“Passagem para a Índia”, de David Lean (1984)
Normalmente, mas nem sempre, a um filme falta o olhar do narrador, partes da história, até algumas personagens; a um livro faltam imagens definitivas dos cenários, das fisionomias, das cores, da luz, faltam dimensões às vozes e aos sons envolventes
Eis uma proposta de viagem que pode tornar-se duplamente interessante: primeiro, ver “Passagem para a Índia” na sua forma cinematográfica, com realização de David Lean; depois, ler o romance homónimo de E. M. Forster, para descobrir o que há a mais ou a menos nas duas obras coincidentes no título, mas que se afirmam cada uma por si, expandindo-se e limitando-se pelas especificidades do meio em que respectivamente se constroem.
Normalmente, mas nem sempre, a um filme falta o olhar do narrador, partes da história, até algumas personagens; a um livro faltam imagens definitivas dos cenários, das fisionomias, das cores, da luz, faltam dimensões às vozes e aos sons envolventes. Há quem prefira estes vazios do texto, por lhe caber preenchê-los à sua medida e, com isso, participar na construção da experiência. É por isso que, quando se faz o circuito em ordem inversa, isto é, quando se passa do livro para o filme, pode custar muito a aceitar como adequadas as escolhas feitas para representar concretamente as imagens com que nos tínhamos familiarizado intimamente. Basta uma incoerência na constituição do elenco para fazer evoluir um filme em direcções para onde não queremos ir.
Comecemos, então, pelo filme, e não teremos objecções à sabedoria da escolha de Peggy Ashcroft, grande dama do teatro inglês cujo trabalho foi registado em escassas longas-metragens e episódios de séries televisivas, para interpretar Mrs. Moore, uma senhora idosa portadora de uma serena doçura sapiente entrecortada por uma rebeldia adolescente. Mas é mais do que isso: é a personagem-chave desta história de tentativa de encontro entre o Ocidente e o Oriente na Índia colonial britânica e do que de muito perturbante daí resulta.
Judy Davis é Miss Quested, que, acompanhada por Mrs. Moore, sua futura sogra, viaja de Londres para Bombaim, de navio, e daí para Chandrapore, de comboio, onde a aguarda o noivo, o jovem juiz da comarca, Heaslop (Nigel Havers).
Mas neste quadro convencional, de progressos previsíveis e bem oleados, intromete-se, por cortesia, o Dr. Aziz (Victor Banerjee), humilde médico indiano, primeiro pela mão de Mrs. Moore, depois por intervenção do Dr. Fielding (James Fox), director do colégio local. E é esta nova intimidade entre dois mundos mantidos criteriosa e oficialmente separados que vai desencadear acontecimentos extraordinários, entre o colorido local, o exotismo de um país escondido em espirais de mistério. Um país onde se pode encontrar, tal como aconteceu a Miss Quested, no meio do nada, um templo dedicado ao amor carnal, ou umas grutas lá ao longe, lá em cima, nas montanhas de Marabar. O curioso, nestas grutas, é as suas múltiplas descrições não explicarem, ao viajante, quais as características particulares que justifiquem uma visita: não são naturais, não têm decorações artísticas, apenas um “certo eco”. Mas, aparentemente, é um lugar em que as pessoas se encontram consigo mesmas, o que pode ser perigoso. E é.
Assinale-se ainda a presença desconcertante de Alec Guinness como o excêntrico Prof. Godbole, preservando a tradição da colaboração do grande actor com David Lean, tal como aconteceu em “A Ponte do Rio Kwai”, “Dr. Jivago”, “Lawrence da Arábia”.