Outra coisa
Certas coisas acontecem meio por acaso - como quando, numa noite de Outubro de 1999, fui parar a um bar underground de São Paulo para assistir a um concerto comemorativo de uma data qualquer, já não me lembro qual, da vida da banda de punk-rock Ratos de Porão. O tecto do bar era baixo, havia muito fumo de cigarros e, lá ao fundo, por cima das cabeças agitando-se em contraluz, o vocalista, João Gordo, cantava frases guturais que nem sequer se entendiam (a menos que se conhecessem as letras). Também me lembro de uma paulista muito bonita que tinha as costas tatuadas com umas enormes asas negras, belas e inquietantes, como se fosse um anjo convocado para pacificar as apocalípticas gentes ali concentradas.
Lembrei-me disto por causa do romance Onde Andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu, agora editado em Portugal, 22 anos depois da sua publicação no Brasil. Márcia Veiga, ou Márcia Felácio, uma das personagens, filha de Dulce, é a vocalista da banda Vaginas Dentatas. Tem uma borboleta tatuada no peito e, a dado passo, canta num concerto no bar Hiroshima. A descrição do ambiente devolveu-me a São Paulo naquela noite de 1999: "Amontoavam-se punks, darks, skinheads, góticos, junkies, yuppies. Uma legião de replicantes, clones fabricados em série, todos de preto ou roxo, correntes, crucifixos, vendas nos olhos, tatuagens, cabeças raspadas, descoloridas, arrepiadas como cristas geométricas, assimétricas, tingidas de verde, vermelho, violeta."
Caio Fernando Abreu, de quem inacreditavelmente nunca se tinha publicado nenhum livro em Portugal, é um escritor fundamental da literatura contemporânea brasileira. Falecido precocemente em 1996, combina a crueza brutal das descrições da realidade urbana com um lirismo angustiado que recorda Clarice Lispector. Onde Andará Dulce Veiga? é o segundo dos dois romances que escreveu - a maior parte da sua obra foi dedicada aos contos, dos quais o livro Morangos Mofados é um exemplo extraordinário - e conta a história de um jornalista no rasto de uma antiga cantora, desaparecida 20 anos antes. Antes de se eclipsar, na noite daquele que devia ser o seu concerto de consagração, Dulce Veiga repetia insistentemente que queria outra coisa. "Quero outra coisa, quero encontrar outra coisa", dizia uma e outra vez, recordada por Pepito, o seu pianista.
Releio, também por acaso, a frase de Dulce Veiga, o sintoma da sua angústia - e sinto-a agudamente, hoje, outra vez, fustigado por planos de austeridade e discursos apocalípticos. Os jornais anunciam despedimentos, greves, encerramentos de serviços públicos. Tudo se desfaz e avilta, como o rosto sangrando do homem bêbado que, logo pela manhã, vejo sendo assistido por dois técnicos do INEM na paragem do autocarro, agarrado à espécie de esteira prateada sobre a qual deve dormir na entrada de um prédio qualquer. "Quero outra coisa, preciso encontrar outra coisa", repito, como um mantra. Mas não fujo.