa ideia de globalização que acarinha como fundadora de um mundo mais solidário e justo. Romney, retoma, "está mais centrado no "eu" do que no "nós"". E, defende, as nações deviam concentrar-se na importância da cidadania global e não apenas da cidadania nacional. "Como americano, sinto que isso é realmente importante, porque somos a maior nação imigrante do mundo. As nossas raízes vêm de todo o planeta."

Nomeado embaixador da Boa Vontade pela UNESCO, o braço das Nações Unidas para a educação e a cultura, no ano passado, Hancock questiona ainda o facto de Romney falar de dar mais dinheiro aos militares, mais até do que eles pedem, e de não querer aumentar os impostos sobre aqueles que são "incrivelmente" ricos. "É claro que isto também o inclui. Não faz qualquer sentido. Todas essas pessoas extremamente ricas não são criadoras de emprego." Por último, refugia-se ainda na constatação de uma verdade pessoal: "Em quatro anos, desde que Obama é Presidente, ainda não encontrei uma só pessoa fora dos Estados Unidos que não goste dele. Se o mundo votasse não haveria dúvidas sobre a sua vitória."

Embora absurda à primeira vista, a ideia de todo o planeta se pronunciar sobre a eleição do Presidente norte-americano "começa a não ser assim tão ridícula", garante. "Quanto mais próximos e interdependentes se tornam os países, mais tomamos essa direcção. Talvez venhamos a repensar a separação dos países e criemos não propriamente um governo mundial, mas algo que promova um pouco mais a união."

Com Ana Moura
É fácil perceber a importância histórica de Herbie Hancock e por que razão é uma voz de referência da comunidade artística. Com uma auspiciosa estreia discográfica pela Blue Note em 1962, tinha então 22 anos, Hancock engrossava com Takin" Off as fileiras do hard bop, apadrinhado por gigantes como Freddie Hubbard e Dexter Gordon. O seu talento era tão avassalador que Miles Davis, sempre atento a sangue novo do qual pudesse alimentar-se, o chamou para o seu quinteto, ao lado de Tony Williams, Ron Carter e Wayne Shorter. Em paralelo, distribuía o seu piano - movido por uma originalidade que trazia ecos da música clássica e uma vontade voraz de procurar novas saídas - enquanto sideman por discos de Shorter, Hubbard, Sam Rivers ou Bobby Hutcherson. Depois viria a sua afirmação como farol no cruzamento com o funk. Hoje parece improvável que alguém volte a percorrer um trajecto tão marcante para a história do jazz quanto Coltrane, Miles ou o próprio Hancock.

No seu caso, a única coisa a fazer é seguir o que lhe manda a vontade. "Já me desafiei imenso, o suficiente para o resto da minha vida. Tento fazer sempre um disco que nunca fiz. E chega-me. Gosto desses desafios, de ser o primeiro a tentar algo."

E se não foi o primeiro músico do jazz norte-americano a tocar com uma fadista - Amália fê-lo com Don Byas -, não deixa de ser uma experiência nova ter acompanhado Ana Moura no tema Dream of Fire, do novo álbum da cantora, Desfado. "Adoro o som da voz dela e a alma que põe nas canções. É muito comovente. Toquei uma espécie de piano eléctrico, não de forma muito impositiva, mais no background, para iluminar a voz. Porque o disco é dela, não é meu." E esta sageza de saber o seu lugar não é para todos os que têm direito a várias linhas em qualquer enciclopédia da música. É só para os que, como Hancock, vêem na música uma possibilidade de união.

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