"Mereço amplamente o Prémio Camões"
Por fim o desabafo quando faz 60 anos de carreira. Zangado com o estado do mundo, mas não com a vida, Urbano Tavares Rodrigues confessa a mágoa de não ter um prémio que acha que lhe é devido e diz que foi tudo o que queria ter sido.
Sabe, escrevi uma novela em três ou quatro dias..." Urbano Tavares Rodrigues antecipa-se a qualquer pergunta para revelar uma ousadia para alguém a pouco tempo de fazer 89 anos. Ver o que dá escrever de um fôlego. Um desafio para um escritor que continua a cultivar o erotismo e a estar atento ao mundo, mesmo condicionado à casa, grande, forrada a quadros e a livros e cheia de fotografias de António, o filho de seis anos que diz que ele é o maior escritor do mundo. Não conseguir vê-lo crescer é a sua grande angústia, uma falta que tenta preencher com palavras. Serão a sua grande herança. Uma carta para António abrir quando tiver dez anos. Falar de tolerância. Aqui fala-se dessa e de outras histórias de um escritor que é comunista e que foi tudo o que quis.
Disse recentemente numa entrevista que cada vez mais escreve novelas e contos porque tem medo que o tempo não o deixe terminar um romance.
Pois é. Este livro, Escutando o Rumor da Vida seguido de Solidões em Brasa, era para ser um romance, mas depois olhe, saiu assim. Sinto que não vou viver muito. Um dos meus médicos diz-me, meio a brincar, que é um milagre eu estar vivo. Mas sabe, escrevi agora uma novela em três ou quatro dias... Chama-se A Rosa das Profundezas. Um miúdo anda a brincar e vê uma rosa no fundo de um charco. Arregaça o bibe e tira-a. É uma rosa esquisita, azulada. A minha ideia foi fazer uma coisa explosiva. Conseguir uma escrita muito nova, arriscada, na fronteira do delírio, mesmo, a alucinação.
Essa perspectiva delirante sobre o mundo já vem no seu último livro.
Já. Mas esta é uma novela mais pequena. Rápida. Deve ter umas 40 páginas.
Foi um desafio?
Foi. Escrevi loucamente. A escrita está bonita. Aquilo é louco mesmo, e ainda não sei muito bem o que vale. Uma amiga minha está a digitalizar o texto. Ela gostou imenso, mas não me chega uma opinião, porque ela é muito minha amiga pode-se deixar influenciar.
E porque que é uma coisa muito louca?
Porque é. Tem partes delirantes, de fuga às regras da lógica. O rapaz cresce e acaba por ir trabalhar para uma agência de viagens. Tem um contrato e Paris e vai para lá. Podemos dizer que é uma coisa da paz, mas a paz acaba por ser guerra. Entra naquilo a que o Mário Soares chama de "capitalismo selvagem neofascista" que está instalado na Alemanha.
Os seus temas sempre foram o amor, o tempo, a morte. Há alguma mudança?
Nesse aspecto não. Não consigo escrever qualquer coisa que seja completamente nova, mas consigo escrever de uma maneira nova e cada vez mais olho o amor como uma necessidade absoluta do mundo. Uso a palavra "amor" no sentido mais lato, não só sexual. A grande lição para o mundo futuro é uma grande dose de amor, de compreensão dos outros. Não sei se nota isso nos meus livros.
Quando, por exemplo, se abstém de fazer juízos morais sobre o comportamento das suas personagens?
Sim, a minha função não é julgar. É trabalhar sobre os sentimentos, sobre a palavra.
É difícil escrever sobre erotismo?
Sim, mas há escritores que têm conseguido coisas boas nesse aspecto. É preciso tacto, trabalho de linguagem. As palavras existem. São para ser usadas. Todos nós tivemos dificuldade na transição do fascismo para a liberdade, com o 25 de Abril. Eu também tive, porque escrevia com alguns eufemismos. Mas habituei-me. O Lobo Antunes também escreve dessa maneira, com bastante liberdade... [Pausa] Tanto eu como o meu irmão Miguel somos muito longevos. Ainda tenho capacidade erótica para ter relações sexuais. Continuo a ter desejo e a transportar isso para os meus livros, corresponde a uma certa vivência.
Considera-se um provocador?
Não. Não é o meu objectivo. A provocação por si não me interessa. Pode haver falsa provocação, o que é outra coisa.
Os seus livros continuam a reflectir uma atenção sobre o mundo à volta. Estar em casa não lhe retira a capacidade de observar?
De modo nenhum. leio jornais, vejo televisão, converso com as pessoas. essa escrita não vem por por obrigação, mas porque de facto já tenho mesmo ódio ao que se passa. Até mesmo aqui em Portugal está instalado um capitalismo selvagem neo-fascista, com o Passos Coelho. Perante a força da insurreição popular não sei como é que isto vai acabar. É imprevisível.
Qual é o papel da literatura em momentos como este?
Sou comunista e sou escritor e nunca obedeci a pedidos para fazer dos meus livros instrumentos de combate do PC, mas como a minha ideologia é essa ela projecta-se e essa projecção é útil neste momento porque as massas necessitam do apoio dos intelectuais e eu estou a dá-lo embora dentro da minha linha, que é estética e intimista. Uma vez chateei-me com um tipo do partido que queria que eu pusesse mais sangue, mais vermelho naquilo que escrevia. Eu disse-lhe que punha o vermelho que entendesse.
Foi um dos dirigentes do sector intelectual do PC. Como é que faz a sua militância, hoje?
Continuo a ser. Pediram-me para não abandonar. De vez em quando escrevo textos que me pedem.
Porque se diz um heterodoxo?
Sempre fui profundamente anti-estalinista e tive alguns problemas com o partido por causa disso. Estive nitidamente a favor da insurreição de Praga e escrevi contra a invasão dos tanques soviéticos, das barbaridades que se fizeram. Eu era a favor da Primavera, do chamado socialismo de rosto humano. Já está a ver que a minha ideia do comunismo é a de uma economia de Estado, mas com uma certa abertura à iniciativa privada, que não seja totalitária, que não seja opressora, para poder haver espontaneidade, beleza, variedade. A favor da liberdade de culto. Sou perfeitamente agnóstico, mas acho que se deve respeitar todos os cultos.
Vítor Córdova, personagem de Solidões em Brasa, o segundo conto do seu mais recente livro, diz-se um agnóstico e há uma aluna que o interpela, afirmando que isso é o que ele diz, mas que é um espiritual, um místico. É o seu caso?
Se sou místico é só numa comunhão profunda com a natureza. Isso é mais ser panteísta do que místico.
O que lhe interessa é o homem soviético, como à sua personagem Vítor Córdova que distingue entre ser comunista e ser pró-soviético?
É mais um ponto em comum. O homem soviético era cordial fraterno, tinha qualidades interessantíssimas. Na primeira viagem que fiz à União Soviética, fui um bocado iludido, porque os guias davam-me uma imagem da realidade que não era verdadeira. Cheguei deslumbrado com uma fábrica onde os delegados da comissão directiva eram representantes dos trabalhadores, dos funcionários e dos engenheiros e aquilo funcionava muito democraticamente. Tinha uma gestão operária. Mas quando comecei a conhecer alguns escritores eles abriram-me os olhos, dizendo que aparentemente aquilo era verdade, mas que de facto era tudo combinado. Aquilo era uma mistificação. Fiquei lixado. Depois comecei a descobrir que havia muito mais sequelas do estalinismo do que eu pensava, a história do Gulag. O pior foi que o Estaline destruiu completamente tudo o que era verdadeiramente socialista, a discussão interna no comité central, o debate de ideias. Acabou com tudo isso. Já não tinha nada do socialismo marxista.
Os estilhaços chegaram ao PC português.
Era inevitável. Nunca fui estalinista, mas eu vivi em Paris num período em que os pp camaradas do Partido Comunista Francês com quem e convivia que me disseram que o Gulag era verdade. Abrira-me os olhos. Como o Aragon [Louis Aragon, poeta e escritor surrealista, 1897-1982], de quem me tornei muito amigo. Esse nunca deixou de ser comunista, mas não era estalinista.
Também foi amigo de Albert Camus. Que memória tem dele?
Profundo afecto. Uma vez apresentou-me uma namorada brasileira... Ele tinha muitos problemas. A mulher adorava-o e ele também gostava imenso dela, mas era um homem de muitas mulheres, uma coisa complicadíssima. Ele tinha dificuldade em romper e às as vezes acumulava duas e três até que aquilo era uma confusão dos diabos. Ele custa-lhe fazer sofrer. Era um tipo giríssimo.
Nessa época tentou o que nunca ninguém conseguiu: ser existencialista sendo comunista. Como olha para essa fase?
É verdade, uma enorme contradição. mas era muito jovem. Era um disparate, mas tentei. E achava que era possível ter ideias marxistas ligadas à filosofia da existência. Era uma utopia. Em A Porta dos Limites (estreia, em 1952, e na Vida Perigosa (1955) sente-se isso. Já com A Noite Roxa (1956) passou-se uma coisa interessante. Com as minhas artes consegui passar a fronteira e ir visitar a então RDA. Estive lá cinco ou seis dias e não gostei. Era um país comunista autoritário, sentia-se a presença da polícia política. Aquilo desagradou-me e voltei um bocado baralhado para o chamado lado ocidental da Europa. Eu estou contra este ocidente capitalista mas não posso estar com aquele socialismo policial.
Numa recente entrevista dizia que Álvaro Cunhal lhe perdoava uma série de rebeldias ideológicas dizendo-lhe: "tens uma alma comunista". O que é isso de ter uma alma comunista?
Eu tinha-lhe proposto uma coisa com a qual ele não concordava, uma aliança pontual com o Mário Soares. Sou muito amigo do Mário Soares, desde o tempo da faculdade. Discordamos ideologicamente, mas em alturas muito difíceis, e sem que eu lhe pedisse, ele ajudou-me, arranjou-me lugar no Colégio Moderno, até a Pide me impedir, dizendo que eu tinha ideias subversivas. Há pouco tempo ele mandou-me uma carta do Algarve, despedindo-se "com um grande abraço deste seu camarada antifascista". Foi o que ele encontrou de comum. [Risos]. Bom, o que é certo é que eu achava que havia uma série de coisas que se podiam fazer em comum, O PC com o Soares.
Em que circunstâncias?
Já não me lembro muito bem, mas ele odiava o Mário Soares. Quando se falava em Mário Soares arrepiava-se todo. Uma vez disse-me: "ai Urbano, às vezes parece que tens teias de aranha na cabeça, mas o teu coração é comunista".
E o que é isso?
Um comunismo de solidariedade com os pobres e os infelizes que é profundamente ligado ao socialismo. Eu tornei-me comunista um pouco por influência de um primo meu que casou com a irmã do Álvaro Cunhal, o Fernando Medina. Ele deu-me a ler textos comunistas quando eu tinha 13 ou 14 anos. Fiquei tocado com a solidariedade para com os pobres e humilhados. Eu antes de ser comunista estava ligado a uma espécie de socialismo cristão, embora repudiando a confissão e tudo isso. Descobri muito cedo que era uma farsa.
Teve essa educação católica?
Sim, tive catequese e tudo. Fiz a primeira comunhão.
E como é que descobriu "a farsa"?
Quando me pediam para prometer não repetir determinadas acções e que tinha de rezar uns tantos Padre-Nossos e eu sabia perfeitamente que ia repetir.
Por exemplo?
Umas histórias que eu já tinha com umas priminhas, em que havia sexo, embora sem chegar ao fim. Tinha uns 13, 14 anos. Achava de uma desonestidade profunda dizer que não repetia. E mandei isso à fava.
E alguma vez sentiu culpa?
Nunca a sexualidade me pareceu um pecado. Aí estava muito mais de acordo com os gregos. Noutras coisas senti. Por exemplo, no relacionamento que tive com as mulheres. Algumas vezes acho que as magoei. Posso ter sido egoísta. Disso arrependo-me.
Em Escutando o Rumor da Vida começa com uma das personagens, Francisco Medeiros, a lidar com o remorso em relação ao modo como lidou com algumas mulheres. Esse remorso é seu?
Sim.
As suas personagens masculinas têm cada vez mais de si. Escolhe as personagens para se expor?
Acho que não faço essa escolha, mas não há dúvida de que há muito de mim no Francisco Medeiros e a figura de Lídia, a mulher, inspira-se muito na minha primeira mulher, na Maria Judite de Carvalho (escritora, 1921-1998). Uma mulher muito doce, que me adorava e era indulgente para com os meus desvios eróticos. Gostei muito dela. Foi o meu grande amor e a Ana Maria, a minha actual mulher, a grande paixão. Outra personagem com quem tenho muito que ver é o Michel/Olimpia (traficante redimido de Solidões em Brasa) no aspecto da aventura. Eu era quase inconsciente, não tinha medo de nada. Na clandestinidade em Portugal fiz coisas do arco da velha. Não tinha a consciência do perigo.
Quando fala de medo fala de quê?
Não sou medroso, mas não tenho a mesma coragem nem o mesmo impulso. Mas apesar da minha falta de condições físicas, já neste estado, dei um soco a um tipo que foi malcriado com a minha mulher por causa de um problema no trânsito.
É perigoso ser seu amigo? Podemo-nos ver de repente num livro, expostos?
É, isso é. Eu não resisto. É irresistível.
Já alguma vez teve problemas com isso?
Não.
Parece que está sempre a despedir-se da vida, mas depois sempre a regressar a ela. No livro anterior, Assim se esvai a Vida, há quase uma despedida. Neste, uma espécie de reconciliação.
É verdade. Há alturas em que tenho vontade de morrer, mas depois luto. Contra a angústia. Acabo por me aguentar.
A escrita ajuda?
Ajuda muito.
Pertence à comissão de leitura da Fundação Gulbenkian. Continua a ler autores recentes...
Sim, muito atento e acho que temos grandes escritores actualmente.
Por exemplo?
Gosto muito da Dulce Maria Cardoso, da Hélia Correia, que já é de outra geração mas é uma escritora extraordinária. Gosto muito do João Tordo, O Bom Inverno é um livro excelente. O José Luís Peixoto, de quem sou profundamente amigo. O Gonçalo M. Tavares não me entusiasma muito. É uma mistura de Brecht e de Kafka, dos alemães que ele conhece muito bem. O único livro dele que em entusiasmou foi o Jerusalém.
Como é que gere o tempo que tem?
De manhã faço tratamentos, depois um bocadinho durante a tarde trabalho, escrevo. À noite não escrevo. Ainda estou a recuperar da loucura que foi escrever esta novela ... Escrevia de manhã à tarde e à noite.
É avô, pai de um rapaz de seis anos. Qual a diferença entre ser pai aos 82 anos e ser avô antes disso.
Eu tive muitas dúvidas em ser pai tão tarde. Mas era importante para a minha mulher. Estive preocupado até o António nascer, angustiado com a hipótese de um defeito físico. Ele diz que o pai é o melhor escritor do mundo [risos]. Mas a relação nem sempre a relação é boa, ele consegue ser muito carinho, confidente, outras vezes é provocante.
Tem dito que uma das coisas que mais o angustia é temer não poder acompanhar o crescimento do seu filho. É verdade que escreveu uma carta para o seu filho ler quando tiver dez anos?
Sim. Ele já sabe umas coisas do que lhe quero dizer. Quero que ele compreenda o pai que teve. A importância da tolerância, da fraternidade, da generosidade. Ninguém é totalmente generoso. Tenho consciência disso. Mas sou dos menos egoístas que conheço.
Tem uma filha bastante mais velha, a escritora Isabel Fraga.
Sim. Dou-me muito bem com ela. Tivemos uma relação muito carinhosa. Levei-a a Paris no Maio de 68, ainda chegámos no fim. Ela tinha 14 anos. Eu a Maria Judite e ela.
O Vítor Córdova procura o sentido da vida. Já encontrou o seu?
Não. Encontrei aquilo que eu gostava que o meu filho compreendesse de mim, que é um misto de tolerância, de compreensão e respeito pelos outros. Sem ódio. Com algumas excepções. Posso sentir ódio contra aqueles que vivem de explorar os outros... [pausa] mas eu tenho sido mais vítima de ódio. Ainda não tive o prémio Camões porque soube recentemente que há membros do júri que dizem: "esse comunista não terá o Prémio Camões.
Sente mágoa por não ter o prémio?
Tenho revolta. Mereço amplamente o Prémio Camões. Não é pelas honrarias, que já tive muitas. Até em França já me deram a Legião de Honra, mas isto é asqueroso.
Está a escrever alguma coisa?
Agora escrevi esta novela e nã sei o que farei. Tenho para aqui uma série de contos para serem publicados num livro que está previsto. Há um conto que se chama Os Merdosos.
E quem são os merdosos?
São aqueles tipos que andam com os cães, que andam na droga, às vezes na prostituição. São os merdosos. Há uns tipos que resolvem fazer uma experiência, ir apanhá-los. Propõem-lhes uma grande festa e só há dois ou três que não querem ir... Alguns saem desse meio, outros regressam.
Como é que se põe a par dessa realidade?
Acompanho. Estou informado. Tenho amigos e família nessa geração.
É um optimista?
Sim, mas é mais uma vontade que de as coisas corram bem.
O que é que gostava de ter sido e não foi?
Eu fui o que gostava de ter sido. Escritor e professor.
É vaidoso?
Não... tinha uma certa vaidade. Era considerado um homem bonito na juventude, que foi até muito tarde. As mulheres estabeleciam comigo uma relação de ternura e essa ternura acabava por se transformar em sexo. Muitas vezes estive muito apaixonado, outras vezes eram amizades eróticas, com muita ternura e com desejo.
Era um D. Juan?
Não. O D. Juan era o conquistador. Eu era o conquistado. Havia uma aproximação terna que acabava por gerar uma relação erótica. Umas vezes estive profundamente apaixonado. Um mulherengo pode ser um tipo terno
Foi um mulherengo?
[risos] Acho que não, mas tive muitas mulheres. Às vezes fico comovido quando encontro uma dessas pessoas de quem gostei.