Haaretz: uma greve de jornalistas
Os jornalistas do diário israelita Haaretz fizeram greve no dia 4 de Outubro. Em si mesma, uma greve israelita não seria notícia em Portugal. Mas, neste caso, o jogo é muito mais vasto: Israel está em risco de perder a sua imprensa livre. O Haaretz é um símbolo: "Israel sem o Haaretz pareceria um Israel sem o Supremo Tribunal", declarou ao New York Times Uzi Benziman, antigo colunista do jornal.
Não é um problema de jornalistas: "É um problema que deve preocupar a sociedade israelita no seu conjunto", pois toca as instituições democráticas, sublinha o colunista Nahum Barnea, do diário Yedioth Ahronot. E também não é uma questão israelita: a sobrevivência da imprensa escrita é um problema das democracias. Basta olhar, aqui ao lado, para a Espanha.
O panorama israelita era dominado por três grandes títulos em hebraico. O Yedioth Ahronot, um tablóide de grande qualidade e orientação centrista, vendia 300 mil exemplares durante a semana e 600 mil no fim-de-semana; o Maariv, de centro-direita, tinha uma tiragem de 200 mil; enfim, o Haaretz, de esquerda: a edição em hebraico tinha uma tiragem de 72 mil (90 mil à sexta-feira) - dos quais 65 mil absorvidos por assinantes - e outra em inglês, com 15 mil, distribuída com o Herald Tribune.
Fundado em 1918, é propriedade da família Schocken desde 1937. É dirigido a um público de elite e considerado o "mais influente". A edição online em inglês é consultada em todo o mundo.
Os israelitas eram leitores compulsivos. Com uma população de 7,8 milhões, dos quais 5,8 judeus, consumiam três diários nacionais generalistas e quatro económicos - a par de três canais nacionais de televisão e uma miríade de rádios. Mas, de há anos para cá, começaram a perder o hábito de ler o seu jornal de manhã. E a crise económica acelerou o desgaste das receitas publicitárias.
O "efeito Adelson"
Em 2007, entrou em cena Sheldon Adelson, bilionário judeu americano, o magnata dos casinos que quer construir o "Eurovegas" de Madrid. É financiador de Mitt Romney e Bibi Netanyahu. Tentou comprar o Maariv. Não o conseguindo, lançou um "gratuito", Israel Hayom, destinado a destruir o Maariv e o Yedioth Ahronot, cujo modelo gráfico copiou. Este ano, o Israel Hayom ultrapassou o Yedioth Aharonot como primeiro título durante a semana: 39% de audiência contra 37%. Ao domingo, prevalece o Yedioth.
A rentabilidade não é a sua preocupação. Parece ter meios financeiros ilimitados e criou uma dispendiosíssima máquina de distribuição. Faz dumping com a publicidade. "O seu objectivo não é dar lucro, é dificultar a sobrevivência dos outros", diz à Reuters um analista financeiro de Telavive.
A ideia será impor uma "informação política única". O Maariv é conservador mas não confunde a notícia com a opinião, publicando investigações que incomodam os governos de direita. O Israel Hayom serve Netanyhau e o governo, o que é a garantia de ser por eles servido. E as eleições estão à porta.
O Maariv entrou em queda livre e foi vendido a um magnata de extrema-direita, Schlomo Ben-Zvi, que aposta em transferir a sua carteira de assinantes para um outro título seu, o Makor Rishon. Prevê despedir quase todos os 2.000 trabalhadores. A derradeira hipótese do Maariv é ser "resgatado" pelo Jerusalem Post (publicado em inglês).
O Yedioth Ahronot resiste mas está sob grande pressão, admite Barnea. "Dada a assustadora crise financeira dos media israelitas, a explosão dos novos suportes de informação e a dispersão da publicidade, o downsizing é inevitável", conclui. Há títulos que vão desaparecer, "enquanto muitos deputados e alguns dos mais proeminentes jornalistas preferem enterrar a cabeça na areia".
A "culpa" não é apenas de Adelson, diz um jornalista: "A Internet e a ideia de que não é preciso pagar pelas notícias são um desafio ainda maior para a imprensa escrita".
"A caminho do desastre"?
Amos Schocken, "patrão" do Haaretz, quer acelerar a reestruturação, apostando no online pago e numa drástica redução de custos, dado o insustentável défice do jornal. Após meses de impasse na negociação com a comissão de trabalhadores e o sindicato dos jornalistas, propôs um plano "brutal" que passa pelo despedimento gradual de 100 dos 450 trabalhadores, entre eles 60 ou 70 de jornalistas (em 230). Estes recusaram o plano em assembleia e votaram a greve do dia 4, por 125 votos contra 68.
Schocken respondeu com dureza. "Nunca quisemos despedir ninguém, e sabem-no bem. De resto, a percentagem de despedimentos não é maior do que a do New York Times quando foi forçado a fazê-lo para manter a qualidade. Nós fomos obrigados a isso. Salvar o Haaretz exige medidas drásticas que não fazem ninguém feliz." Acusou o sindicato de não ter "consciência da tremenda realidade em que operamos, que mudou drasticamente e exige acção". A indústria do jornal impresso está à beira do colapso.
Não venderá o jornal, mas também "não o deixará apodrecer em poucos meses como foi o caso do Maariv". Os jornalistas têm de se decidir depressa, diz.
A assembleia dos jornalistas foi "passional". Uri Tuval, da comissão de trabalhadores, exigiu "uma campanha agressiva para ganhar assinantes" e defendeu que a administração "tem de pensar em aumentar a receita e não apenas em cortar trabalhadores".
Outros apelaram ao realismo. Gideon Levy, um dos símbolos do jornal, opôs-se à greve: declarou que tem "muitas queixas da gestão do jornal, mas que a situação é muito, muito perigosa e temos de tomar uma decisão. Aceitaremos esta dor parcial ou deixaremos que se afunde o jornal inteiro?". Barak Ravid, editor diplomático, deixou a seguir uma mensagem no Twitter: "Cometemos um grave erro esta noite. O Haaretz está a caminho do desastre".
Se o Haaretz cair, não se perderão 100 empregos mas 450. E muitíssimo mais: o mais crítico jornal israelita. Shai Golden, subdirector do Maariv, escreveu na quinta-feira: "O dia em que o Maariv ou o Haaretz deixarem de aparecer será um dia negro para a democracia israelita".