Torne-se perito

O escritor que brincava com as palavras e consigo próprio

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Manuel António Pina na sua casa no Porto no ano passado Adriano Miranda/Arquivo

Manuel António Pina, poeta, escritor e cronista, morreu ontem aos 68 anos. Todos sublinham a sua auto-ironia, a renovação que fez na poesia e o cidadão interventivo

Quando Manuel António Pina soube há pouco mais de um ano que lhe tinha sido atribuído o Prémio Camões por toda a sua obra - que inclui poesia, crónica, ensaio, literatura infantil e peças de teatro -, afirmou com um humor que era muito seu: "É a coisa mais inesperada que podia esperar." Ontem, infelizmente, a sua morte, que aconteceu ao princípio da tarde, já era esperada, porque Manuel António Pina, 68 anos, estava internado no Hospital de Santo António, no Porto, desde o Verão, devido a um cancro.

Também a sua poesia tinha sentido de humor - o que é raro na poesia portuguesa - e gostava de manter vivo um diálogo com Fernando Pessoa. Na literatura infantil, Pina mostrava também essa tradição do nonsense, da brincadeira sem deixar de lado a complexidade. Ontem, numa emocionada nota de pesar, o secretário de Estado de Cultura, Franscisco José Viegas, evocando o poema "Farewell Happy Fields", dizia que todos os amantes de poesia ficam "muito tristes e muito sós": "Manuel António Pina não era apenas o cronista maravilhoso, inteligente e atento. Não foi só o jornalista que acompanhou a nossa vida durante as últimas décadas. Era um poeta maior, um dos maiores da nossa língua. Um poeta que dedicou a sua obra à celebração da poesia."

O corpo do escritor está hoje em câmara ardente na Igreja do Foco, no Porto, entre as 16h e as 22h, e a missa será celebrada amanhã às 9h30. O funeral seguirá para o cemitério do Prado do Repouso.

Numa pequena biografia publicada há alguns anos na imprensa francesa, dizia-se que Pina gostava de "cultivar a imagem de poeta de série B" - era um cinéfilo e sabia cenas de alguns filmes de cor -, "neutralizando assim a tentação de fazer "a grande poesia"". Costumava citar o escritor Luiz Pacheco, que dizia que daqui a cem anos ninguém se lembrará do que escrevemos, para contrapor com uma meta muito mais curta: é já daqui a um ano! No entanto, os seus livros, nomeadamente os infantis, que formaram a geração que hoje tem mais de 40 anos e que começou a escrever depois do nascimento das suas filhas, continuam a ser reeditados e não envelheceram.

O poeta Vasco Graça Moura também lamentou ontem a perda para a poesia portuguesa. Conheciam-se há muito anos, desde que fizeram parte da tropa juntos num quartel do Porto: "Era um homem que sabia usar um registo que fazia um contraponto irónico em relação às circunstâncias da vida e, neste momento, na crise que atravessamos, tenho a impressão de que esse contraponto é cada vez mais necessário. Surpreendia sempre na sua escrita pela maneira como utilizava a língua portuguesa e tinha um tipo de humor, quer na obra destinada à literatura infantil quer na obra poética, mais adulta, que é inconfundível."

O escritor Eduardo Pitta considera que Manuel António Pina o ajudou a crescer como poeta. "Ele deu à poesia o formato que veio a ser dominante nestes anos. " Este crítico literário lembra também a postura cívica de Manuel António Pina que se manifestava através das suas crónicas publicadas na última página do Jornal de Notícias. "Numa altura em que os intelectuais se demitem de tomar posição activa, ele foi sempre uma voz incómoda e marcou. Deixou esse legado que é quase tão importante como a obra literária dele."

O escritor que nasceu, em 1943, no Sabugal, na Beira Alta, vivia no Porto desde os 17 anos numa casa com muitos gatos, que lhe davam material de sobra para os poemas. Conta-se, e foi relatado no JL em 2001, que durante a visita a uma exposição de retratos de escritores portugueses na Feira do Livro de Frankfurt, Helmut Kohl terá parado em frente da fotografia de Manuel António Pina e de um gato e perguntado quem era o escritor. Responderam-lhe que era "o do bigode". E o chanceler terá dito: "Bigodes têm os dois."

Ainda não é o fim

Durante a infância, foi-lhe difícil fazer amigos. Andou de terra em terra por causa da profissão do pai que era chefe das Finanças. A família nunca chegava a ficar mais de seis anos em cada localidade. Foi o pai que o ensinou a ler e a escrever mesmo antes de ir para a escola. Desde os seis ou sete anos que escrevia poemas, que a sua mãe guardava, e embora só tivesse publicado o primeiro livro de poemas em 1974, Ainda não É o Fim nem o Princípio do Mundo Calma É apenas Um pouco tarde, começou a escrevê-lo em 1965.

Na mesma entrevista ao JL, contou que num dia de grande trovoada a mãe o foi encontrar de joelhos a escrever. Pensou que o filho estava a rezar, mas Pina estava a escrever "uns versinhos sobre a história do milagre das rosas". Era a sua maneira de combater o medo da trovoada. "Hoje, já não me assustam as trovoadas, mas continuo a escrever porque tenho medo. Se calhar, medo de ter medo, como dizia o [Alexandre] O"Neill", acrescentou. "Escrevo o livro comigo mesmo, com o meu sangue, com a minha vida, com a minha memória. A minha escrita tem muitas alusões, frases. Tenho a cabeça cheia de frases! Do Eliot, do Rilke, do Alexandre O"Neill, do Ruy Belo e do Winnie The Pooh, para além de outras que não reconheço, e que se calhar são as mais importantes ou significativas", disse em 2011 numa entrevista ao PÚBLICO.

Tinha mais de 50 livros publicados e muitos deles nasceram da leitura de ensaios, contou noutra entrevista ao jornal depois de receber o Prémio Camões. As suas amigas psicanalistas diziam-lhe que se não escrevesse seria um bom cliente. Por isso brincava, dizendo que a escrita lhe dava para poupar muito dinheiro.

Apesar de ter pensado ir para a Academia Militar, licenciou-se em Direito em Coimbra. Inscreveu-se como voluntário porque os pais não tinham dinheiro para que vivesse lá. "Completei o curso sem assistir a nenhuma aula. Passava, às vezes, uns 15 dias em Coimbra, mas era para ir às aulas de Literatura do Vítor Aguiar e Silva, e também às do Paulo Quintela. Toda a gente pensava que eu as frequentava por causa das raparigas de Letras", contou numa entrevista à revista do Clube de Jornalistas.

Foi tendo vários empregos: nas Contribuições e Impostos, a fazer inquéritos de rua, na Comissão dos Vinhos Verdes, e ainda deu aulas de Português. Nos anos 1980, exerceu advocacia mas desistiu da carreira para ir "trabalhar com palavras".

Foi jornalista do Jornal de Notícias durante 30 anos, onde começou a trabalhar em 1971. Para os amigos, como Osvaldo Silvestre, era "um privilégio ouvir Manuel António Pina discorrer, ao seu modo, sobre um assunto". Todos os fiéis leitores da sua crónica diária, "Por Outras Palavras", o sabiam e sabem.

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