Casas que já foram da aristocracia dão agora tecto aos mais pobres
José Carlos, um dos moradores mais antigos - está aqui desde 2000 -, tem 29 anos e a vida deu-lhe uma especialização em "alojamento familiar não clássico", classificação que os Censos usam agora para designar as casas entre o "clássico" e a "barraca". "Anda muita gente enganada porque as barracas ainda existem, mas agora já não são feitas de madeira", explica. "Não tive uma infância feliz, saí de casa aos 10 anos, vivi sempre na rua e em casas ocupadas e continuo à procura da minha liberdade", resume.
O "Zé", como é conhecido por toda a gente, é um faz-tudo, desmonta computadores, lida com instalações eléctricas, pinta, faz biscates. Vive a crise da identidade: nasceu cabo-verdiano no Portugal de 1983 mas nunca visitou Cabo Verde. Ironias da lei antiga que ainda hoje lhe dão histórias de discriminação para contar e vender.
"Estamos aqui para construir, não para destruir", adverte triste com as "bocas" que diz ouvir de vizinhos. "Muita gente diz mal, mas nem sequer nos conhece, não falam connosco", conta mostrando a sua pequena casa onde vive com a companheira, Séfora Silva. Uma cozinha, uma sala e um quarto, com o chão impecavelmente limpo e asseado. Tudo junto nem chega ao tamanho de uma assoalhada numa "casa clássica". A tinta teima em saltar das paredes por causa da humidade. A água ainda vem do furo do poço antigo da horta. A luz é subalugada "de uma vizinha que empresta".
O pátio onde esta comunidade de ocupantes vive não é visível da rua. É tapado por uma moradia quase centenária, das que existiam na antiga Horta do Peixe Rei. A horta chegou a ser propriedade, na década de 1930, de outro José Carlos, desta feita, José Carlos Girão Calheiros (1869-1962), condutor de obras públicas e antigo presidente do Club Setubalense, à época uma associação da elite setubalense.
A fachada de azulejos rematada com um friso de flores decorativo, uma concha e uma estátua denunciam que a construção é contemporânea do Bairro Salgado, bairro da antiga burguesia industrial com várias casas representativas do estilo Arte Nova e Art Deco, construído nos anos 20 e 30 do século passado. A casa também está ocupada, mas estes moradores não se mostraram receptivos a falar com o PÚBLICO.
Casas ricas com gente pobreOs dois filhos pequenos de Susana Joaquim, 38 anos, nunca conheceram outra casa que não a do pátio. "Nós batalhamos todos os dias para sair daqui", assegura. Aqui todos os dias são dias mundiais da erradicação da pobreza. "Sentimos esta crise nos preços dos alimentos", queixa-se. Aqui ninguém faz compras há muitos anos: "ajeitam-se" móveis antigos e electrodomésticos recuperados do lixo.
Susana ainda viu a casa rica da frente, que nunca ocupou, com o recheio original ("até tinham um elefante com dentes de marfim"). "A casa era de uma senhora muito rica que já morreu. Um dos três herdeiros meteu-nos em tribunal por causa da ocupação das casas do pátio, mas o juiz mandou ficarmos até nos darem uma casa", conta. Desde 1998, altura em que as primeiras ocupações se iniciaram, Susana diz que os ocupantes nunca foram contactados directamente pelos donos das casas, "só pela via dos tribunais". Na Avenida Portela, o telhado de uma casa antes ocupada por Susana já caiu, mas aqui tudo é reparado e acarinhado.
Os grilhões da adversidade aprisionaram estas famílias a este pátio, numerado de A a D, com os cães e os pássaros de gaiola. Mas querem sair. "Disseram-nos em 2011 que ainda estão a tratar dos processos de 2004. A segunda via do nosso processo é de 2005, talvez seja agora a nossa vez", diz com esperança. "Nós não nos escondemos, nem escondemos a nossa situação, é bom que se saiba para podermos melhorar a nossa situação de vida", diz.
Séfora Silva concorda. Foi o amor que a trouxe aqui. O amor pelo Zé, não pela casa, entenda-se. Faz limpezas e lembra que na comunidade "toda a gente faz pela vida". As duas ponderam recorrer ao rendimento mínimo garantido, mas temem a burocracia. Até lá ninguém pára. "A vida não está para estarmos à espera que tudo nos caia do céu", sentencia Susana.
Pedidos de casa duplicamA pobreza está longe de ter sido erradicada em Setúbal. Os pedidos de habitação estão a aumentar no concelho. Este ano, de Janeiro a Agosto, entraram na câmara 28 novos requerimentos em busca de habitação. Em igual período no ano passado houve 11 novos pedidos. A autarquia tem aproximadamente 3000 pedidos de habitação activos, quando em 2007 este número se cifrava nos 2500. O número de casas de habitação social disponíveis na capital de distrito é muito reduzido.
A pobreza tem feito crescer bairros clandestinos em zonas periféricas da cidade. Na Estrada da Graça, a meio caminho entre o centro histórico da cidade e a zona industrial da Mitrena, há antigas fábricas ocupadas. Cerca de 60 famílias (mais de duas centenas de pessoas) construíram divisões de tijolo para viver na Quinta da Parvoíce (propriedade do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana) e na antiga fábrica da Mecânica Setubalense (propriedade da Segurança Social). A maior parte dos moradores é de origem angolana, originários de vagas de imigração dos finais do século passado. Já tiveram casa e emprego. Hoje criam os filhos e os netos nestes bairros improvisados.
A situação na Quinta da Parvoíce, que também já teve a designação de Quinta das Fontainhas nos anos 30 do século passado, já foi notícia, em Setembro de 2011, por outros motivos, quando a EDP acompanhada da polícia foi cortar a luz proveniente de puxadas ilegais.