O montismo é italiano. É difícil exportá-lo

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Mario Monti no Palácio Chigi, no seu gabinete de trabalho Daniel Rocha/arquivo

Mario Monti fascina os europeus. Não foi chamado ao Governo por ser competente, mas por ser capaz de tomar as decisões impostas pela crise. Representa uma tentativa de reinvenção da política. Inspira. Mas é difícil de transpor o modelo para outras culturas políticas

Quando Mario Monti foi nomeado primeiro-ministro, no dia 13 de Novembro de 2011 - dois dias depois da nomeação de Lucas Papademos na Grécia - houve um "arrepio democrático" em vários meios políticos europeus, inclusive em Portugal. Os "mercados" teriam imposto "governos tecnocratas" aos dois países, passando por cima da "soberania popular" e do "regular funcionamento das instituições democráticas".

Um ano depois, essa percepção inverteu-se e o modelo Monti passa a ser encarado como "solução democrática de excepção", aplicável noutros países. O montismo é, no entanto, um fenómeno radicalmente italiano, embora responda a uma "crise da política", também visível noutros lugares da Europa. Por isso convém revisitá-lo.

O "montismo", escreve ironicamente o filósofo político Carlo Galli, "é o último contributo italiano para a história do pensamento político - depois do maquiavelismo, do futurismo, do gramscismo e do fascismo". Pouco depois de Monti ter sido nomeado, como "solução transitória" para uma emergência nacional, nasceu o montismo. A "excepção" começou a transformar-se em "normalidade", a ponto de toda a política italiana ser hoje dominada por um insólito tema: a hipótese de um governo "Monti-bis" depois das eleições de Abril. As sondagens indicam que a maioria dos italianos desejaria que Monti, com este ou outro Governo, se mantivesse em funções "até a crise estar resolvida".

Por que caiu Berlusconi?

O Presidente Giorgio Napolitano não demitiu Silvio Berlusconi. Forçou-o a pedir a demissão depois de ele ter perdido a maioria parlamentar. Tanto a esquerda como a direita não tinham interesse em eleições, dada a dramática situação financeira e o facto de nenhum partido desejar assumir a responsabilidade de afrontar a crise.

Berlusconi estava sentenciado desde que, em Junho, a Bolsa de Milão começou "a arder". A crise não era especificamente italiana, mas, a partir desse momento, a Itália tornou-se no novo epicentro da crise na Europa, mais intenso do que a Espanha, fazendo temer um "efeito de avalancha" em toda a zona euro.

Até Novembro, foi a agonia. Os italianos, que há muito se sabiam "em declínio", descobriram que estavam "à beira do abismo". Com apoio da opinião pública, da elite política, dos media, dos meios empresariais e das capitais europeias, Napolitano nomeou Monti.

De um dia para o outro, a Itália mostrou-se pronta para um rigoroso plano de austeridade e reformas. O novo Governo era sustentado pela "estranha maioria" - o Povo da Liberdade (PdL, direita, de Berlusconi), o Partido Democrático (PD, centro-esquerda, de Pier Luigi Bersani) e as várias formações centristas. Não era nem um Governo tecnocrático nem uma "grande coligação" à alemã. Era um "Governo presidencial", em que os dois grandes partidos não quiseram fazer-se representar. A sua agenda imediata eram a austeridade, as reformas - na maioria impopulares - e o restabelecimento do estatuto da Itália, tratada na Europa e no mundo ao nível da anedota.

Chegamos ao primeiro nó. Berlusconi não caiu pelos seus escândalos e desmandos, tolerados durante anos. Caiu por incapacidade de agir. E Monti não foi nomeado por ser um "técnico competente". Competentes há muitos. O que Napolitano escolheu foi um executivo com "capacidade de tomar decisões".

Emergiu um relativo consenso em torno de um conjunto de medidas e reformas urgentes. Mas o PDL não podia tomar a iniciativa de metade delas sem ferir os seus interesses eleitorais e clientelares; o PD considerava necessária a reforma do mercado do trabalho, mas não queria entrar em choque com os sindicatos. Comprometeram-se a votar em conjunto as reformas de Monti. De resto, abdicaram da sua responsabilidade na governação, concentrando-se nos jogos políticos. A cota de aprovação dos partidos desceu para entre 3 e 5%, a do Parlamento está na casa dos 10.

Mais do que os escândalos da classe política, designada por "La Casta", os cidadãos não lhe perdoam a ineficiência. Noutros tempos, normais, seriam cúmplices cínicos. Mas a crise deslegitimou "os políticos sem qualidade".

A crise da política

"Nos países ocidentais, a crise financeira está imbricada com uma crise mais profunda", escreve o politólogo Piero Ignazi. "Sob a pressão da queda da bolsa, da explosão da dívida e da fuga de investimentos, os sistemas democráticos revelaram a sua fraqueza noutra vertente: a política." A sua fragilidade vem de baixo e de cima. "Os sistemas democráticos, já minados pela desconfiança que vem de "baixo", confrontam-se com uma inédita falta de autoridade no "cimo". A crise está também, e sobretudo, na política." Há uma "crise de liderança nos Governos democráticos".

A desconfiança nas instituições e nos partidos leva a surtos de populismo e "antipolítica". São fenómenos recorrentes no Norte e no Sul da Europa. Mas tornam-se ameaça quando o sistema político deixa de responder. O modelo italiano da alternância entre duas coligações heteróclitas, em que os partidos da maioria se bloqueiam mutuamente, demonstrou a sua inviabilidade tanto nos Governos de Berlusconi como nos de Romano Prodi.

A popularidade de Monti vem em grande medida do contraste entre a capacidade de decisão do seu Governo e a inércia dos precedentes. Observou o politólogo Renato Mannheimer: "Os partidos aparecem divididos e incapazes de compreender que, em muitos casos, podem obter mais consenso público propondo medidas impopulares - mas vistas como úteis ao desenvolvimento - do que limitando-se a defender os interesses desta ou daquela categoria."

As sondagens dão-lhe razão. Os italianos discordam maioritariamente das políticas de austeridade, da alteração das pensões de reforma, da nova lei do mercado do trabalho ou da elevação do IMI. Mas, em meados de Setembro, 52% declaravam confiar no Governo e 55,2 em Monti.

Para mais, Monti mostrou uma insuspeitada sensibilidade política. "Monti e o seu Governo desenvolveram uma verdadeira pedagogia da crise para justificar a sua drástica e severa política de austeridade e rigor", anota o politólogo francês Marc Lazar. Tal como soube dar sinais políticos, como a luta contra a evasão fiscal, a lei contra a corrupção ou a descida simbólica de um ponto no IRS para os dois escalões mais baixos.

Na sua "pedagogia da crise", foi mais longe e explicou aos italianos que a Europa está numa viragem de época: não podemos viver como dantes, temos de reformar o Estado social e, para criar emprego e deixar de ostracizar os jovens, é necessário pôr termo ao mito do "emprego fixo para toda a vida". Isto é: agir com o horizonte do longo prazo.

O montismo

"Monti aparece como o principal garante perante os problemas europeus e perante a debilidade da política nacional", resume o politólogo Ilvo Diamanti. Os italianos, apesar da exuberância da "antipolítica", não são indiferentes à política. Querem ter "um Governo político", prossegue Diamanti, mas temem que depois das eleições tudo volte ao mesmo. "O montismo reflecte a insatisfação dos cidadãos com a nossa democracia representativa. E indica uma exigência de mudança, confusa, mas largamente partilhada."

O montismo representa, em certa medida, um sentimento popular antipartidário e faz lembrar a crise da corrupção dos anos 1990, que dizimou a antiga classe política. Os eleitores encaram-no "como instrumento para se "libertarem" do sistema político precedente", conclui Diamanti.

Monti sempre manifestou a máxima deferência pelo Parlamento, de quem depende para existir e para fazer as reformas. A originalidade está no estilo. Monti só pode existir politicamente como figura super partes. Para a direita, é de esquerda. Para a esquerda, representa a "burguesia moderada".

Diamanti define o montismo como uma espécie de "aristocracia democrática". Democrática porque sustentada pelo Parlamento e pelo consenso popular. "E porque é temporária e não ambiciona reproduzir-se." Foi devastador para os partidos: "O tecnocrata que faz política" passou a encarnar o "político competente". Para Galli, "o montismo é a política como distância e como autoridade - o contrário do poder carismático e populista". É um (passageiro) regresso das elites. Na versão optimista, Monti seria "o obstetra do doloroso mas venturoso parto do que levará à Terceira República e a uma política finalmente normal."

A obsessão de Napolitano é reconstruir os partidos e a política para reformar o Estado. Berlusconi foi um dos primeiros a ter noção do impacto de Monti. Disse aos amigos que, depois de Monti, nada voltaria a ser igual na política italiana.

Modelo para quê?

O modelo Monti é dificilmente "exportável". Tem raízes na muito específica cultura política italiana e numa sociedade rica e em muito melhor situação do que Portugal ou mesmo a Espanha. Ele foi chamado ao poder com um duplo objectivo: formar um Governo com "capacidade de decisão" para responder à crise; e, sobretudo, para suster a degradação da política que poderia fazer implodir o sistema político democrático.

Em Portugal ou na Espanha assiste-se a uma rápida degradação dos partidos, ao crescimento da "antipolítica" e à erosão da autoridade democrática. Neste sentido, é pertinente aprender com a experiência Monti e com a sua "pedagogia da crise". Mais duvidoso é tentar transpor o seu modelo institucional para outra cultura política. Inspira, não se copia.

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