As roupas gritam troika ou andamos com a ilusão no corpo?
A moda actual reflecte mais ou menos do que no passado o contexto financeiro em que é produzida? Os desfiles dos criadores portugueses para a Primavera 2013 começam hoje em Lisboa
No BPI da Praça do Município, em Lisboa, uma batida grave e insidiosa começa. Os modelos, silhueta negra de ombros largos, desfilam sob o tema Rioters. A energia tensa da sala é palpável. Estávamos em Março de 2012, 38.ª ModaLisboa, e Ricardo Dourado, autor da colecção que teve base nos conceitos de riot (motim) e reacção, "com uma ideia de quase violência", hoje sente que a sua "vontade acabou por se antecipar às manifestações" que entretanto pulsaram.
A situação financeira de um país intervencionado e de pessoas "incrédulas e com medo", como descreve Nuno Gama, fez Dourado sentir que tinha de dizer algo sobre "a necessidade de sermos menos brandos, mais agressivos", "em grupo, como um gang". Já Nuno Gama reforçou na altura a sua aposta nos símbolos portugueses, num assomo de orgulho nacional, e promete voltar a fazê-lo na 39.ª ModaLisboa, que hoje começa no Pátio da Galé.
2012, ano de crise, 2008 e 2009 aqueles em que tudo começou. Aqueles em que os mais improváveis, como o director criativo da Chanel, Karl Lagerfeld, professavam a contenção: "O bling acabou. Chamo-lhe "a nova modéstia"."
Há séculos, o que vestíamos ou não podíamos vestir era uma restrição social. Depois tornou-se acto proteccionista. "Há uma carta deliciosa em que a [imperatriz] Josefina conta que, quando Napoleão percebia que ela usava roupa de tecidos estrangeiros, lha rasgava", recorda Paulo Morais Alexandre, docente da Escola Superior de Teatro e Cinema. "A moda pode servir de reflexo da crise, mas também servir para sair dela." É famosa a revolução do new look de Christian Dior, um excesso de tecidos e saias rodadas em 1947, ano de Plano Marshall após a libertação de Paris. Morais Alexandre recorda que, quando o industrial têxtil Marcel Boussac se tornou financiador da casaDior, como contrapartida, pediu modas com bastante tecido - um estilo que simboliza não só um sacudir do racionamento mas também uma forma de "a indústria têxtil francesa sair da crise".
A moda é poder de compra, estatuto, matéria-prima e produção. Apesar da crise, as exportações do têxtil e vestuário português em 2011 cresceram 10%, para mais de quatro mil milhões de euros, e o calçado nacional é o segundo mais caro do mundo e o 11.º mais exportado do mundo. Já a moda de autor é uma liga em que os portugueses não são pontas-de-lança e passam pela primeira vez por processos já conhecidos na indústria internacional, como o caso do litígio que separou Ana Salazar do direito ao uso do seu nome como marca.
As semanas de moda portuguesas, ModaLisboa e Portugal Fashion, são periféricas em relação aos grandes centros como Paris ou Milão, e não ditam tendências. Mesmo se em 2010, segundo o estudo O Sector Cultural e Criativo em Portugal: contornos, dimensão e potencial, estas áreas foram responsáveis por 3,1% da riqueza gerada em Portugal e por 2,7% do emprego.
O estudo - que actualiza os dados do seu predecessor O Sector Cultural e Criativo em Portugal, encomendado pelo Ministério da Cultura e que só ia até 2006 - é agora promovido pela Samsung Portugal e diz ainda que, entre as dinâmicas mais positivas com valor para as exportações, se "destacam áreas como o design, as arts & crafts e a moda".
Mundos mais prósperos
Nuno Gama, que sempre trabalhou os ícones portugueses, passou a integrá-los num discurso sobre a situação financeira e anímica do país. Acredita que "nestas crises faz todo o sentido ter um valor diferenciador", afirmativo da identidade nacional. Na colecção que apresenta domingo na ModaLisboa vai "tentar ir mais longe, sacudir as pessoas e obrigá-las a reagir positivamente". "Olhar para o que somos."
Mas hoje as roupas gritam troika? Ou evadem-se (e a nós) para mundos mais prósperos, pondo-nos até no corpo estilos de décadas mais felizes?
Oriole Cullen, curadora de moda e têxteis do Museu Victoria & Albert, em Londres, identifica um momento nos últimos anos em que "a introdução de estilos minimais e despojados por Phoebe Philo na Celine, com tanto sucesso", se pode associar a um espelho "de uma era mais austera". "Mas o reverso da moeda desse look minimal é que as roupas eram incrivelmente caras." E ao mesmo tempo há a fantasia de "colecções barrocas e suculentas que vendem bem", como as da Dolce & Gabbana, como parte de um trabalho que se faz muito da criação de "algo aspiracional", diz a curadora.
A histórica criadora Elsa Schiaparelli disse que "em tempos difíceis a moda é sempre excessiva". Entretanto, os economistas já tentaram perceber essa relação entre a crise e a criação. Há uma famosa teoria, "o índice da bainha", muito replicada desde 2008, ano da falência do Lehman Brothers que quase marca o início desta crise: três anos antes do crash da Bolsa de Nova Iorque de 1929, o economista George Taylor, da Wharton School da Universidade da Pensilvânia, criava quase um adágio: quando as bolsas sobem, as bainhas também (porque as mulheres podem mostrar as pernas cobertas por dispendiosas meias de seda); quando elas descem, é sinal de que a economia piora (para esconder as pernas nuas).
É uma "ideia velha" que "não é verdade", frisa Oriole Cullen - e em 2010 mais um estudo foi feito para o tentar comprovar, pelo Instituto Econométrico da Escola de Economia Erasmus, tendo concluído que não, a relação não é directa. "Penso que o único verdadeiro exemplo de uma relação directa é durante o tempo de guerra, porque há restrições físicas impostas, como o facto de as mulheres assumirem os empregos dos homens e começarem a usar calças durante a I Guerra Mundial, ou o racionamento na II Guerra", precisa Cullen.
Estas teorias são dificilmente generalizáveis e sobretudo inseparáveis de movimentos sociais e culturais - e mesmo eles não totalizam uma era de vestuário. Nos prósperos anos Mad Men, as secretárias de saia-lápis cruzavam-se na rua com as beatniks de gola alta preta e com os blusões de cabedal dos primeiros rebeldes da cultura juvenil - não há um estilo de uma época, há muitos. Mesmo no início dos anos 1990, quando uma breve recessão se instalou, os looks coloridos e pontiagudos dos anos 1980 não se desvaneceram por completo - o minimalismo, o grunge, surgiram como reacção e talvez mais sintonizados com o momento. Mas a correlação já era complexa. E agora ainda mais. "A moda mudou tanto nos últimos 20 anos, com uma abordagem mais individual e ecléctica do que um estilo didáctico, que não acho que se possa dizer que reflecte tanto os tempos económicos e financeiros", diz ainda Oriole Cullen.
Modistas da crise
Durante o Estado Novo, na era das costureiras e modistas, "também há um movimento de defesa da economia, em que há uma taxação da indumentária importada como sendo um bem de luxo", para fomentar o consumo de tecidos portugueses, frisa Paulo Morais Alexandre. "As costureiras portuguesas vão a Paris, importam os modelos e produzem-nos com tecidos de cá", explica. "Fazer um vestido com um modelo/molde é um sintoma de uma economia em crise." Fast forward para os anos 1980, também altura de visita do FMI. Na TV, Jaquina Jaquina Jaquina discutia em horário nobre a "moda crise quatre-vingt quatre [84]", cortesia de Herman José, Vítor de Sousa e Manuel Cavaco n"O Tal Canal, que apostavam que os sacos de lixo, entre outras preciosidades, eram do mais in em tempo de crise.
E hoje? "Hoje é o refúgio na Zara, ou simplesmente o não comprar", diz Paulo Morais Alexandre. E, considera, um "entristecimento da moda" semelhante ao vivido na I Guerra, com "a predominância dos negros e do cinza" nas colecções. Mas vemos na passerelle, e também nas lojas, brocados, rendas, pedrarias, bijuteria ornamentadíssima e néones. "O mercado da moda é um nicho que tende a dissociar-se do resto do mundo, é algo um pouco irreal", diz Ricardo Dourado. "As colecções estão cravejadas de diamantes, tudo fake, os vestidos Lanvin de pedras falsas... mais em oposição a este momento tão frágil financeiramente. Uma reacção contracorrente, do mundo dos sonhos - da moda. É o que as pessoas procuram."
Compras no divã
O acto de comprar obriga a maior reflexão. "Há um sentimento de culpa [do consumidor] e um de reprovação de quem está ao lado", diz Paulo Morais Alexandre, tendo testemunhado "coisas que aconteciam no pós-revolução de Abril" em que quem tinha um bem material de valor tendia a escondê-lo.
Eduarda Abbondanza, directora da Associação ModaLisboa, vê nas passerelles sobretudo "uma resposta colorida à situação, a puxar à compra, à alegria" - com uma nova consciência de consumo, mais contida. E, acrescentamos, a pensar nos mercados emergentes em que o poder de compra abunda. "A ModaLisboa faz sentido ou não?", pergunta-se em seguida Abbondanza, professora da Faculdade de Arquitectura de Lisboa. "Claro que sim - as marcas de luxo estão a entrar cada vez mais em Portugal, Lisboa está-se a tornar num entreposto de shopping para os estrangeiros, mas a ModaLisboa, tendo uma história, sendo uma marca da cidade e do país, justifica-se ainda mais, porque protege a criação nacional."
O mais importante evento de moda português começa hoje e prolonga-se até domingo. Nela e no sábado, Dourado vai fazer evoluir o seu conceito de Rioters para um paralelo entre reclusos e budistas, tocado por uma imagem na sua pesquisa de um monge com um colete à prova de balas no laranja típico da religião. "É uma colecção mais colorida e mais gráfica", explica, mas que continua a apelar à acção. Mas não se espere ver a troika na passerelle. Afinal, há colecções inspiradas na arte, na arquitectura, em conceito, numa aposta (válida) na estética. "Numa primeira reacção, as crises trazem um momento mais cinzento; depois cansamo-nos, a nossa natureza é essa, a procura do belo e começam a aparecer alguns brilhos; e depois é o exagero, as paillettes", descreve Nuno Gama, fazendo pensar em Lady Gaga, embaixatriz da moda extravagante sintomática do século XXI, que diz estar "a tentar mudar o mundo, uma lantejoula de cada vez".