Há uma revolução no Peru e começou pela comida
Pode um cozinheiro mudar um país? Pode um cozinheiro ser mais ouvido e respeitado que qualquer político? No Peru, sim. Gastón Acurio começou uma revolução. Mas não está sozi-nho. Juntou-se a outros cozinheiros, aos agricultores e, por fim, aos consumidores. A história de uma revolução improvável e de como o orgulho pela comida está a transformar um povo
Aqui fala-se de batatas e de sonhos na mesma frase. Estamos no Mistura, o maior festival gastronómico da América Latina e a montra mais mediática da revolução social que, em torno da comida, está a acontecer no Peru. Uma revolução liderada por cozinheiros, que se ligaram aos produtores e que chamaram os consumidores para o lado deles. O que levou 500 mil pessoas durante dez dias (de 7 a 16 de Setembro) ao Campo de Marte, no centro de Lima, a capital peruana? É de comida que aqui se trata - mas, na verdade, é muito mais do que isso. O Peru está a mudar.
Houve um homem que há 30 anos sonhou com tudo isto. Mas ainda lhe custa a acreditar que já se tenha chegado tão longe em pouco mais de uma década. Vamos conhecer Bernardo Roca Rey, ex-vice-ministro da Cultura e hoje presidente da Apega, a Sociedade Peruana de Gastronomia, criada em 2007 para promover a cozinha peruana "como base da identidade cultural e factor de desenvolvimento económico, progresso e bem-estar para todos".
"Tudo o que sonhei um dia está a acontecer", diz Roca Rey, olhando comovido para o auditório completamente cheio do Mistura, por entre paredes onde foram impressos, em tamanho gigante, grãos dos Andes, um dos produtos que a Apega está a promover. "Somos um país que se está a unir através de um tema cultural. Eu tenho a sorte de ter assistido a isto desde o princípio. Nem todos os países têm esta sorte."
A assistência aplaude. As cadeiras estão cheias - há estudantes de cozinha (são 80 mil neste momento no Peru), com as suas jaquetas brancas com os nomes das escolas bordados, há jornalistas peruanos e estrangeiros, pessoas que vivem em Lima, pessoas que vêm de fora, camponeses dos Andes com trajes tradicionais, que trouxeram as suas batatas e a sua quinoa para vender no Grande Mercado montado no centro do festival Mistura. Todos sabem de que é que Bernardo Roca Rey está a falar. E todos acreditam que é possível.
Quando o conhecemos em Lisboa, há quase um ano, Roca Rey relatou o que estava a acontecer no Peru, e agora surpreende-se por termos viajado de tão longe para ver se era mesmo como ele dizia. Pedimos-lhe que nos conte a história do princípio. "Faço parte de uma família que é proprietária de jornais, entre os quais o El Comercio", começa. "Houve uma altura em que os jornais foram confiscados, durante o Governo militar [1968-75]. Quando foram devolvidos, pediram-me que me ocupasse da parte de crónicas, daquilo que não era informação diária." Foi aí que se pôs a escrever sobre "a cultura viva". E a cultura viva era também a comida.
"O país vivia dividido por uma reforma agrária muito forte, por uma distância que se tinha criado entre os diferentes sectores da sociedade, e eu entendi que eram precisos argumentos que reforçassem a identidade e a auto-estima dos peruanos", continua o jornalista, também cozinheiro amador. "Saíamos de uma ditadura que tinha impedido a liberdade de expressão e a única coisa que existia eram anúncios de obras gigantescas, faraónicas, que o Governo estava a realizar. Então dizia nos meus artigos que a história do Peru era algo para o qual devíamos olhar. E não imagina o êxito que isso teve neste país tão dorido."
Foi então que Bernardo inventou aquilo a que chamou a cozinha novo-andina. Pôs-se a cozinhar com produtos aos quais ninguém dava atenção porque eram de camponeses, de pobres. Foi buscar os grãos como a quinoa, a kiwicha, usou as imensas variedades de ajís (uma espécie de malagueta), as inúmeras espécies de batatas e convidou as pessoas a comerem o que nascia no Peru. Foi ele o criador do prato que fundou a cozinha novo-andina: a gran olla huacachina, usando apenas produtos locais e substituindo o arroz por quinoa. Pouco depois, surgiu em Lima o restaurante Las Brujas de Cachiche, que servia apenas pratos dos tempos dos incas.
"Quando começo a publicar os textos, há reacções: "Quem é que vai comer quinoa? Roca Rey está totalmente louco." Mas eu invento uma estratégia e coloco as receitas nalguns restaurantes." A quinoa, explica, começou a desaparecer dos hábitos alimentares dos peruanos depois da chegada dos espanhóis. "Para dominarem o país, os espanhóis afastam os antigos deuses, os antigos rituais e fazem o mesmo com a comida." No lugar da quinoa semeiam trigo. E assim mudam o país. Agora tudo está a mudar outra vez.
Apesar de andar nisto há muito tempo, Roca Rey não se cansa de procurar novos ingredientes. Pede ao assistente que lhe traga uma coisa para nos mostrar. Aparece um feijão enorme. "É extraordinário", comenta, entusiasmado. "Aqui em Lima ninguém conhece isto. Estou a trabalhar com ele, a experimentar receitas e vou lançá-lo dentro de um mês." Se este ano os grãos andinos foram o centro do Mistura, para o ano é possível que sejam estes feijões.
Ainda estamos a meio da manhã e já há filas enormes para comer o chancho al palo, porco assado nas brasas, cujo cheiro enche o ar. Ninguém se importa de esperar uma hora pela sua porção do prato preparado por Carlos Ramirez. A carne desossada vai rodando nas enormes grelhas colocadas na vertical, ligeiramente inclinadas para, explica Ramirez, a pele ficar estaladiça mas não ganhar cheiro a queimado. No final dos dez dias, foram 11 mil doses vendidas, o recorde da feira.
Há, no entanto, quem prefira o prato-símbolo do Peru, o ceviche, peixe cru cortado em pedaços e marinado em sumo de lima, ají, sal e pimenta. Ao líquido desta marinada os peruanos dão o nome de "leite de tigre" e no quiosque do Jíron Marino vende-se um "leite de tigre infernal", daqueles de lançarmos chamas pela boca.
A feira está organizada em diferentes áreas, todas em torno do Grande Mercado onde os camponeses mostram os seus produtos. Há uma zona só dedicada ao pisco (aguardente vínica típica do Peru), outra ao chocolate, uma de cozinhas regionais, do Norte, do Sul, dos Andes, da Amazónia, uma de cozinhas rústicas e ainda um espaço destinado aos "huariques", esses locais populares que não são oficialmente restaurantes mas que servem comida - e, garantem muitos peruanos, deliciosa.
No seu Sanguche Chifero, um sorridente Hugo Alfonso Campos, traços chineses num rosto redondo e suado, conta que pertence já à quarta geração de imigrantes chineses no Peru, vem de Ica, e cozinha desde os 17 anos. O prato que aqui apresenta é uma criação sua, uma espécie de porco doce - a carne está mergulhada numa panela, numa água a ferver com açúcar, pisco, canela chinesa, pimenta negra e várias outras especiarias, e o cheiro começa também a atrair curiosos.
Outros espaços chamam a atenção. No do Muyuchi, mulheres com trajes tradicionais, chapéus altos no cimo da cabeça, vestidos brancos de renda, capas coloridas em torno do pescoço, fazem rodar continuamente panelas dentro de tachos com gelo, uma forma típica de fazer aquilo a que chamam "queijo gelado". E na Las Tinajas del Conde cozinha-se algo que à primeira vista nos parece muito estranho e que descobrimos tratar-se de uma iguaria muito apreciada no Peru: cuy, ou, em português, porquinho-da-índia.
À medida que as horas vão avançando, há cada vez mais gente segurando pratinhos de comida e cruzando-se pelo recinto da feira. A certa altura já não há lugar nas mesas e cadeiras disponíveis e as pessoas começam a sentar-se no chão, espalhando-se por todo o lado, indiferentes ao pó que se levanta e que cobre os sapatos de todos.
O ministro do Ambiente, Manuel Pulgar Vidal, há-de dizer que aqui o que nos une, a nós "mistureiros", são os sapatos sujos. São simbólicos, porque significam uma coisa: se queremos comer bem, temos de sujar os sapatos. Como os camponeses que andam a cavar a terra e a plantar os alimentos.
Os processos de transformação são lentos e foi preciso chegar outra figura central desta história para que a mudança sonhada por Roca Rey se tornasse finalmente numa revolução. Entra em cena Gastón Acurio, chef, hoje dono de um império de restaurantes espalhados pela América Latina e que já chegaram a Espanha (Madrid), apresentador de um programa de televisão, Aventura Culinária, que mostrou aos peruanos de Lima o trabalho que se faz nos campos, que apresentou agricultores, elogiou-os, valorizou-os, que pôs o litoral a olhar para o interior, e que deu ao interior a auto-estima que lhe faltava.
Acurio é hoje o peruano mais famoso. Não há quem não o conheça. Não há político que se lhe compare. Todos sabem a sua história: filho de um importante político e senador, Gastón começou por estudar Direito em Lima. Depois o pai mandou-o para a Europa para continuar os estudos, mas ele, contrariando o desejo da família, trocou as aulas de Direito pelas de culinária, e de Madrid passou para o Le Cordon Bleu, em Paris, de onde voltou em 1994, com a sua mulher alemã Astrid Gutsche.
Por entre a confusão do Mistura, vamos à procura dele. É dia de convidados muito especiais no Grande Auditório da feira, vêm os chefs australianos Peter Gilmore e Dan Hunter, vem Diego Muñoz, um dos cozinheiros que trabalham com Gastón nos restaurantes Astrid&Gaston, e de Espanha a estrela Joan Roca, do Celler de Can Roca, o segundo melhor restaurante do mundo na lista da revista Restaurant.
Na sala de apoio, por detrás do palco, Gastón conversa com algumas pessoas. O que está, afinal, a acontecer no Peru? "É só o começo de um grande plano que vai demorar ainda muito tempo e que nasce da sã, justa e compreensível indignação dos jovens peruanos, que não entendem por que é que um país tão rico, com tantos recursos, tanta história, tantas oportunidades, continua a ser considerado como do terceiro mundo, apenas exportador de matérias-primas. Esses jovens pensam que podem contribuir de alguma forma para que isso mude."
O que perceberam foi que a cozinha podia ser esse tema que uniria todos os peruanos. Mas é preciso saber olhar para ela e perceber tudo o que ela significa. "É uma actividade que toca a todos: agricultura, pesca, indústria, meio ambiente, os negócios, a promoção de um país no mundo, a cultura, a arte. Se olhas para a cozinha apenas como um espaço lúdico, de prazer, se não te importas com o que se passa à tua volta, então, sim, trata-se apenas de comer, de desfrutar, para os que podem pagar."
Em muitos países, é um acto elitista, afirma Gastón. "Mas num país como o Peru, em que a riqueza choca permanentemente com a pobreza, onde o prazer pode tornar-se imoral porque há crianças que sofrem de má-nutrição, foi mais fácil os cozinheiros reconhecerem que a cozinha tinha de ser algo mais do que dar de comer aos poucos que podem pagar."
Liderados por Gastón, os cozinheiros saíram dos seus restaurantes para ir até aos campos, ao mar, "entender um pouco o que acontecia em torno dos pratos" que cozinhavam. "Começámos a entender qual era a nossa posição e decidimos actuar. Num determinado momento, isso converteu-se num discurso e esse discurso tornou-se num movimento. No início eram cozinheiros formados na Europa, mas depois foram cozinheiros de todo o tipo que abraçaram esta causa. A seguir foram cozinheiros e produtores que se abraçaram, e depois produtores, cozinheiros e consumidores unidos em torno deste sentimento, deste sonho." Lá está ela, mais uma vez, a palavra "sonho".
Se é idealismo, pelo menos parece contagioso. No meio das bancas do Grande Mercado, está Edilberto Soto Tenorio, produtor, e presidente da Corpapa, instituição que promove as batatas peruanas, as chamadas papas nativas. Barba preta cerrada, pele escura, chapéu castanho na cabeça, capa castanha às costas, Edilberto faz questão de andar vestido de camponês andino. Na sua banca estão batatas de imensas formas e feitios - redondas, compridas, enroladas, de várias cores e sabores. Algumas estão cortadas ao meio para mostrar como são por dentro, umas são totalmente roxas, outras parece que foram pintadas com traços delicados.
"Estas são as quatro variedades de batatas que os cozinheiros escolheram no ano passado", explica, apontando para quatro montinhos de batatas diferentes, cada uma com o nome escrito num papel. "Este ano vão escolher outras quatro que são as que nós vamos semear." O que está a nascer aqui é um trabalho de colaboração, em que os camponeses adaptam a sua produção às necessidades dos cozinheiros.
"Antes não havia uma boa comunicação, não havia articulação, entendimento", diz, enquanto corta lâminas de cada batata para nos mostrar como os sabores são diferentes. "Agora vamos semear juntos com os cozinheiros, e eles vêem e aprendem: "Ah, assim é que se semeia, é difícil", e assim entendem o esforço do camponês. Agora, com isto, os cozinheiros preocupam-se que o camponês receba o preço justo pelo que produz." E foi o Mistura que conseguiu isto? "O Mistura juntou-nos. Agora há amizade, confiança, diálogo." Os camponeses também têm responsabilidades nesta relação. "Temos de estar muito atentos à inquietação dos cozinheiros, porque, afinal, o que estamos a dar-lhes são tintas para eles fazerem um quadro."
Atrás de nós, uma mulher alta e elegante aproxima-se de uma banca e, entusiasmada, chama o filho pequeno: "Olha, vem ver aqui tantas batatas diferentes que existem." Isto é o público urbano, do litoral, a espantar-se perante a imensa riqueza de frutos e legumes que existe nas montanhas dos Andes e, mais longe ainda, na Amazónia, de onde começam também a chegar produtos de nomes, feitiose sabores exóticos.
Na primeira edição do Mistura, em 2008, conta Gastón, organizou-se uma entrega de prémios aos camponeses que apresentassem os melhores produtos. "Íamos procurar um camponês que estivesse a fazer um bom trabalho com um determinado produto e premiávamo-lo. Na altura pensávamos que o fazíamos para que eles encontrassem novos mercados. Mas no dia da entrega dos prémios, com o público de Lima a aplaudi-los, houve um que se aproximou de mim e disse: "Esperámos 500 anos por este momento, esperámos para sentir este carinho, respeito, reconhecimento e a partir de hoje pode-se mudar tudo." Hoje o camponês é uma pessoa querida e admirada por uma cidade que sempre lhe voltou as costas."
É por isso que a história desta revolução é a história de uma reconciliação nacional. O litoral cosmopolita sempre olhou de cima os camponeses pobres dos Andes e os habitantes da Amazónia. "Não é preciso ir muito longe para recordar a profunda depressão colectiva - a psicológica, não a económica, embora essa também existisse - que foi minando o ânimo dos peruanos durante os 20 anos de terrorismo, entre 1980 e 2000", escreveu em Fevereiro no El País a peruana Fietta Jarque, responsável pelas páginas de arte do jornal espanhol.
Jarque cita o documento da Comissão para a Verdade e a Reconciliação que descreve esse período como "o episódio de violência mais intenso, mais extenso e prolongado de toda a história da República". Basta dizer que morreram 70 mil pessoas, "o que supera o número de perdas humanas sofridas pelo Peru em todas as guerras externas e civis ocorridas nos seus 182 anos de vida independente".
A jornalista fala de "uma etapa profundamente traumática", na qual "a população ficou psicologicamente ferida e o país em estado de ruína". A captura do líder do Sendero Luminoso, Abimael Guzmán, em 1992, marcou um ponto de viragem. Mas ainda hoje, enquanto decorre o Mistura e as pessoas falam numa nova esperança, a televisão peruana noticia a morte de uma criança numa troca de tiros entre as autoridades e supostos terroristas. Passaram-se 20 anos, muita coisa mudou no Peru, mas as feridas ainda não estão curadas.
E, no entanto, a mensagem que passa no Mistura é que há todo um país fantástico por descobrir - um país que os próprios peruanos não conhecem. No palco do festival, os cozinheiros são recebidos como estrelas. A plateia, sempre cheia, aplaude euforicamente. Os estudantes de cozinha olham com admiração para os seus heróis. Um destes heróis é Diego Muñoz, chef do Astrid & Gastón, formado no Cordon Bleu de Paris e com passagem por restaurantes de referência como os espanhóis Mugaritz e elBulli.
Diego apresenta os seus colaboradores como se fossem uma banda de rock. E a sua participação começa com um filme da viagem que a equipa fez pelo Peru em busca de novos produtos. Voltaram com cinco novidades que vão integrar na nova carta: a chira (um tipo de caule), a kiwicha (um grão, amaranto, em português), a begónia (flor), o maracujá, a granadilla e o caju. Com estes produtos, a equipa criou um novo menu que conta a história do Peru - a criação (apresentado num ninho), o homem, o encontro de culturas, o refúgio (quando comunidades estrangeiras começaram a chegar ao Peru) e, por fim, o Peru de hoje. O auditório aplaude.
A cozinha é também isto: os melhores restaurantes de Lima cheios de gente que se maravilha com produtos cujos nomes ainda tem dificuldade em pronunciar. A ideia é que estes se tornem familiares e que, gradualmente, deixem de ser apenas usados pela alta-cozinha e entrem nos hábitos alimentares dos peruanos. Edilberto Soto, o produtor, explica que para já os camponeses andinos ainda têm dificuldades em fornecer batatas e outros legumes em quantidades suficientes para alimentar os supermercados. A estratégia está a ser pensada etapa a etapa, e ainda vamos nos cozinheiros.
"Vamos sair da pobreza", diz, convicto. "O nosso produto vai ter valor, vamos ter uma melhor vida no campo." Aponta as batatas. "Estas maravilhas podem converter-se em instrumentos para lutar contra a pobreza, para tirar os nossos filhos da pobreza." Para já, as papas nativas ainda são um luxo em Lima. Nas montanhas dos Andes são a base da sobrevivência.
Marco Aviles é jornalista e editor de um projecto chamado Cometa. Encontramo-nos num café de Lima às 8h00 da manhã porque por estes dias tem tanto que fazer que é a única hora que tem disponível. Aproveitou o Mistura como pretexto para contar uma história que vai muito para além do terreno do festival: acompanhou dois agricultores andinos que desceram da sua aldeia a quatro mil metros de altitude para levar 84 variedades de papas nativas ao Mistura. E só assim é possível perceber como Lima e os Andes estão distantes de tantas formas.
Fredy Carrasco e Isabel Huilcapuma nunca tinham ido a Lima - e nunca tinham visto o mar. Foi o Projecto de Desenvolvimento Estratégico dos Recursos Naturais, apoiado pela Bélgica, que lhes possibilitou esta viagem. Fredy tinha uma grande expectativa em relação ao Mistura, mas sente-se dividido porque a mulher acaba de ter um filho e ele não queria separar-se deles por muito tempo. É disso que falam no longo caminho até à capital. E também do preço que poderão conseguir pelas suas batatas.
A única experiência que Fredy tem de venda é numa aldeia próxima do sítio onde vive. Quando viaja até aí consegue, geralmente, um preço muito baixo pelas suas batatas - quase não compensa a deslocação. Da última vez deram-lhe 30 cêntimos por quilo (oito cêntimos de euro). Mas se nos Andes as papas são banais (uma das filhas de Isabel Huilcapuma pediu à mãe que trouxesse da capital caramelos, bolo e arroz), em Lima são as estrelas. E os camponeses vendem-nas a cinco soles (1,48 euros) o quilo.
"Mistura é uma montra alucinante, é incrível, mas devia continuar no resto do ano noutros lados, nos mercados, nos supermercados, nas feiras ecológicas", defende Marco Aviles. "É preciso criar o hábito."
Para que uma revolução se consolide, é preciso garantir a continuidade, é fundamental pensar na geração seguinte. Gastón já o está a fazer. Rocío Heredia é directora do Instituto Culinário de Pachacutec, numa zona desfavorecida de Lima. O projecto é de Gastón, que foi convidado para o desenvolver por monsenhor Javier del Rio Alba, actual bispo de Arequipa. "Na área de Pachacutec, houve uma invasão muito grande de gente que foi viver para ali depois de o Governo ter prometido que teriam água, luz e um sítio para viver", conta Rocío Heredia. "Monsenhor Javier achou que era importante criar aí um lugar para ajudar estas pessoas a superarem-se e a deixarem as drogas e a delinquência." Os primeiros cursos que surgiram foram de administração, cosmética, desenho gráfico. Mas a certa altura, o boom da gastronomia começava já a sentir-se e monsenhor Javier decidiu convidar Gastón a organizar um curso em Pachacutec.
Em 2007, Rocio tornou-se directora do instituto, que inicialmente se destinava apenas a jovens de Pachacutec, mas que, depois, se foi abrindo a outros. "A nossa intenção é dar apoio a todos os jovens de poucos recursos económicos que queiram estudar e que não podem fazê-lo porque é caro." Por isso, se numa escola normal eles pagariam no mínimo 750 soles mensais, ou até 1000 ou 1500, aqui pagam 105 soles, porque muitos dos custos da escola são apoiados quer pelos restaurantes de Gastón, que disponibiliza os seus cozinheiros para darem aulas, quer por uma cadeia de supermercados que fornece os ingredientes.
Os alunos de Rocio, todos com as suas jaquetas brancas, estão sentados nas mesas compridas de madeira no recinto do Mistura. Juana Torres tem um rosto redondo e simpático e o cabelo escuro e liso apanhado atrás. Aos 26 anos está a terminar o curso, que decidiu fazer depois de uma experiência que não lhe agradou muito no curso de cosmética. "Quis estudar cozinha para me inspirar e fazer os meus próprios pratos", diz, explicando que quer ser pasteleira. E ouvi-la é perceber como a mensagem de Gastón passou já para a geração seguinte. "Há no Peru muitos produtos diferentes, da selva, da serra e há muito espaço para inovar a partir das receitas tradicionais."
Jesus Yaranga Ñaña, 21 anos, não está tão interessado nos doces, mas, tirando isso, tem um discurso semelhante ao de Juana. "Interessam-me os pratos crioulos, mas quero fazer cozinha de autor." Gostou, ali no Mistura, de ouvir falar de produtos novos. "Pensei abrir daqui a um tempo um negócio que tenha um pouco de costa, de serra e de selva."
Depois da conversa, pedimos-lhes para tirarem uma foto e toda a turma se coloca atrás do orgulhoso Jesus, que posa, de braços cruzados sobre o peito e expressão de quem está decidido a vencer na vida porque, afinal, vem de um país com a melhor gastronomia do mundo.
Perto de 80 mil estudantes de cozinha no Peru não será de mais? Haverá no futuro trabalho para tanta gente? "Talvez possa ser um problema se estiver tudo centralizado em Lima", admite Rocío Heredia. "Mas as zonas da província continuam virgens, e estes jovens também têm como visão serem embaixadores da cozinha peruana noutros lugares do mundo."
É o que diz igualmente Gastón quando conversa com a revista 2: "Perguntam-me onde é que estes jovens vão trabalhar. Como "onde vão trabalhar"? No mundo. Se todos pensarmos que o Peru é o mundo, estamos fritos. Sempre nos ensinaram isso. E temos um caminho muito longo a percorrer, o mesmo caminho que percorreu a pizza há cem anos. Hoje há uma pizzaria em cada esquina. Por que é que não pode haver uma cevicheria em cada esquina, com produtos e ingredientes peruanos? É um caminho longo, mas é para isso que os estamos a preparar: para que o percorram com êxito mas respeitando a filosofia que lhes deixamos. Oportunidades para o Peru são todas, dentro e fora."
Rocío quase se comove - por um momento os olhos enchem-se de água - quando fala de como o país mudou. "Tudo isto mudou muito a identidade do peruano. Depois de tudo o que passámos... O terrorismo foi uma etapa muito forte para nós, que nos fez cambalear por um momento, fomos um país que sofreu muito e por isso perdemos a nossa identidade. Havia muita divisão, muitas lutas internas e uma forma de nos unirmos foi sentirmo-nos orgulhosos da nossa comida. E Gastón teve muita influência nisso."
Para Rocio, e sem dúvida para muitos peruanos, "ele é um líder". "Para lá do encanto que pode ter, é uma influência muito forte. Faz com que o Peru se sinta orgulhoso do que tem. É muito importante ter um líder. E nós estamos agradecidos por termos um. É alguém que não fala apenas do tema gastronómico, fala da transparência em tudo o que possas fazer."
E falada importância da excelência que é, diz ele, a próxima etapa. "Hoje o mundo está à nossa espera, à espera que façamos bons restaurantes, que formemos bem os nossos cozinheiros, que acrescentemos responsabilidade ética ao nosso trabalho. Estamos a começar uma segunda etapa, a da excelência, da busca de perfeição, da beleza, da coerência em todas as frentes - nos agricultores, nos pescadores, nos políticos, nos empresários, nos consumidores." Isso, continua Gastón, passa por "uma autocrítica permanente" e pela vontade de "sermos melhores todos os dias".
Essa preocupação ética conduz-nos a algo de que tanto Gastón como Roca Rey falam: o problema da má nutrição infantil que continua a existir no Peru e que, reconhecem ambos, é incompatível com toda esta revolução culinária. Mas se, de início, os políticos não levavam demasiado a sério as ideias de Roca Rey, hoje as coisas mudaram. "O Estado peruano já reconhece que esta é uma verdadeira revolução, não é uma piada de salão", diz o presidente da Apega.
Este ano, num dos fóruns de debate do Mistura, a ministra do Desenvolvimento e Inclusão Social, Carolina Trivelli, sentou-se no palco para falar precisamente da necessidade de "comer saudável, comer o que é nosso". "Não queremos apenas que as nossas crianças comam bem, mas que sejam portadoras das tradições das suas regiões. Os grãos andinos estão no centro desta estratégia", declarou Trivelli, que dias depois assinaria com a Apega um acordo para que vários produtos andinos, nomeadamente a quinoa, fossem introduzidos nas ementas das escolas. "É fundamental a aliança com os produtores locais e os cozinheiros. As nossas crianças precisam de saber de onde vêm os alimentos."
Os incas usaram a comida para estabelecer o seu domínio. Os espanhóis fizeram o mesmo. Alimentação é política. E, para que hoje a mudança se consolide, é preciso também vontade política. "É essencial, sem dúvida", diz Gastón. "Há milhares de anos construiu-se aqui uma biodiversidade em que as pessoas tinham segurança ambiental. Não havia crianças subnutridas porque comiam o que tinham. Depois veio o marketing e disse que tinham de beber leite e comer massa, e as pessoas começaram a abandonar a quinoa e os outros produtos. As políticas públicas deram ouvidos ao marketing e os programas de assistência alimentar enviavam de Lima para o resto do país leite, açúcar, massa, arroz. Hoje está-se a recuperar cadeias produtivas locais em dietas ricas, saudáveis e coerentes."
Roca Rey ainda está a festejar mais esta vitória, mas já pensa nas próximas batalhas. Uma ideia que tem andado às voltas na sua cabeça é a de conseguir um acordo com outro ministério, desta vez o da Cultura, para que os "terraços andinos", os socalcos que vêm já do tempo dos incas e que permitiram aos homens cultivar toda aquela variedade de produtos em zonas tão complicadas como os Andes, sejam mais bem aproveitados.
O problema, explica, é que têm sido tratados como património, e por isso gasta-se dinheiro para que os arqueólogos os mantenham. O que ele propõe é que os terraços sejam devolvidos à sua função original, que se entreguem aos agricultores para que estes os cultivem e, ao mesmo tempo, cuidem deles. A ideia parece-lhe de uma simplicidade tão perfeita que não se cansa de falar dela.
"Sabes quanto custa manter estes terraços arqueológicos? É preciso um arqueólogo com uma pinça a tirar entre cada duas pedras uma pequena raiz. Os camponeses podem cuidar deles produzindo, e usam terra orgânica." Já sonha com as possibilidades. "Nos grandes restaurantes de Lisboa, podem dizer que servem produtos de socalcos andinos com mais de dois mil anos. É um resgate ecológico à biodiversidade. Há uma infinidade de possibilidades novas de juntar um valor acrescentado. São decisões rápidas, fáceis, mas que mudam um país."
E será possível, claro, acredita Roca Rey. Tal como foi possível outra coisa que parecia impossível: os peruanos conseguiram impor uma moratória de dez anos à introdução de transgénicos. "Foi uma coisa incrível, que não se conseguiu em mais lado nenhum: os transgénicos não entrarão no Peru nos próximos dez anos, enquanto não se provar que têm vantagens e que não contaminam. Porque, com os transgénicos, está-se a competir com todos os pequenos agricultores."
O Peru mudou. E continua a mudar. Disso ninguém tem dúvidas. Quem saiu e regressou vê ainda mais claramente as mudanças. É o caso de Eugenia Mont Farfán, directora editorial do grupo Planeta, que, consciente do interesse crescente do tema, tem lançado vários livros sobre gastronomia - entre os quais Cebiche Power, de Gastón Acurio, no qual o cozinheiro atravessa o Peru procurando os melhores ceviches do país.
Eugenia esteve fora do Peru entre 2006 e 2008. Foi o suficiente para encontrar um ambiente diferente. "Neste momento somos um país feliz, apesar de todos os problemas que continuamos a ter. Há muito optimismo, e a comida reflecte isso". Acredita que outras mudanças virão. "O próximo tema que vai ter uma grande influência na sociedade peruana é visual, o estético, todo o tema do aprender a socializar e a gastar o dinheiro que se tem."
O facto é que toda esta revolução acontece numa altura em que a economia começou a crescer. "Saímos de uma situação de crise, que durou uns 25 ou 30 anos, e a partir de 2000 as coisas começaram a melhorar." No meio disto, claro, chegou Gastón. "É como um messias. Chegou, falou e toda a gente ouviu. Isso não se pode planear, é algo que acontece."
E a comida foi o tema certo. "Toda a gente come e come todos os dias. Quer pagues cinco soles ou 15 mil dólares, todos aqui já provaram um bom ají de galinha, todos podem falar disso, participar nesse orgulho pela comida. É um processo muito interessante, que não se pode necessariamente replicar em todos os países, mas que no Peru funciona."
Um dos que estão a ajudar a passar esta mensagem para o resto do mundo é Virgilio Martínez, um dos mais promissores jovens chefs do Peru. Vimo-lo primeiro no Mistura, a fazer uma apresentação sobre a sua cozinha e o seu restaurante, o Central, em Lima (acaba de abrir também um em Londres, chamado Lima). No palco do Mistura, Virgilio explica o que inspirou o seu menu de degustação, a que chamou Origens. Começa com um filme. Os sons enchem o auditório - a água, o vento, um sacho a entrar na terra. Quase ouvimos as plantas a crescer. "Procuramos inspiração nesta realidade pouco explorada", diz. "Valorizamos a possibilidade de estarmos mais próximos da Natureza. Um cozinheiro tem de perceber de onde vêm as coisas. Somos muito privilegiados por termos um país assim."
Chama ao palco Edilberto Soto Tenorio, o produtor de batatas. E os dois apresentam uma enorme batata, da qual Virgilio vai cortar lâminas finas para fazer uma entrada. Trata os produtos todos com enorme respeito, do peixe cozinhado a baixas temperaturas, ao leitão dos pastos altos dos Andes, à noz de bahuaja, que só se produz num parque natural.
Dias depois vamos conhecê-lo no Central. Já chegamos a meio da tarde, mas a sala ainda está cheia - o restaurante é, actualmente, um dos preferidos dos limenhos, e, entre este espaço, outro em Cusco, e ainda o de Londres, Virgilio não pára.
Recebe-nos no seu escritório. Uma estante cheia de livros de gastronomia de todo o mundo. Outra cheia de frascos com sementes, grãos, folhas, pós, todos com rótulos com palavras difíceis de pronunciar. Podia ser uma farmácia antiga. E é, de certa forma, um laboratório para as experiências que Virgilio faz constantemente com novos produtos.
"Antigamente não tínhamos orgulho nestes produtos. Não comíamos quinoa, kiwicha, batatas, preferíamos a cozinha francesa ou a italiana", conta. Cresceu a ouvir que não havia nada de que os peruanos se pudessem orgulhar. Decidiu partir, viajar. "A minha mãe é pintora e arquitecta", conta, explicando que foi ela quem concebeu o espaço do restaurante. "E sempre me ensinou a fazer coisas com as mãos. Tornei-me cozinheiro porque queria fazer coisas com as mãos e queria viajar." Andou pelo Canadá, por Londres, Nova Iorque, Madrid, Singapura. Viajou, desenhou, cozinhou. "E depois disse: bem, o Peru é importante porque é a minha identidade." E voltou.
"Quando saí, tinham-me ensinado que o Peru era um país pobre, que não me devia orgulhar dele. Agora encontrei um país com muitas coisas novas, positivas, onde as pessoas estão contentes. E apaixonei-me por ele." Não foi o único. Muitos dos seus amigos que também tinham partido regressaram. Ele chegou há cinco anos e começou a viajar, desta vez dentro do Peru. "Percebi que aqui podia centralizar tudo o que estava a viver." Por isso chamou ao seu restaurante Central.
O restaurante que tem em Cusco permite-lhe estar em contacto mais directo com os produtores. E conta com uma equipa para o apoiar: em Cusco está um antropólogo, que estuda a história e o tema, e depois tem o apoio da irmã, que se ocupa da parte mais científica. "Eles ajudam-me a ver se um produto é saudável, se tem futuro, se é sustentável." Esta revolução tem, diz Virgilio, uma característica: é genuína. "Quando vais aos Andes e vês o produtor, isso é real. É tudo virgem, incluindo para nós."
É o mesmo que diz Roca Rey, sentado no pavilhão da Apega, no meio do Mistura, abrindo os braços. "Os camponeses que estão aqui são reais, não são actores contratados, alguns nem sequer falam castelhano. Em Espanha, a revolução gastronómica foi feita pelos chefs, podemos dizer que revolucionou a cozinha mundial, mas não é uma revolução integracionista. São os chefs, com alguns jornalistas, e o público, muito conhecedor, que os seguia para todo o lado. Alimentavam-se uns aos outros. Aqui não. Nós usámos a ideia da produção local, mas juntamos-lhe a inclusão social." E, já agora, a capacidade de sonhar.
Atravessamos uma última vez o terreno do Mistura. A equipa que controla a higiene e qualidade dos alimentos, de batas brancas, cabelos cobertos, máscaras na boca, faz testes nas bancas de comida. As pessoas vão-se juntando às já longas filas, para pedirem o seu prato favorito. No Grande Mercado, os produtores distribuem papéis - "Papas nativas, do Peru para o mundo", "Os pequenos agricultores semeiam biodiversidade, os cozinheiros cozinham a nossa mágica cozinha peruana"; "Mãos orgulhosas oferecem ao mundo os seus melhores e mais diversos frutos". Um cartaz pendurado do tecto anuncia: "Pequenos produtores baluartes da biodiversidade", "Camponeses e cozinheiros, cozinharemos juntos o progresso do Peru".
Lembramo-nos das palavras de Gastón: "Mistura é uma celebração de todos em redor deste sonho. Um sonho que é muito simples: que um dia a nossa cultura, o nosso país, o nosso povo, sejam queridos, respeitados. Que os nossos produtos se comprem, que as nossas ideias saiam as fronteiras, que os nossos sentimentos se tornem universais, sem olhar ninguém com superioridade, simplesmente partilhando o que temos com o mundo, sem roubar nada a ninguém, chegando ao mundo de uma forma doce. Para conseguir isso, ainda há muito por fazer. Mas o mais difícil já conseguimos: aprendemos que o êxito de um é o nosso êxito e que o fracasso do outro exige a ajuda de todos, porque se um fracassa fracassamos todos. Se estás unido e acreditas no que tens, é muito difícil que alguém te pare." Político? Sem dúvida. E está a funcionar.