Como ser jornalista no México e não morrer

Foto
dr

Foram assassinados 72 jornalistas mexicanos desde o ano 2000. A missão de Ricardo González é ensinar os jornalistas a contar as histórias do seu país sem darem a vida por uma primeira página

Ricardo González descreve um cenário e pede ao jornalista da revista 2 para imaginar que está lá no meio: "Pensa que estás numa rua do México, muito calma, sem aparentes sinais de perigo. Há mais pessoas na rua e a tarde vai a meio. Estás lá para fazer umas entrevistas para um artigo que andas a escrever." Fazemos o favor a Ricardo e puxamos pela imaginação. Quase que fechamos os olhos e lá estamos nós, calmos e serenos numa qualquer rua mexicana.

É aqui que entra a voz áspera e exaltada de Ricardo González, que nos diz: "Agora imagina que, numa questão de segundos, essa mesma rua se torna num campo de batalha! Há tiros a serem disparados de todos os lados, até contra ti! E agora, o que é que fazes?"

Boa pergunta. Não sabemos bem, e por isso o mais certo era engrossarmos ainda mais as estatísticas de jornalistas mortos no México: um total de 72 desde 2000, segundo a Repórteres Sem Fronteiras, que classificou o México como o país mais perigoso para exercer a profissão de jornalista.

Foi com estes números em mente que a Artículo 19, a organização pela defesa da liberdade de imprensa onde Ricardo trabalha, decidiu oferecer a profissionais e a estudantes de jornalismo do México o curso de Treino de jornalistas para cobertura de alto risco.

"Percebemos que os media não estavam preparados para cobrir noticiosamente o aumento exponencial de violência no México", explica Ricardo numa conversa por Skype, em alusão aos constantes conflitos entre os gangues do narcotráfico mexicanos e as autoridades.

"No nosso curso, não damos receitas infalíveis. As pessoas que tentam vender essas receitas, que têm de ser seguidas rigidamente, ou estão a vender um livro ou então estão a tentar vender um serviço de guarda-costas. O nosso propósito não é esse. O que nós tentamos dar é um encaixe mental aos nossos formandos para que saibam agir correctamente em situações de emergência, para que saibam estar prontos para qualquer situação em que possa haver um possível risco ou ameaça, mesmo quando o perigo está escondido ou disfarçado", diz Ricardo, num fôlego, enquanto cofia a sua barba rebelde e desgrenhada, típica dos antigos guerrilheiros da América Latina e tão contrastante com o seu cabelo ondulado e arranjado, como se estivesse prestes a ir para um cocktail da alta sociedade mexicana.

Para Ricardo, uma das maiores dificuldades para os jornalistas passa por identificar de que lado vem o perigo. Esta particularidade torna o caso mexicano único, garante. "É verdade que se podem fazer algumas comparações entre, por exemplo, o México e a Síria, mas há muitas diferenças. A maior delas é o facto de ser impossível marcar uma linha entre os dois lados do conflito. Não há uma terra-de-ninguém ou algo que separe as frentes de combate adversárias", explica.

Para saber como reagir a uma situação destas, o curso da Artículo 19 conta com as aulas de ex-polícias federais e agentes dos serviços secretos mexicanos. "A experiência que estes profissionais têm permite-lhes identificar como ninguém os métodos do crime organizado usados para atentar contra os jornalistas", explica Ricardo. É com eles que os jornalistas aprendem o que fazer em situações hostis. Explicam-lhes como reagir em tiroteios, como devem contar não só com o colete à prova de bala, mas também com a cabeça fria. Aprendem a sobreviver em ambientes extremos, como o deserto ou a selva.

As lições são dadas numa perspectiva de prevenção, nunca de ataque, para humanos e não para máquinas de guerra.

E por essa mesma razão o curso da Artículo 19 inclui um módulo que se concentra na estabilidade emocional dos jornalistas e no controlo do stress. "Esta parte do curso não é um luxo ou algo complementar. Se o jornalista em perigo não consegue lidar com a sua própria situação psicológica, então não vai conseguir trabalhar bem", garante Ricardo.

O medo constante de situações de risco e o reconhecimento de que não se está preparado para se defender em caso de violência "leva a que o jornalista maximize todos os sinais de perigo que o rodeiam, por mais pequenos que possam ser, e entre num estado de paranóia". Este módulo tem tudo para ser de difícil aplicação: a cultura do machismo, que tem raízes fortes no seio do jornalismo mexicano, ensina que os problemas resolvem-se com a quantidade necessária de copos de uísque e não com conversas lamechas e sentimentais.

Perguntamos a Ricardo se é comum haver jornalistas a sair da profissão por se sentirem demasiado inseguros. "Conheço muitos casos de pessoas que abandonam o jornalismo, sim, mas não é só porque têm medo. É que em muitos casos ser jornalista não é economicamente viável, os salários são muito baixos", explica. É comum jornalistas virarem costas à profissão e passarem a trabalhar para agências de comunicação e relações públicas, servindo empresas e até o Governo. "Também há casos de pessoas que tinham condições de trabalho tão más que se demitiram e que hoje trabalham para empresas de limpeza."

Ao factor económico junta-se ainda outro essencial para uma total compreensão dos media mexicanos: a promiscuidade entre os donos dos grandes grupos editoriais mexicanos e o poder político. Esta realidade é, para Ricardo González, meio caminho andado para que, em situações de pressões de uma entidade poderosa em relação a um órgão de comunicação social, a corda se parta pelo lado mais fraco: o lado do jornalista. "Muitas vezes os donos dos jornais não estão dispostos a avançar para protegerem os seus jornalistas, o que resulta inevitavelmente no despedimento de muitos profissionais como resultado de uma luta de poderes que os transcende enquanto profissionais", argumenta.

Os jornalistas mexicanos ficam assim encurralados. Por um lado, vivem e trabalham num país em que a violência contra os jornalistas chega a níveis sem igual. Por outro, os jornalistas trabalham com condições que lhe são desfavoráveis, recebem mal e não são apoiados, inclusive no plano jurídico, pelas administrações dos seus grupos editoriais.

Então, nesse caso, o que é que prejudica mais o jornalismo mexicano?, perguntamos. A violência ou as condições de trabalho baixas? Ricardo hesita e leva algum tempo para pensar. "É ela por ela."

Sugerir correcção