Teotihuacan, deuses e sacrifícios
Não faltam mistérios na Cidade do México, onde tudo parece ser como as "as pirâmides pré-cortesianas, que ocultam quase sempre outras", como escreveu Octavio Paz. E não há mistério maior do que Teotihuacan, "o lugar onde foram criados os deuses", chamaram-lhe os aztecas. Quando estes se depararam com a cidade, esta já era uma área arqueológica - o início do império azteca é em 1325, o abandono de Teotihuacan acontece por volta do ano 650. Os turistas continuam a desaguar lá com a perplexidade dos aztecas, que rapidamente relacionaram o que viam com a sua própria teologia - nós chegámos lá de forma tão imprevisível quanto uma tarde no Zócalo: uma banca, um cartaz, um preço. Dias depois, uma carrinha espera-nos à porta.
Teotihuacan fica a 38 quilómetros do centro da cidade, mas o passeio não é tão linear - e ainda bem. A primeira paragem é um local de síntese e emblemático: a Praça das Três Culturas - ponto de encontro entre a cultura azteca (ruínas de Tlateloco, cidade gémea de Tenotchitlan e a ela leal na queda), a cultura colonial (a Igreja de Santiago, construída com as pedras antigas) e a que nasceu das duas, a mexicana (os edifícios habitacionais que a rodeiam); e altar de "sacrifícios" onde quase sentimos a corrente sangrenta a que tantas vezes Octavio Paz faz referência. Afinal, aqui morreram chacinados 40 mil homens, mulheres e crianças em 1521 (há uma tumba transparente onde se vêem ossadas de um homem e uma mulher que morreram abraçados, "os amantes de Tlateloco"), cerca de 300 estudantes foram mortos em confrontos com os militares em 1968 (Carlos Beltran Maciel sobreviveu e nunca mais saiu daqui: na repetição da história, está a sua homenagem aos que caíram) e o terramoto de 1985 viu cair muitos dos prédios de habitação que a rodeiam. Quando o aglomerado citadino fica para trás, vemos zonas industriais tomarem conta da paisagem. Os morros estão cobertos de casas, como colmeias mais ou menos coloridas: quando deixou de haver espaço na cidade, as pessoas começaram a ocupar os terrenos vagos. E já bem avançados no cenário desértico, ameias e contrafortes chamam a atenção no vazio: é o ex-convento de San Agustín, do século XVI, e o local onde as piñatas mexicanas nasceram - método didáctico dos missionários espanhóis para ensinarem a combater o mal.
Antes de entrarmos, o que seria uma armadilha de recuerdos dá-nos a provar pulque e é com o sabor da bebida típica dos teotihuacanos (revitalizada em pulquerias na Cidade do México) que finalmente vemos a "cidade dos deuses", ofuscados imediatamente pela Pirâmide do Sol, que nos recebe. É uma boa introdução: do topo dela, a maior, 65 metros, vemos toda a cidade descoberta - apenas 20 por cento. Contudo, chegar lá acima é tarefa de fôlego, ausência de vertigens e paciência: os visitantes são tantos que há filas enquanto se sobe e desce. Do alto, abarcamos todo o sítio arqueológico (apenas 20 por cento da cidade, fundada antes da era cristã, foi escavado, num trabalho que começou no início do século XX), assente em planície verdejante, rodeada de montanhas. A Praça da Lua é magnífica e subir à sua pirâmide (mais íngreme do que a do Sol), ver a Calçada dos Mortos desaparecer no horizonte (dois quilómetros), percorrê-la para lá dele até à cidadela e ao templo da "serpente emplumada", entre edifícios que parecem todos pequenas pirâmides, esmaga-nos. Vagueamos entre as colunas do templo de Quetzalpapalotl, encaramos o famoso mural do jaguar e somos constantemente assaltados pelo olhar pétreo das esculturas híbridas de animais sem conseguir imaginar a explosão colorida que seria esta metrópole no seu período áureo, quando os edifícios que hoje vemos em pedra nua estavam cobertos de pinturas.
Há um vago sentimento religioso que toma conta da nossa incompreensão aqui, perante esta ode a deuses desconhecidos. Mais conhecida é a Nossa Senhora da Guadalupe, peregrinação no regresso à cidade. A Basílica de Guadalupe recebe 20 milhões de peregrinos anuais no seu recinto, onde sobressaem a antiga igreja, "torta" (não é ilusão óptica, é mesmo a natureza movediça do solo), arquitectura típica colonial, e a nova, arquitectura moderna, como um ovni pousado no terreiro. A imagem da Virgem (na vestimenta - de fibras de maguey, um cacto - de Juan Diego, o índio a quem surgiu a aparição, em 1531, numa altura em que a conquista era recente) é vista de qualquer ponto da estrutura circular, mas um tapete rolante passa diante dela para maior proximidade. O seu culto no México é total e reflexo disso é o dia 12 de Dezembro, a sua festa, conhecida no país como "o dia das Lupitas" - Guadalupe é o segundo nome feminino mais comum aqui (Maria é o primeiro).