Nos bastidores de um grande negócio
A privatização da EDP, a nona maior operação do ano no sector da energia, em termos mundiais, não escapou a polémicas
Dá-se como certo que nas grandes operações financeiras, em particular quando envolvem autorizações estatais, há sempre uma forte componente de lobbying com os assuntos a serem tratados entre os gabinetes ministeriais e os dos assessores financeiros e jurídicos. Pelo meio circulam os comissionistas. O interesse aumenta quando os negócios têm relevância internacional. Foi o caso da privatização da EDP, classificada pela consultora PWC como a nona maior transacção realizada em 2011 a nível mundial no sector.
O executivo liderado por Pedro Passos Coelho esperava que a primeira privatização do seu mandato, considerada pela troika a mais volumosa das que estão previstas, fosse um sucesso. E foi. A venda à China Three Gorges Corporation de 21,35% do capital da EDP gerou um encaixe de 2,7 mil milhões de euros, mais do que o expectável.
Aparentemente, a operação tinha tudo para correr bem. Mas a saída do Estado da EDP não foi consensual: trata-se da maior empresa portuguesa associada à ideia das reservas nacionais de energia. Porém, a discussão não se esgotaria entre adeptos e opositores da privatização. A venda do controlo da operadora a uma empresa chinesa em detrimento de uma europeia, a decisão tomada a favor de um outro Estado, ainda por cima não democrático, e os termos em que se concretizou o negócio estatal, sem os critérios seguidos em anteriores privatizações, sujeitas a um júri e a uma Comissão de Acompanhamento das Reprivatizações (extinta assim que o Governo tomou posse), geraram controvérsias.
A 30 de Agosto de 2011 os mercados foram confrontados com uma decisão ministerial cuja legitimidade alguns juristas consideraram duvidosa. Vítor Gaspar anunciou a contratação, por ajuste directo, da Perella Weinberg Partners para assessorar o Estado nas privatizações da EDP (21,35%), da REN (40%) e da Galp (10%). Decisão que arredou do negócio de 16 milhões as instituições que constavam da short list que manifestara interesse na operação, onde não estava a Perella. Gaspar justificou-se com a falta de tempo para lançar um concurso público.
O jurista Bacelar Gouveia veio, então, suscitar a questão: "Se a empresa não está pré-qualificada, é óbvio que o contrato é ilegal e qualquer um dos outros interessados pode impugnar a decisão do Governo. E qualquer cidadão pode pedir ao Ministério Público para investigar."
Os bancos preteridos lembraram que a escolha dos assessores do Estado na privatização da Galp foi feita com base num concurso limitado, cujo vencedor foi anunciado ao fim de uma semana. A Procuradoria-Geral da República admitiu, até, avançar com averiguações. Para esvaziar a discussão, as Finanças impuseram à Caixa BI a subcontratação da Perella, o que desencadeou os protestos de dois gestores da CGD, Nogueira Leite e Nuno Fernandes Thomaz.
Por vezes, as grandes surpresas surgem quando menos se espera. A 16 de Julho, seis meses depois do desfecho da privatização, a Caixa Banco Investimento (BI), o Espírito Santo Investment Bank (BESI) e a Parpública, que gere as participações do Estado, foram alvo de buscas policiais sustentadas em tráfico de influências e abuso de informação. O Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) explicou, em comunicado, que actuava no âmbito do processo Monte Branco, para "esclarecer e investigar a intervenção e conduta de alguns dos assessores financeiros do Estado" nas privatizações da REN e EDP. O DCIAP afastou dúvidas: "Não está em causa o sentido da decisão final assumida naquelas privatizações [venda aos grupos chineses]."
As grandes transacções geram sempre múltiplos interesses. Vários grupos mostraram vontade de estudar o dossier EDP: a alemã E.ON, as chinesas Three Gorges e China Power, as brasileiras Eletrobras e Cemig, a EDF e a Gas Natural Fenosa.
É nessa altura que os candidatos começam a seleccionar os assessores financeiros, jurídicos e de comunicação, na expectativa de que possam, de algum modo, influenciar o decisor. A dimensão do negócio EDP e a sua relevância internacional, não podiam, portanto, deixar de animar o mercado nacional das fusões e aquisições.
No campo jurídico, os alemães da E.ON. apareceram com o escritório Linklaters, liderado por Jorge Bleck conotado com o PSD, a Three Gorges contratou o gabinete Serra Lopes, Cortes Martins, a Electrobras a PLMJ, ligada a outro social-democrata, José Miguel Júdice. Já a EDF contratou a Uría Menedez/Proença de Carvalho, bloco central, e a Gás Natural Fenosa, Campos Ferreira-Sá Carneiro, que abandonaram a corrida à partida. Por seu turno, a Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva (MLGTS) manteve-se a apoiar o Estado/EDP.
O BESI surgiu envolvido na concepção da proposta económica e financeira da candidatura que viria a vencer - a Three Gorges. Já a E.ON escolheu o Deutsche Bank.
A temperatura subiu nos bastidores do negócio assim que o conselho geral de supervisão da EDP elegeu a E.ON e a ChinaThree Gorges como as propostas mais interessantes para ficar com a EDP e deixou cair as brasileiras Eletrobras e Cemig. Nos meses que antecederam o anúncio do vencedor o Governo dividiu-se: Gaspar e Passos Coelho inclinavam-se para a oferta alemã (2,54 mil milhões), por ser europeia, e Relvas para a brasileira Eletrobras (2,56 mil milhões).
Foi neste quadro de disputa que se intensificaram os contactos entre banqueiros, advogados e políticos nas vésperas do Conselho de Ministros que ia tomar a decisão final. Por exemplo, o Financial Times revelou que a chanceler alemã Angela Merkel promoveu a oferta da E.ON junto de Passos Coelho.
No universo das grandes operações há outros jogadores que se movem. São os "comissionistas" ou intermediários, na gíria norte-americana conhecidos por lobistas. Em Lisboa, a oferta alemã era dada como bem posicionada. António Moura Santos, cunhado de António Guterres, surgiu a defender a proposta germânica. E foi neste contexto que se deslocou à Alemanha onde se cruzou com o presidente da EDP, António Mexia (ex-presidente da Galp). Os dois conhecem-se desde os anos 1990, quando Moura Santos apresentou Mexia a Pina Moura.
Na comunicação social surgiram informações, não confirmadas, a dar conta de uma denúncia entregue no Ministério Público por suspeitas de que os candidatos à EDP tivessem tido conhecimento prévio da oferta alemã. Mas a proposta estratégica e o valor atirado para cima da mesa pela China Three Gorges, 2,69 mil milhões de euros, retirou importância à queixa.
Lá fora, como cá dentro, as grandes operações, envolvendo privados, alimentam múltiplos contactos com o poder político. Os banqueiros de investimento consideram naturais as ligações, pois numa sociedade livre todos têm o direito de lutar pelos seus interesses.
A Goldman Sachs é um caso paradigmático. Este ano, Marc Roche, que contou a história da Goldman Sachs, responsabilizou o banco pela actual crise da dívida soberana. Foi da GS que saíram o ex-secretário do Tesouro dos EUA, Henry Paulson (ex-CEO), Mario Draghi, BCE, o primeiro-ministro italiano, Mário Monti, ou o ex-primeiro-ministro grego Lucas Papademos. António Borges, convidado por Passos Coelho, em Março, para liderar e acompanhar as privatizações, foi um dos vice-presidentes da GS em Londres, antes de ser nomeado director do departamento europeu do FMI.
O dossier Perella não escapa a uma análise mais fina. Criticada pela falta de curriculum no sector da energia, a empresa fundada em 2006 tem ligações relevantes à banca de investimento. Entre os sócios, estão ex-quadros de topo da Goldman Sachs e da Merrill Lynch. O partner português, Paulo Cartucho Pereira, esteve 20 anos na Morgan Stanley.
Usar conhecimentos para atingir certos objectivos pode ser feito de modo legítimo, ou ilegítimo se a influência privada for usada para introduzir opacidade na decisão pública. A fronteira é ténue e a grande questão é a de sempre: em que ponto o diálogo normal entre banqueiros, advogados, lobbistas e o Estado se transforma em troca de favores, tráfico de influências e corrupção?