Depois de anos de obras indistintas, os irmãos Taviani voltaram subitamente à ribalta (Urso de Ouro na última Berlinale) com César Deve Morrer. A sinopse era de molde a despertar curiosidade: Shakespeare - o Júlio César - representado por presos de uma cadeia italiana de segurança máxima, nos arredores de Roma. Ladrões, assassinos, homens de mão da Máfia - há de tudo naquela prisão - a representarem uma das mais célebres histórias de traição, conspiração e homicídio da história da humanidade: era quase um ovo de Colombo, e o filme, de facto, não o desmerece.
Operações deste género - pôr não-actores, e mesmo não actores de perfil específico, como é o caso, a interpretarem textos clássicos - não são inéditas, muito menos em Itália, país onde a “experiência neo-realista”, de que os Taviani se reclamam (ver entrevista neste suplemento), propiciou variados momentos aproximáveis, de Rossellini a Pasolini. Há um primeiro efeito, muito imediato, quase automático: liberto de normas de dicção e de formas académicas de representação, o texto ganha outra pulsação, não necessariamente uma “nova vida” (seria estúpido dizer que o texto tão poderoso de Shakespeare precisava dela) mas pelo menos uma “vida diferente” - algo amplificado, no filme dos Taviani, pela questão da língua, italiano e dialectos do sul, em que o texto é dito (Shakespeare em dialecto da Calábria, eis um espectáculo que não se tem todos os dias).
Mas o golpe de asa dos Taviani está em mergulharem o filme na ficção e na representação, como se César Deve Morrer fosse, em 90% da sua duração, “teatro filmado”, conservando ao mesmo tempo uma distância, uma “perspectiva” sobre as circunstâncias em que decorrem a ficção e a representação. Ou seja, lembrando-nos que estamos numa prisão, e que aqueles actores são, na “vida real” assim tão confundida com uma “vida teatral”, gente presa por delitos nalguns casos inomináveis. É curioso que os processos empregues para ganhar essa distância funcionam, em certos momentos, também como um reforço dramático: por exemplo aqueles planos de pontuação, que mostram a prisão vista de longe, prestam-se maravilhosamente ao carácter palaciano, em circuito restrito e fechado, da intriga de Shakespeare (e vale a pena dizer que os espaços austeros da prisão - por exemplo o pátio onde decorre o assassinato - seriam óptimas “trouvailles” até para um filme que quisesse fazer o Júlio César em condições mais “normais”). Mas noutros momentos o efeito prático é mesmo o de suspender a dramatização, interromper a “suspension of disbelief”, assinalar o “documento” que todo o filme, incluindo a ficção nele contida, fundamentalmente é. Um plano que se estende o suficiente para que se passe sem ruptura do texto de Shakespeare a um diálogo entre presos, a revelar companheirismo ou tensão, no processo “denunciando” o modo de fabrico do filme - há uns quantos momentos assim, em que o “documento” é arrancado à acção, e são sempre mais poderosos do que as cenas em que essa denúncia parece mais “montada”, preparada como um acontecimento para a câmara. O mesmo se diria, de resto, da relação preto e branco/cor, que os Taviani salvam da redundância absoluta por baralharem um pouco as pistas (não os fazendo equivaler automaticamente à “vida” ou ao “teatro”), mas que parece um sublinhado desneeessário e desnecessariamente complicativo.
Depois há aquela coisa que é uma espécie de dádiva: a intensidade, nos olhares, nos gestos, com que estes presos devoram as frases de Shakespeare, como que se tornando nelas, dando uma reverberação real e palpável a toda a violência subjacente à peça, como se eles, ladrões e assassinos, soubessem melhor do que ninguém identificá-la e encarná-la. Alguém disse que está entre a catarse e um desejo de redenção - seja isso ou não, a energia libertada é espantosa.