A ditadura portuguesa e a sua polícia política
Nos anos 80 do século XX, Eduardo Lourenço colocou a pergunta retórica "o fascismo nunca existiu?" Hoje, segundo penso, não interessa tanto, no estado actual da investigação histórica em Portugal, afirmar que o regime político existente em Portugal entre 1932/33 e 1974 era "fascista", "totalizante" ou "autoritário". Afirmar que se tratava de uma ditadura com características conservadoras, reaccionárias e uma matriz católica não provocará grandes divergências. Ou seja, não interessa tanto saber se o "fascismo" existiu em Portugal, como interessa afirmar que vigorou uma ditadura em Portugal durante muitos anos, tendo até sido a que maior longevidade teve na Europa do século XX.
O que interessa é caracterizar, com o máximo de profissionalismo, capacidade interpretativa e veracidade, como funcionava esse regime ditatorial, através das suas diversas instituições, dos diferentes factores e aspectos sociais, económicos e políticos devidamente contextualizados. Interessa também verificar de que forma isso tudo foi vivido no dia-a-dia dos portugueses, sabendo-se que estes não eram uma entidade colectiva, mas uma colectividade de indivíduos com interesses e vivências diferentes. A cronologia e a contextualização obrigam a matizar essas mesmas experiências, que foram vividas de forma diferente nos anos 30 do que o foram nos anos 70 do século XX. O historiador, porém, produz um local e um tempo diferentes do local e do tempo onde ele próprio está, e depende dos testemunhos, sabendo que, ao tentar conhecer, analisar e organizar o passado através de um discurso narrativo, o faz em função do presente e perspectivado por este. O historiador pode ser de direita ou de esquerda, mas deve, porém, tender para o máximo de imparcialidade.
Outro aspecto muito importante é a análise comparativa, mas esta, quanto a mim, só deveria ser feita em períodos coevos e entre regimes afins, em contextos com um mínimo de denominadores comuns. Comparar permite não só detectar as semelhanças, como distinguir as diferenças e singularidades. Por exemplo, tão errado, quanto a mim, é concluir que a ditadura salazarista nos anos 30 e 40 se assemelhava, na sua essência, ao nacional-socialismo alemão, sem ter em conta a diferença de monta que é a ausência de anti-semitismo na ideologia e no Estado salazarista, como o faz Manuel Loff (O Nosso Século é Fascista!, 2008), como afirmar que a Ditadura portuguesa seria "moderada", o que já em si é uma contradição em termos, ou permitiria um pluralismo limitado ou "contido", exemplificando com a existência, entre 1932 e 1934, de um partido fascista - o movimento nacional-sindicalista, como faz Rui Ramos (História de Portugal, 2009, pp. 634 e 653, 698).
Num estudo sobre a polícia política da ditadura de Salazar e Caetano, entre 1945 e 1974, procurei saber quantas detenções e mortes houve por razões políticas em Portugal, comparando esses números com outros em regimes ditatoriais, no mesmo contexto histórico. Eu própria fui surpreendida, ao detectar que a PIDE/DGS - na chamada metrópole - prendeu e matou menos do que eu pensava. Já a sua antecessora, a PVDE, entre 1933 e 1945, prendeu e matou mais que a PIDE. A tentação, sobretudo se é voluntária e ideologicamente motivada, pode ser retirar daí a conclusão de uma "moderação" da ditadura portuguesa. Mas há muitas outras explicações e factores explicativos. Por exemplo, um deles é que a sociedade "civil" em Portugal era muito menos forte e plural, na primeira metade do século XX, do que noutros países europeus.
Em complemento a esta explicação, pode-se referir o facto de, entre 1926 e 1932, a ditadura militar, depois chamada Ditadura Nacional, ter vivido em clima de "guerra civil", aproveitando para eliminar progressivamente os diversos opositores políticos. À medida que fracassavam os movimentos civis e militares "reviralhistas" de 1927, 1928, 1930 e 1931, que se saldaram, aliás, por centenas de mortos, sucediam-se as vagas de prisões, deportações administrativas e saneamentos políticos. E não eram necessários os julgamentos para se enviar alguém durante dez anos para o Tarrafal. Após os republicanos e os "reviralhistas", foram derrotados os anarco-sindicalistas, até Salazar erigir como principal adversário político o comunismo, "a grande heresia da nossa idade" e, dessa forma, o PCP manteve-se como o principal adversário político até à irrupção das organizações de esquerda radical e de luta armada, no "marcelismo".
Quanto às mortes físicas, já se viu que houve muitas entre 1926 e 1932 e algumas entre esse ano e 1945, mas menos de então até 1945, na chamada metrópole, lembre-se sempre. Depois, surgiu o contexto do pós-II Guerra, em que o regime português se enquadrou na NATO e na ONU, em clima de ditadura interna e de guerra fria externa, a polícia política continuou a torturar, mas sem que isso se soubesse, ou que houvesse mortes. Francisco Martins Rodrigues foi submetido, em 1966, a uma simulação de fuzilamento, mas não acreditou que o fossem matar, pois sabia que não acontecia. Isso aconteceu, depois de dias e noites de tortura do sono e de constantes espancamentos. Sim, porque, tal como existiram saneamentos políticos "gerais" na ditadura portuguesa (Ramos, p. 634) - com picos em 1935 e 1947, mas sem deixarem de se verificar ao longo de toda a Ditadura -, e ninguém ingressava na Administração Pública sem uma informação "boa" da PIDE, esta recorreu à tortura.
E por que não utilizar a expressão, uma vez que as torturas foram os principais métodos de "investigação" da polícia política? A escolha de certas expressões, em detrimento de outras, dá um tom a uma realidade, iluminando-a ou deturpando-a. Dizer que a polícia utilizava "agressões verbais e físicas (especialmente a privação de dormir)" (Ramos, op. cit., p. 695) p. Ti., é uma verdade, mas não referir a duração da tortura do sono, nem as consequências para a vida, pode distorcer a realidade. Em 1965, Álvaro Veiga de Oliveira foi torturado pela PIDE durante 37 dias, dos quais 17 dias na "estátua" e "sono", além de espancado "com um cassetête eléctrico". Existem inúmeros outros testemunhos sobre o sofrimento causado pelas torturas, a pontos de presos desejarem a morte e lamentarem que esta não surgisse.
A detenção política, em Portugal, combinou três lógicas: a lógica de afirmação da autoridade, de carácter preventivo; a lógica da correcção, de carácter correctivo, e a lógica de neutralização. A primeira lógica, com carácter dissuasivo e intimidatório, era utilizada para a população em geral, sobre a qual pairava a ameaça do que lhe poderia acontecer, caso se metesse em "política". A segunda lógica era reservada aos que tinham sido "momentaneamente transviados" e, através do "susto" da prisão preventiva e correccional, nunca mais terem a ousadia de actuar contra o regime. Finalmente, a terceira lógica, de neutralização, tinha como objectivo retirar do espaço público os dirigentes e funcionários dos partidos considerados subversivos, nomeadamente os comunistas, através da prisão e das medidas de segurança.