Nos bastidores e à mesa do terceiro melhor restaurante do mundo
O Mugaritz, em San Sebastian, é um dos restaurantes mais vanguardistas do momento e o seu mentor, Andoni Luís Aduriz, uma alma inquieta que perturba e inspira. O que se segue é uma observação sobre os bastidores, o conceito e a experiência de uma refeição neste lugar único
São 10 horas e Julieta Caruso tem nas mãos um relógio de cozinha onde controla o tempo da reunião da manhã. À sua frente alinham-se duas dezenas de cozinheiros de diversas nacionalidades, parte da brigada de cozinha. O chef português José Avillez junta-se à equipa neste dia, enquanto o seu braço direito no Belcanto, David de Jesus - que está no andar de baixo com a outra parte da equipa, na cozinha de preparação - vai ficar mais dois dias.
De sorriso fácil, Julieta, argentina de 27 anos, antecipa o que os espera nesse dia. Como vem sendo hábito, a casa está cheia: há 40 marcações ao almoço e 50 ao jantar. As questões de organização dominam a reunião, todavia a máquina está bem oleada e o encontro é breve. Dez minutos depois já se vêem cozinheiros a fazer macarons enquanto outros arranjam couve-flor. Julieta e os dois membros do núcleo duro, o catalão, Llorenç Sagarra e o mexicano Oswaldo Oliva, reúnem-se agora apenas com os sub-chefs. Ouve-se falar de ingredientes e pratos e sente-se pelo semblante carregado que algo os preocupa.
Observo sem interromper. Tratar da logística de 40 pratos diferentes, com elaborações específicas e complexas, com produtos por vezes tão especiais que não existem em quantidade suficiente, não deve ser pêra doce. No Mugaritz não se escolhe à carta. Há um menu de degustação de 22 pratos mas, ao contrário do que é habitual, não é o mesmo para todas as mesas. A razão prende-se com a filosofia da casa: "É a natureza quem manda e não nós". Ou seja: se um dos seus produtores de confiança apenas conseguiu tirar da terra um quilo de determinado produto, com as características excepcionais que se pretendem, no Mugaritz não deixam de o utilizar só porque não chega para todos.
Pelas 10h30 Aduriz desce à cozinha. Bem disposto, cumprimenta-nos efusivamente (em especial a José Avillez, cujo trabalho muito elogiou, em Abril último, na sua passagem pelo Peixe em Lisboa). Parece ligado à corrente. Oferece-nos café e tão depressa faz conversa de circunstância como muda para um tema mais profundo.
Os sapatos do ciclista
Há muito que o Mugaritz é um dos principais restaurantes de Espanha e um dos mais vanguardistas do mundo. Porém, as atenções incidiram de uma forma mais premente desde que há dois anos alcançou a 3.ª posição da influente lista dos 50 Melhores Restaurantes do Mundo da revista inglesa Restaurant.Hoje, graças a este reconhecimento, podem ser necessários dois a três meses para conseguir uma mesa, mas nem sempre foi assim. Como noutras histórias de sucesso, o início não foi fácil. Apesar dos créditos firmados em posições de relevo no El Bulli de Ferran Adrià, ou no restaurante de Martín Berasategui, Andoni Aduriz teve de penar para se afirmar no restaurante que abriu em 1998, no meio do campo, a 15 minutos de San Sebastian. No seu mais recente livro, Mugaritz - A Natural Science of Cooking, Aduriz descreve um momento que caracteriza bem como foi a fase inicial. "Estávamos convencidos que as pessoas fariam filas para comer no nosso restaurante; não tínhamos dúvidas que o telefone iria tocar sem parar. Claro, ninguém ligou a reservar. No primeiro dia, com o restaurante vazio, chegou um ciclista...vestido à ciclista. Encostou a bicicleta e veio ter connosco para saber se lhe arranjávamos qualquer coisa para comer. Dava para ignorar o capacete e a camisola de ciclista, mas os sapatos... aqueles sapatos faziam um barulho inesquecível. Estava claro que as coisas não iam ser fáceis."
O chef basco admite hoje que foi esse período difícil que lhes deu tempo para reflectir sobre o que queriam fazer. O conceito "menos" (não utilizar mais do que dois ou três elementos no prato para que estes possam sobressair) começou a ser desenhado nessa altura, bem como as saídas de campo para a colecta de plantas e ervas selvagens nas proximidades, a criação de uma horta própria ou o estabelecimento de uma rede de fornecedores que se encaixasse na sua forma de pensar.
Aduriz é provavelmente o mais conceptual e o mais experimentalista de todos os chefs da actualidade. Parece obcecado com o que faz mas o seu pensamento não se fecha na cozinha (são conhecidas as suas experiências com músicos ou com grupos performativos como os catalães La Fura dels Baus e dessas ligações retira sempre aprendizagens que depois aplica). Provoca-nos com as suas propostas e forma de pensar e mexe com a nossa zona de conforto. Questiona-se enquanto nos questiona e desafia-nos perante o adquirido. "Não tens de gostar de uma coisa para tirares prazer dela", afirma. O contexto influencia a percepção e por isso o prazer, quando comemos, "não se encontra apenas na boca". Se é o sabor o que mais procuramos num prato, ele atira-nos com a insipidez para salientar as texturas, como quem tapa os olhos a um vigilante e o obriga a empregar outros sentidos.
Uma pessoa com personalidade e convicções tão fortes tenderia a ser indiferente e a relativizar os louvores e prémios que lhe chegam de todo o mundo. Mas até aí o estereótipo do intelectual de discurso avesso ao reconhecimento não se lhe cola. Sente-se agradecido por o Mugaritz ser considerado há vários anos um dos melhores restaurantes do mundo e nem revela azia, típica de alguns seus colegas espanhóis, pelo facto de a Michelin apenas lhe atribuir duas estrelas e não três, como seria suposto.
Aduriz é ainda uma fonte de inspiração para muitos chefs, como José Avillez, que refere : "Para além de novas técnicas e conceitos, a sua visão culinária é o que mais me inspira. Sempre que falo com o Andoni tenho vontade de ser melhor."
Preferências e alergias
Ao meio-dia, uma hora e meia antes de começarem a chegar os primeiros clientes, os responsáveis da cozinha reúnem-se na sala com a equipa de serviço. Desta vez é o responsável por esta área, Joserra Calvo, quem comanda o briefing. Com um certo humor, Joserra vai relatando as particularidades que alguns clientes deixaram expressas no acto da reserva. O cliente A "tem alergias a pêssego, frutos tropicais e sementes de sésamo". O cliente B "não gosta de pimentos", o cliente C "pede para ficar na mesa 17".Nem só de alergias e gostos particulares vive a reunião. Há um prato novo nesse dia e tiram-se apontamentos à medida que um dos chefs o vai explicando. É preciso que nada falhe.
Regresso à cozinha, onde agora estão dispostos sobre o balcão vários tabuleiros. O lugar é diferente dos habituais espaços quentes e apertados e não há divisões entre zonas de carnes, peixes, ou entradas frias. Trata-se de um espaço funcional, harmonioso e inspirador, com uma agradável vista para o jardim e horta. As reservas são marcadas para horas diferentes de forma a que a cozinha não entre em ruptura. O primeiros clientes começam a ser servidos e a pouco e pouco o ritmo vai aumentando. A equipa está concentrada mas o ambiente é calmo, sem gritarias ou coreografias desnecessárias.
A meio da refeição os clientes são convidados a vir à cozinha. É o momento oportuno para trocarem impressões com os chefs e degustar uma das propostas. No caso, um delicioso macaron de tom escuro que dá a ideia de ser de chocolate. O agrado é geral. Só comparável à estranheza quando é revelado que o ingrediente principal não é chocolate, mas sim sangue de porco.
No final do serviço regresso ao hotel apenas por umas horas. Voltarei ao Mugaritz nessa noite, desta vez para jantar com José Avillez e David de Jesus.
Em partilha à mesa
Chegamos para jantar às 20h30. Damos uma volta pela horta, como os clientes que chegam nessa noite pela primeira vez, e entramos. Já na mesa, apercebo-me que a sala é maior do que julgava. Cabem à vontade umas 100 pessoas, embora o Mugaritz aceite apenas 50. As luzes incidem sobre as mesas como num palco e o ambiente é confortável. Na sala não há decorações supérfluas e sobre as mesas atoalhadas de branco apenas uma estátua de pratos partidos.Descrever os 22 pratos servidos num jantar que demorou cerca de duas horas e meia, além de cruel, não caberia neste espaço, pelo que deixo uma impressão geral e a descrição de um momento marcante.
O menu conta uma história e está pensado para jogar com os sentidos de diversas formas e intensidades. As composições são de execução complexa e recorrem às técnicas mais avançadas. Contudo, a apresentação é minimalistas e de sentido estético apurado, mesmo (ou sobretudo) quando a variação cromática é ainda mais minimalista do que o número de elementos no prato. Não há guarnições nem produtos secundários, uma vez que a ideia é que todos ingredientes tenham um papel relevante.
Os nomes dos pratos variam entre a descrição dos ingredientes e o jogo de palavras. Alguns são mais directos, outros não são bem aquilo que aparentam - caso do macaron ou das "uvas" de melão em que as grainhas são grãos de especiarias -, e outros ainda são mais para o enigmático, como no envelope de boas- vindas, de onde retiramos uma folha de papel comestível onde se lê a inscrição "brincadeiras e azeitonas, poucas ou nenhumas".
Os seis snacks iniciais, tal como as cinco sobremesas finais, são pequenos apontamentos para comer à mão de uma só vez ou, no máximo, em duas vezes. Pretendem exaltar uma textura, uma memória, um sabor mais grave ou mais agudo. No caso dos pratos principais, um pouco maiores, há momentos em que o nosso cérebro os descodifica com maior facilidade. São aqueles que se aproximam mais do convencional: um peito de pintada, um lombo de pescada, uma vitela de leite.
A meio da refeição dá-se um momento especial. Todas as mesas recebem um almofariz de ferro, com sementes (de sésamo e de linhaça) e especiarias para esmagarmos com um pilão. Quando o fazemos, ouve-se barulho e por isso procuramos actuar com suavidade. No entanto, à medida que o som ecoa na sala, as pessoas vão-se entreolhando com um sorriso e efectuam o movimento com maior convicção. É um momento de partilha que chega a ser arrepiante. Porém, não se confunde com um número de circo gratuito. Depois servem-nos um caldo de peixe suave e ervas aromáticas para misturarmos na pasta que ficou no almofariz. O resultado é brilhante: um misto de sabores frescos, envolventes e com um ligeiro amargor no final que lembra uma boa cerveja.
No final precisamos de tempo para processar toda a informação que se atropela na mente e vêm-nos à cabeça os pensamentos e as dúvidas mais díspares. O que terão servido ao ciclista acidental? Terá voltado ou fugido dali a sete pés?
Mugaritz
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