James Bond herói ferido no coração do império
O agente secreto ao serviço de Sua Majestade é agora um herói dúbio, esquivo, com densidade psicológica, traumas antigos e relações de afecto. Enfim, humano. A figura certa para este tempo, para o clima de austeridade, de dúvidas quanto ao futuro da Europa e do mundo como o conhecemos.
O salto de paraquedas da rainha Isabel II de Inglaterra num vestido cor-de-rosa pérola ao lado de um James Bond aperaltado de smoking, na abertura dos Jogos Olímpicos de Londres em Julho, era uma visão que poucos (mesmo os mais bizarros fãs de Bond) alguma vez imaginariam. Após uma década de incertezas, tragédias e lutos, 2012 foi um ano de sucesso para a monarquia inglesa (com o Jubileu de Diamante da Rainha, 60 anos no trono) e para o Reino Unido (Olimpíadas). Por isso, este salto de helicóptero só podia fazer eco no título - Skyfall - do 23º filme da saga de James Bond (o terceiro de Daniel Craig) que fecha em grande o annus mirabilis para a Britânia.
Mas essa queda (Skyfall) pode também ser vista por outro prisma: aquele de um homem que, 50 anos depois do primeiro filme (Dr. No, 1962), se está literalmente a despir da figura do espião como (sempre) o conhecemos, masculino, mecânico, puramente ao serviço de Sua Majestade, para encarnar o herói contemporâneo, dúbio, esquivo, com densidade psicológica, traumas antigos e relações de afecto. Enfim, humano.
Este Bond de Daniel Craig vai beber a figuras como Jason Bourne (trilogia) e Jack Bauer (24Horas), personagens que, por sua vez, se inspiraram na ideia de espião iniciada pelos filmes de Bond, explicam os historiadores com quem o Ípsilon falou a propósito de Skyfall. Contudo, no mundo pós-Guerra Fria e pós-11 de Setembro, em que o inimigo não tem mais um rosto ou uma nacionalidade, "esta figura psicologizada, fragilizada e até vulnerável do novo Bond é a figura certa para este tempo, para o clima de austeridade, de dúvidas quanto ao futuro da Europa e do mundo como o conhecemos", diz Christoph Laucht, professor na Universidade de Leeds, no Reino Unido. Ao contrário de Roger Moore, "que era um Bond sem espessura, que partia para uma missão, seduzia uma série de mulheres e, de vez em quando, lá soltava uma piada", Craig tem "um lado psicológico mais elaborado": "Desaparece durante uns tempos, depois, regressa; assume vendetas de terceiras pessoas, completamente alheias aos objectivos do MI6, entra no apartamento de M para aceder de forma ilícita a material confidencial. Já não é obediente, não é conformista, não segue as regras que lhe impõem", explica Laucht.
Nesse sentido, em tempos de movimentos anti-capitalistas, de questionamento da ordem económica e financeira mundial ou de ciber-terrorismo, este Bond amargo, de corpo lacerado, por vezes de barba por fazer, que não acata ordens e põe interesses próprios acima dos do país, é "o retrato credível deste tempo", continua. O Telegraph escrevia esta semana: "Ao reconhecer o perigo do ciber-terrorismo da mesma maneira que Christopher Nolan [no último Batman] jogou com a vulnerabilidade do ocidente do pós-11 de Setembro, Skyfall é o filme de Bond para a geração do Anonymous."
Masculinidade e homoerotismo
Mas este Bond está também mais próximo do Bond literário, criado por Ian Fleming. William Boyd, o autor escolhido por Fleming para continuar a saga, cujo primeiro livro sairá em 2013, disse no festival literário de Hay-on-Wye, em Inglaterra, a propósito dos 50 anos de Bond: "Ele é um homem de meia-idade, um espião de meia-idade e isso é uma das coisas que me interessa." O novo romance "situa-se" em 1969, quando Bond tinha 45 anos. "Sou um romancista realista e o que me interessa no Bond é o ser humano. Não vai haver montanhas com bombas atómicas ou epidemias mundiais, gadgets, super-poderes ou inimigos terríveis - vai haver um psicopata credível, não um psicopata terrível. O mesmo nos envolvimentos amorosos, no próximo romance, serão totalmente credíveis."
Segundo Boyd, "o Bond da literatura é uma figura muito mais interessante do que o dos filmes, que é uma espécie de cartoon. O Bond literário é uma personagem muito mais perturbada, complexa, com diferentes facetas." Isto, até chegar Daniel Craig.
O historiador britânico James Chapman, professor na Universidade de Leicester e autor de Licence to Thrill: A Cultural History of the James Bond Films (Columbia University Press, 2001) escreve no seu livro que a popularidade de Bond tem mais a ver com o facto de ele se ter tornado num ícone da cultura pop do que com o êxito de bilheteiras. Nesse sentido, os filmes de Bond questionam noções de identidade, nação, imperialismo, classe e masculinidade. É a velha dicotomia entre a ideia de um herói "à antiga" (britânico) vs. um agente de imperialismo cultural (americano).
Até mesmo na ideia de masculinidade, este Bond de Craig é diferente. "Aquele momento em Casino Royale (2006) em que ele sai da água de calções azuis, numa clara alusão à famosa cena de Ursula Andress de bikini, é talvez a situação menos heterossexual do cinema de James Bond", explica Christoph Laucht. Ainda em Casino Royale, a cena de um Bond nu, amarrado a uma cadeira sem fundo, chicoteado nos genitais pelo vilão Le Chiffre, já tinha conotações homoeróticas fortes. Mas o historiador ainda não viu o novo filme, Skyfall, e a tensão homoerótica que se estabelece entre Javier Bardem e Daniel Craig. O vilão abre-lhe a camisa e agarra com vigor as pernas de um James Bond manietado, perguntando-lhe: "Qual é o treino regulamentar para este tipo de situações?" Bond responde: "O que te faz pensar que é a minha primeira vez?" O Guardian dizia que a resposta de Bond era "uma lembrança tácita de que, afinal, ele sempre estudou em Eton", uma escola privada de elite para rapazes, em Inglaterra.
Anacrónico mas deste tempo
James Chapman explica que, ainda que a figura de Bond, no cinema, tenha sido sempre anacrónica (surge quando o Reino Unido e o seu império já não estão no centro do mundo), "ele foi sempre um barómetro do seu tempo". Isto é: em 1962, em Dr. No, Sean Connery é o 007 enviado à Jamaica para investigar o desaparecimento de um agente e essa investigação leva-o até um cientista louco que quer destruir o programa espacial dos EUA. Foi apenas coincidência o filme sair em Outubro de 1962 nos EUA em plena Crise dos Mísseis de Cuba, precisamente, "a história de uma ilha no Caribe com um ditador louco que quer destruir os EUA", diz Chapman.
Esta ideia é, por isso, válida para as cinco décadas de filmes de Bond: se, nos anos 60, os inimigos eram russos ou aliados dos russos, e nos anos 70 os vilões eram "barões da droga" de países da América Latina, agora, o inimigo não tem rosto: em Quantum of Solace (2008), Bond (Craig) luta contra uma corporação internacional que se dedica ao eco-terrorismo e ao controlo de reservas de águas na Bolívia. Em Skyfall, temos um Javier Bardem loiro (aka Julian Assange?) que rouba um disco duro com informações confidenciais sobre a identidade de espiões da NATO infiltrados em organizações terroristas.
Pode parecer uma contradição dizer-se que Bond é anacrónico e deste tempo, mas essa é a natureza da figura: um agente secreto britânico que, na sua vertente cinematográfica, piscou muitas vezes o olho a Hollywood. "Os filmes do Bond tiveram sempre de negociar essa relação de poder com a América: a Inglaterra aparece como figura principal e os EUA sempre como secundários, adjuvantes, quando isso é o reverso do que acontece no mundo real", explica Chapman.
Chapman lembra que é só a partir de Goldfinger (1964), terceiro filme da saga e primeiro produzido nos EUA, que a América se apaixona por Bond. Na exposição 50 anos de Bond, este Verão no Barbican, em Londres, havia uma sala dedicada a Goldfinger, um vídeo de Sean Connery na première do filme sob a histeria das fãs num "quarto dourado", um corpo feminino pintado de ouro sobre a cama circular, a gabardine de Pussy Galore e a pistola dourada usada no set. A curadora da exposição, Bronwyn Cosgrave disse ao Guardian: "Goldfinger transformou Bond num fenómeno de cultura pop que, na época, só tinha rival nos Beatles."
Bond foi sempre um espião moderno no sentido em que "usa o último grito da tecnologia, é sexualmente livre e pertence claramente a uma sociedade de consumo", explica Chapman, mas é, ao mesmo tempo, um "espião antiquado", com um "discurso de tradição, que se apresenta nas vastas paisagens inglesas quase como se fosse um "filme de época", como Downtown Abbey ou Sherlock Holmes", continua o historiador.
A ideia de espião moderno vem do século XIX e das relações do thriller de espionagem com a noção de Estado e de Império. Claro que Bond é um espião da Guerra Fria, mas já havia espiões antes: "No início do século XX eram franceses ou russos, depois durante a Segunda Guerra eram espiões da Alemanha nazi." Mas todos os thrillers de espionagem, continua Chapman, "são retratos do seu tempo, índices da situação política e económica das sociedades que retratam". Nesse sentido, Bond é "profundamente britânico", tanto na literatura como no cinema, enquadra-se no thriller de espionagem e apresenta comentários certeiros sobre classe e identidade nacional. Chapman conclui: "Se tiramos a britaneidade ao Bond, ele torna-se apenas numa personagem de um qualquer filme de acção."
Regresso a casa
Era precisamente na ideia de "britaneidade" que a exposição 50 anos de James Bond no Barbican se debruçava. O director do Barbican, Nicholas Kenyon, justificava assim a mostra: "Não houve maior ícone do design e do estilo britânicos dos últimos 50 anos do que o James Bond." O Independent perguntava: "Nem a mini-saia de Mary Quant, nem a mobília de Ron Arad, nem os folhos de Vivienne Westwood?"Talvez o facto de a abertura dos Olímpicos ter apresentado, entre dezenas de figuras históricas (Shakespeare, rainha Vitória, Churchill), uma personagem de ficção como Bond é sintomático da importância do agente secreto no imaginário britânico. "Bond é um arquétipo cultural. Ser uma figura de ficção não é incongruente com o facto de o associarmos à ideia de nação e de identidade nacional. Ele é parte da mesma paisagem cultural, como um rei ou um escritor. É como pensar no Rambo como um símbolo da América", diz Chapman.
Skyfall é também o Bond mais britânico dos últimos tempos. É o regresso de Sam Mendes, realizador de Beleza Americana, a casa, após cinco filmes em Hollywood. Daniel Craig explicou ao Observer como convenceu Mendes a abraçar o projecto: "Ele é um grande cinéfilo e é extraordinário que o seu primeiro filme britânico seja um James Bond, que é o mais britânico que se pode ser." Craig contou que conheceu o realizador numa festa, já tinha tomado uns copos e disse a Mendes que, no próximo Bond, queria "regressar ao humor, à leveza e à sofisticação da figura, porque queria sondá-lo para o projecto". Craig tem noção de que a saga pode ser um espartilho, porque é preciso "nunca, nunca esquecer que isto é um filme Bond: o Sam não dirigiu Ibsen, aqui."
Curiosa essa ideia de regresso a casa de Mendes, porque, no filme, quem regressa, a Inglaterra, mas também à infância, é o próprio James Bond. Skyfall está cheio de jogos patrióticos: é a sucessão dos caixões com as bandeiras; um Bond contemplando o topo dos edifícios de Londres com mais bandeiras desfraldadas ao vento; são as piadas sobre o "fim do império" e o perigo de ataques terroristas.
Não é por acaso que M (Judi Dench), quando se vê encurralada por constrangimentos orçamentais (fruto dos novos cortes no MI6 e de medidas de austeridade) e empurrada para a reforma antecipada, cita, diante da Ministra do Interior, Alfred, Lord Tennyson, assim:
Não somos mais aquela força que em tempos antigos
moveu a terra e o céu; mas somos, somos
do mesmo temperamento de corações heróicos
feitos fracos pelo tempo e destino, mas fortes em ambição
de lutar, buscar, encontrar e não nos render.
Coincidência (ou não) foram igualmente estas palavras de Tennyson as escolhidas para inspirar a escultura da aldeia Olímpica em Londres. É um poema memorável do século XIX britânico sobre um velho Ulisses que regressa, exausto, a Ítaca, mas que, apesar da idade e do cansaço, anseia por partir de novo. É uma exortação à viagem, à luta e ao espírito da juventude, de aventura e de conquista. Dito assim, quando M, uma das líderes do MI6, pergunta à ministra "sente-se segura?", é literalmente uma exortação à velha Inglaterra para reavaliar o seu lugar no mundo, hoje, quando o inimigo não é mais identificado, diz M, "por uma farda, uma cara ou uma bandeira".
Bond esteve sempre em consonância com a história do Reino Unido, lembra James Chapman: Fleming publica o primeiro livro, Casino Royale, em 1953, ano da coroação da rainha Isabel II. Em 1977, The spy who loved me, "tem uma série de referências ao império e à marinha de guerra britânica" e coincide com o Jubileu de Prata da rainha. Este, Skyfall, em que se questiona o papel do Reino Unido no mundo da espionagem cibernética, sai no ano do Jubileu de Diamante da rainha.
Christoph Laucht diz que, nas suas aulas, recorre muitas vezes aos filmes de Bond para exemplificar momentos marcantes da história do Reino Unido no século XX. E é preciso não esquecer que o regresso de Bond a casa, também significa à Escócia, ainda que para fãs mais incautos a origem escocesa do espião seja uma revelação. James Chapman explica que Bond só se tornou escocês por causa de Sean Connery. Quando o actor chegou ao casting de Dr. No, Ian Fleming não ficou convencido, porque Connery era escocês. Mas Connery "tinha uma presença, não era um actor britânico como os outros, tinha um estilo americano de representação, era uma espécie de Gary Cooper ou Steve McQueen", conta Chapman. Fleming gostou tanto dele que inventou para Bond um passado escocês no livro que estava a escrever em 1962. "Connery é um escocês de Edimburgo, tem um sotaque em que não se denota classe social, e isso faz de Bond um espião flexível e adaptável a qualquer situação".
É, por isso, importante que Bond regresse a casa, à Escócia, em Skyfall. Chris Laucht lembra que este é também um tempo em que a "União pode estar em risco por causa do referendo à independência da Escócia em 2014". Ao regressar à Escócia, Bond está a "reafirmar uma identidade" cultural (e espacial) britânica, "renegociando o papel das diferentes nações na União", o que é sobretudo sintomático num momento em que o próprio Reino Unido está a repensar a sua relação com o continente e com a União Europeia.