Europa 0.0

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Por mais de 50 anos, os diferentes interesses das principais nações europeias, e, sobretudo o mais determinante deles, que é o alemão, coincidiram em olhar para o projecto europeu como o veículo das suas ambições políticas e de bem-estar dos seus povos. Se pensarmos nos ingredientes essenciais que foram necessários à concretização da velha visão das elites sobre uma Europa unida, fica óbvia essa realidade.

O primeiro resulta da limpeza étnica que duas guerras mundiais proporcionaram e que "arrumaram" as populações nas suas casas naturais. Nações e fronteiras políticas passaram a ter uma coincidência quase total, dando a necessária segurança aos diferentes Estados para entrarem num processo de partilha de soberania. Eu sei que é irónico este começo, se pensarmos no que supostamente a União Europeia representa, mas a ironia não o faz menos verdadeiro.

O segundo foram os meios obtidos para a construção do Estado social europeu a partir da união de alguns sectores de base na Europa como a agricultura, o carvão e que permitiu "comprar" a estabilidade política dos diferentes Estados europeus. Foram as décadas de glória do centrismo social- democrata europeu. Por último a segurança. Não só traduzida na unificação do bloco ocidental face à ameaça soviética, mas também, e ainda mais importante, na resolução da questão alemã pela... amputação da própria Alemanha. Do lado de cá ficava a face mercantil, progressista, herdeira da liga hanseática e suficientemente pequena, política e geograficamente, para ser gerida, e do lado lá as pulsões expansionistas dos junkers prussianos. Nada mais perfeito e de tão equilibrado que parecia o resultado que o mesmo tinha ares de imutabilidade.

Olhando agora para hoje, a solução da presente crise, do ponto de vista técnico, é espantosamente simples. Suportar a união monetária através de verdadeiros mecanismos federais ao nível da dívida, bancos, etc... Foi afinal o que Alexander Hamilton fez nos Estados Unidos e que foi uma das pedras basilares da nova nação. Se a solução técnica é simples, ela é, contudo, simplesmente impraticável do ponto de vista político na Europa de hoje. E para ver esta impossibilidade política nada melhor do que pensar na Itália.

No melhor dos cenários, a federalização da dívida europeia levaria à criação de um mezzogiorno alargado ao nível do Sul da Europa suportado por um tempo indeterminado por transferências do Norte mais produtivo. Mesmo dentro de um mesmo país estes arranjos são dificilmente sustentáveis, sobretudo em tempos de crise, bastando para isso olhar também para o caso recente da Espanha e da rebelião constitucional da Catalunha.

E porquê esta longa introdução? Porque as origens desta impossibilidade estão de facto na política. O projecto da moeda única vem de antes da reunificação alemã e foi utilizado como o quid pro quod final para a aceitação por parte, sobretudo da França, dessa mesma reunificação na procura febril de ancorar definitivamente a Alemanha reunificada no projecto europeu. Mas a fraqueza desta solução está hoje à vista. Em primeiro lugar, porque ela não foi legitimada no voto, nomeadamente na própria Alemanha. Depois, porque a reunificação alemã e a aceleração da globalização económica fizeram divergir aquilo que seria o interesse do projecto europeu dos interesses dos principais Estados seus constituintes, sendo que os três principais ingredientes que estiveram na origem da União deixaram de funcionar de forma harmoniosa, passando a estar em conflito entre si.

Os Estados europeus vivem hoje uma enorme insegurança da sua identidade étnica, traduzida na enorme dificuldade em integrar imigrantes numa altura em que a falta de vitalidade demográfica do continente aconselharia precisamente o contrário. Aqui, a existência de Estados fortemente alicerçados em prestações sociais torna ainda mais difícil essa integração, ao reforçar o mito dos imigrantes enquanto parasitas sociais e não como factor gerador de riqueza, ideias e, sim, também de jovens. As dificuldades por que passa o acordo de Schengen são apenas um reflexo desta realidade.

Por outro lado, temos a enorme dificuldade de financiamento do Estado social que a Europa já não consegue proteger dos ventos da globalização e a presente crise apenas acelerou a constatação da sua inviabilidade económica. Em terceiro lugar, a questão da segurança, em que o interesse europeu ditaria como fundamental a integração da Turquia na União Europeia, um país que pela sua versão moderna do islão em muito poderia contribuir para uma interação de sucesso da Europa com a sua fronteira sul e para uma integração com menos complexos da maior minoria religiosa da Europa. O epíteto do Império Otomano no início do século XX era o "o doente da Europa". Hoje, para a elite turca, os doentes somos nós europeus e temo que esta oportunidade já não volte.

E por último temos a questão alemã. Com a unificação da Alemanha e a emergência de uma nova geração desligada do passado da II Guerra Mundial, a ligação natural do que é bom para a Europa é bom para Alemanha está kaput. E era sobre esse pilar que, em última análise, todo o edifício do euro foi construído. Olhar hoje para a crise do euro e achar que é resolúvel apenas porque o custo do seu término é muito elevado é padecer da mesma ilusão que existia antes da I Guerra Mundial quando políticos, economistas, fazedores de opinião e o próprio mercado financeiro exclamavam, no Verão de 1914, que a guerra era impossível, pois os interesses económicos comuns e o custo em termos de prosperidade seria demasiado elevado. Uma geração dizimada depois e com a Europa de rastos, eles tinham razão sobre os custos, mas essa racionalidade não foi barreira suficiente para prevenir o conflito. Da mesma forma, a realidade política alemã irá ditar o futuro do euro, mesmo que ela contradiga o racional de uma análise custo-benefício.

Jens Weldemann, presidente do Bundesbank, criticou as decisões do Banco Central Europeu para salvar o euro usando para isso a peça Fausto, de Goethe, e o diálogo de Mefistófeles com o Imperador a propósito da criação monetária. Para além de comprovar que no mundo protestante, e sobretudo alemão, a política económica é um braço da filosofia moral, este exemplo traduz na perfeição a visão alemã sobre as origens e a forma de resolução da crise. Os outros países, sobretudo os do Sul, poderiam contrapor com Shakespeare e a peça O Mercador de Veneza, onde Shylock, o mercador judeu (ironia das ironias, não é verdade...), apenas aceita receber em pagamento do seu empréstimo uma libra de carne do corpo do devedor, o pobre António. Sem que o cimento do interesse comum seja explicado aos eleitores, estas duas visões nunca serão compatíveis. É esta a verdadeira razão da crise da Europa.

Administrador do Grupo Caixa Geral de Depósitos no Brasil e ex-quadro do Banco Mundial

. Artigo escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico

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