Uma história interior dos Joy Division

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Com o seu suicídio aos 23 anos, Ian Curtis pesou sobre os Joy Division como um fantasma; na altura, porém, diz Peter Hook, ele "parecia estar óptimo"

Foram um dos grupos mais icónicos das últimas três décadas e continuam no sangue de Peter Hook, o baixista, que retoma essa singularísima história de putos perdidos num livro, Unknown Pleasures: Inside Joy Division, e no concerto da próxima quinta-feira em Lisboa. O Ípsilon entrevistou-o em Manchester, a cidade de onde os Joy Division não tiveram tempo de sair.

Foi a 2 de Maio de 1980, em Birmingham, que os Joy Division, o grupo mais icónico desses anos, deram o último concerto. Nove dias depois, o cantor Ian Curtis suicidou-se na sua casa de Macclesfield, Cheshire, nas imediações de Manchester. Tinha 23 anos.

"Recordo-me bem desse concerto, estávamos entusiasmados, a imprensa falava de nós, íamos para os Estados Unidos nas semanas seguintes e o Ian parecia estar óptimo. Recordo-me de o ter levado a casa e de acabarmos a falar sobre mim e os meus problemas. Quando tentávamos falar com ele sobre a sua família ou a doença, mudava de assunto. E sempre que lhe perguntávamos se estava bem era o primeiro a convencer-nos que estava tudo ok. Olhando para ele em palco, era difícil não acreditar! Se existia alguém muito autêntico era mesmo ele!"

Estamos em Manchester com Peter Hook, o histórico baixista dos Joy Division e dos New Order que acaba de lançar o livro Unknown Pleasures: Inside Joy Division, o primeiro em que um membro do grupo se propõe contar a história daqueles anos, e que na próxima quinta-feira, em Lisboa, no Centro Cultural de Belém,na abertura do Misty Fest, apresenta na íntegra o primeiro álbum dos Joy Division, Unknown Pleasures (1979). O homem mais emotivo do grupo, o mais expansivo, aquele que é sempre capaz de uma gargalhada nos momentos mais tensos baixa a voz sempre que fala de Ian Curtis. "Ele nunca falava da epilepsia. E depois era o único de nós que era pai de família, tinha mulher e uma filha, trabalhava no duro, acordava de madrugada depois dos concertos. Nós íamos para casa dos nossos pais, era muito diferente", exclama, como se tentasse, mais de 30 anos depois, perceber o mistério.

E continua. "Claro que depois podemos dizer que ele estava deprimido e podemos ler as letras das canções e concluir isto e aquilo, mas aos nossos olhos, ele estava apenas empenhado em levar o projecto para a frente. tal como nós. Trabalhava no duro para o conseguir. Era o mais empenhado. Se pensarmos bem, os Joy Division foram profissionais apenas durante seis meses. É incrível se imaginarmos o impacto cultural e musical que obtivemos em tão pouco tempo. Quando o Unknown Pleasures saiu estávamos todos ainda a trabalhar: o Ian no centro de emprego, eu nas docas, o Stephen com o pai. É incrível não é?"

É incrível, sim. Hoje, quando se olha para trás, é difícil não vislumbrar que eles se tornaram no grupo mais alegórico desse tempo. Definiram um imaginário para aquela época. Através de um vocalista que nos fazia acreditar que se expunha sem simulacros e de três músicos que com ele embarcaram numa viagem trepidante que iria originar canções para sucessivas gerações de melómanos - canções como Love will tear us apart, Atmosphere, Transmission, Decades ou Dead souls.

Depois vieram os New Order, outro grupo fundamental para perceber as três últimas décadas da cultura popular, mas não podiam ser a mesma coisa. Não eram a mesma coisa. A morte de Ian parece ter representado o fim da inocência para os restantes três (além de Hook e de Curtis, os Joy Division eram ainda o guitarrista Bernard Sumner e o baterista Stephen Morris). "Nos Joy Division havia equilíbrio, química, idealismo. Quando os New Order começaram, sentimos a falta do Ian. É claro que entrou a Gillian Gilbert, mas não era o Ian. E tudo mudou. Demorei tempo a habituar-me. A partir dali teria de ser muito diferente. Os Joy Division eram como o primeiro amor."

Cisões, tragédias, negócios

Desde que saiu dos New Order, em 2006, Peter Hook tem tido vários diferendos com os outros membros do grupo, em particular com o vocalista e guitarrista Bernard Sumner - acusações mútuas, algumas a acabarem nos tribunais. No centro das divergências está o legado dos Joy Division e a forma de o representar. "Durante anos os Joy Division pareciam ser um fantasma para os New Order. Só tocávamos canções dos Joy Division em funerais ou aniversários. É tempo de celebrarmos, sem complexos, o que fizemos. Estou farto de filmes, documentários ou livros acerca de nós feitos por pessoas distantes, que não estavam lá, enquanto nós, que éramos do grupo, que estávamos dentro, nada fazemos para contar a nossa história. É isso que fiz neste livro. É isso que faço em palco", diz ao Ípsilon.

No subtexto da maior parte das suas afirmações está a ideia de que Bernard sempre preferiu os New Order, enquanto ele opta pelos Joy Division. "Existia um poder emocional e um ideal comum nos Joy Division que nos New Order, por vezes, como é natural, se dissipava. Quando saí dos New Order era nítido que já não me revia em muito do que era feito. É normal. O que aconteceu foi que quando comecei a tocar música dos Joy Division fui inundado de propostas para o fazer em todo o mundo, o que parece ter deixado os outros furiosos."

A história dos Joy Division, e posteriormente dos New Order, é um emaranhado de cisões, personalidades fortes, tragédias. Em 1980 Ian Curtis suicidou-se. Em 1991 morreu Martin Hannett, o histórico produtor do grupo; em 1999 foi Rob Gretton, o manager que andou com eles 22 anos; e em 2007 Tony Wilson, o mentor da editora que os lançou, a Factory. Em 2001, a mulher do baterista Stephen Morris, a teclista Gillian Gilbert, que havia entrado para a formação em 1981, teve de sair na sequência de uma doença detectada ao filho de ambos. Pelo meio assistiram ao nascimento e à falência da Factory e ao encerramento do mítico clube Haçienda, do qual os New Order eram proprietários. Durante largos períodos, ao longo dos anos, não se falaram e formaram outros projectos (Other Two, Monaco, Revenge, Freebass, Electronic, Bad Lieutenant).

Na actualidade, Hook, ocupa-se da herança dos Joy Division, enquanto os restantes fizeram renascer, outra vez, os New Order, Gillian incluída. Uma história complicada, que ele resume assim: "A vida de um grupo não é apenas sair e beber uns copos para tentar engatar umas miúdas. É também negócio. E raramente se fala disso. E isso muda tudo. Muda as relações. Somos amigos no princípio, e no fim podemos continuar a sê-lo, mas será diferente. Talvez sejamos apenas colegas e não amigos. As relações num grupo como este estão sempre a mudar. É assim em todos os trabalhos, há amigos e inimigos. Numa semana somos amigos de alguém, semanas depois acabamos por ser apenas colegas ou nem isso."

Siderados a ver Ian Curtis

Tal como eles, Manchester não é a mesma de há 30 anos. Zonas anteriormente semiabandonadas são hoje espaços de lazer e de boémia ou albergam indústrias criativas. Mas basta afastarmo-nos um pouco do centro para depararmos com panoramas urbanos desolados, locais que parecem isentos de vida. Em vez de jovens acabados de sair de escolas de arte com a consciência de estarem no centro do mundo, como em Londres, deparamo-nos com o cinzento industrial do Norte de Inglaterra onde habitam rapazes dos subúrbios ainda desejosos de conhecer o mundo.

Foi aí que, em 1976, depois de terem assistido a um concerto dos Sex Pistols, Hook, Bernard, Stephen e Ian resolveram formar um grupo, influenciados por Velvet Underground, Bowie, Kraftwerk ou Can. Tiveram vários nomes antes (Warsaw foi o mais conhecido) antes de se decidirem por Joy Division. No centro da sonoridade, ao longo de três álbuns (Unknown Pleasures, Closer e Still) estava a bateria nervosa de Morris, o baixo pulsante de Hook, a guitarra cerrada de Bernard e a interpretação intensa de Ian, expressando emoções complexas.

Se o punk olhava com raiva para o estado do mundo, os Joy Division olhavam para dentro, com desespero, e sem ironia. As letras expressavam medo, culpa, cólera e claustrofobia, enquanto o som era uma espécie de estado sonhador em suspenso, ainda marcado pelas assunções mais simples do punk, mas num outro patamar, com uma austeridade e uma solenidade surpreendentes.

Unknown Pleasures, de 1979, foi o álbum fundador. É um disco que ainda contém alguma da matéria em bruto herdada do punk, mas já trabalhada com a profundidade de campo e a lavagem de melancolia que iria definir o som da banda, contendo canções icónicas como Disorder, She"s lost control ou Shadowplay. A ideia para um espectáculo baseado nesse disco surgiu a Hook depois de conversar com Bobby Gillespie, dos Primal Scream, que fizeram o mesmo com Screamadelica.

"Queria encontrar uma forma de celebrar os Joy Division, mas não o queria fazer como se fosse uma banda de tributo. Isso não me interessava. Um dia estava a falar com o Bobby Gillespie e ele disse que estava a pensar apresentar na íntegra o álbum Screamadelica, porque havia uma série de temas que nunca haviam sido tocados ao vivo e continuava a subsistir a ideia de que era um álbum de estúdio, e eu pensei: "Ei! Essa é também a história de Unknown Pleasures! E resolvi fazer o mesmo."

Há quem o acuse de reescrever o passado, mas ele defende-se com o número de pessoas que está interessado em ouvi-lo e com a memória que é preciso preservar. "A experiência de gravar, e de deitar cá para fora, um álbum com um sentido, um alinhamento, uma ideia definidora, uma atmosfera sólida, está a perder-se. Os miúdos preferem ouvir temas apenas. Mas ver os Velvet Underground tocarem o seu primeiro álbum ou Lou Reed a tocar Berlin é muito inspirador. Pareceu-me interessante fazer isso com os Joy Division, porque dessa forma existe realmente um envolvimento artístico. Já não se trata apenas de tocar uma sucessão de sucessos, como acaba por ser hoje em dia a maior parte dos concertos de grupos grandes."

Ao longo dos anos formou vários grupos (Revenge, Monaco, Freebass) e ser vocalista não lhe é estranho, mas substituir Ian Curtis envolve outro tipo de desafios. Em palco, o cantor parecia cantar para si próprio, cantando para nós. Mas esse jogo de identificação não se fazia apenas de palavras. Até porque as palavras mentem. O corpo não. A dimensão física, como Anton Corbijn sublinhou no filme Control, era fundamental nele. Os espasmos, a dança epiléptica e o corpo de Ian Curtis pareciam encarnar, a um só tempo, a desordem interior e social da época.

"Tocar o álbum é um desafio artístico muito grande e, claro, cantar é muito assustador, mas tinha de ser eu a fazê-lo. Não haveria celebração se não fosse eu a assumi-lo", reflecte Hook.

E depois as letras de Ian também eram muito específicas. Não apenas pelo conteúdo, mas pelas repetições, pelas onomatopeias, pelos espaços em branco. "No início não ouvíamos as letras porque não nos ouvíamos", conta Hook, rindo-se. "Ele punha tanta paixão, tanta emoção, tanta verdade, que ficávamos siderados a vê-lo. Era como se não fosse preciso ouvi-lo realmente, e eu estou certo de que ele também não ouvia a maior parte das coisas que eu estava para ali a tocar." Era como se fosse um muro de som, afirma: "Eu não ouvia a guitarra de Bernard, as complexidades rítmicas de Steve, ou a subtileza das letras de Ian, a não ser quando começamos a gravar Unknown Pleasures".

Nos bastidores de Unknown Pleasures

Depois de entrarem em estúdio, pela primeira vez, foi como se o grupo se redescobrisse a si próprio. "Começámos a apreciar o que cada de um de nós fazia de forma diferente. Foi aí que percebi que as letras do Ian eram realmente boas. A forma como utilizava as onomatopeias era incrível, bem como a forma subtil como utilizava as repetições. Ele era genial. Em Unknown Pleasures era muito agressivo e directo. Closer tinha um sentimento musical muito diferente e as letras também; era trepidação. Quando se ouvia a música com as letras percebia-se que algo de errado se passava. Era um disco mais retorcido, mais amargurado talvez, mas que originou grandes canções."

A atribuir sentido a tudo, a controlar o caos sonoro, estava o produtor Martin Hannett, um estudioso de acústica, que criou um som monolítico, fechado como uma redoma de granito, mas ao mesmo tempo aberto e indefinido. "Martin tinha uma visão para os Joy Division", concede Hook, "mas diria que fomos nós que permitimos que a sua visão frutificasse. As outras bandas com quem trabalhou eram tão boas, musicalmente, como nós, mas nós tínhamos grandes canções e eramos muito bons em palco."

De resto, a relação com Martin não foi fácil, pelo menos na fase inicial. Os Joy Division queriam qualquer coisa mais próxima do punk. Martin olhava além. "Era um génio, mas quando era novo não o percebia. Só com os anos é que fui compreendendo que ele estava absolutamente certo e eu absolutamente errado. Eu queria que soássemos como os Sex Pistols ou como os Joy Division soavam ao vivo. Mas ele mostrou-nos outro caminho. Felizmente, éramos muito novos e deixámos que ele fizesse o que lhe apetecia", ri-se Peter Hook.

A estética do grupo, definida pelo designer Peter Saville em rigorosas capas a preto e branco, também levantou algumas resistências, mas acabou por ser aceite: "A solenidade da música do grupo era aquilo, mas aquela depuração e aquele minimalismo pareciam de mais." Hoje, quando olha para as capas dos discos, Hook encontra ali "uma ideia de eternidade, o que acaba por fazer sentido".

Ao longo dos anos, o baixista foi encontrando pelo caminho inúmeros produtores, mas Martin continua a ser a referência. "Aprendemos a produzir com ele, eu e o Bernard. Aliás quando me perguntam qual o melhor produtor com quem trabalhei nos New Order respondo de imediato: eu e o Bernard. Éramos tão bons como quaisquer outros e mais baratos", ri-se. "O Steve Osborne fez um excelente trabalho em Get Ready (2001), mas em Waiting For The Siren"s Call (2005) trabalhámos com demasiadas pessoas, porque o Bernard teve a ideia de convidar diferentes produtores para cada estilo de canção. Acabou por ser um tremendo erro."

Hook é nitidamente alguém que gosta do palco. A seguir a Ian, sempre foi o mais carismático, tocando com o baixo pelos joelhos e com o volume alto, um estilo singular que diz ter sido inspirado na forma de tocar de Jean-Jacques Burnel dos The Stranglers e em Paul Simonon dos The Clash. "Gostava do estilo do Burnel e o Simonon tocava com o volume alto, quando a maior parte dos baixistas tocava com o volume baixo. Era insatisfatório, chato, soava mal como a merda! Quando comecei a tocar mais alto percebi logo o contraste: era inspirador, criativo e as pessoas sentiam o baixo. É por isso que gosto da fisicalidade do palco. Estar em estúdio não é mau; o problema é que quanto mais se alonga a nossa carreira, mais tempo se passa em estúdio. É como estar aqui sentado, neste escritório, 18 horas por dia." E arranca uma gargalhada, para dizer que um dos factores positivos da desagregação da indústria da música é esse, precisamente: "Agora, por causa dos downloads ilegais, os grupos já não se podem dar ao luxo de demorar três anos a completar um álbum, o que é bom para os músicos que gostam de tocar ao vivo. Quer dizer, Unknown Pleasures foi gravado em apenas cinco dias e Waiting For The Siren"s Call levou três anos."

Chegamos ao final da conversa e, como se quisesse descomplicar o que havia dito até aí, Peter Hook lança que os tempos vividos com os Joy Division foram os mais felizes da sua vida, embora reconheça que em todas as fases existiram momentos difíceis. "Até no auge do sucesso dos New Order, quando estávamos a ganhar dinheiro, surgiram problemas com a Haçienda. É difícil fugir dos conflitos, o melhor que se pode fazer é tentar viver com isso."

E regressa a Ian: "Inquietávamo-nos com a sua condição, a sua medicação, mas no fundo não passávamos de putos um pouco perdidos, com vontade de vingar, que depois dos concertos iam para casa das mães. Menos Ian. Depois da morte dele passei a olhar para a complexidade das pessoas de uma outra forma."

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