A inventora da lavanda é doutora da igreja
Autora de uma poesia e de uma música que apela aos sentidos, ícone feminista, a monja Hildegarda de Bingen dedicou a sua vida a múltiplas dimensões. O Papa Bento XVI proclama-a hoje doutora da Igreja
la foi tudo: escritora e poetisa, compositora e pintora, abadessa e formadora de religiosas, médica e teóloga. Correspondeu-se e discutiu com reis e imperadores, papas e bispos, padres e monges. Impôs a sua vontade e opinião num tempo em que a mulher era considerada um ser inferior - há mesmo feministas contemporâneas que a tomam como referência. Estudou a utilização de ervas e óleos na cura das doenças, criou a água de lavanda e escreveu tratados de medicina. Hildegarda de Bingen, monja, mística e visionária do século XII, é hoje proclamada doutora da Igreja pelo Papa Bento XVI.
Hildegarda será a quarta mulher com este título, entre 35 nomes. Além dela, só Teresa d"Ávila, Catarina de Sena e Teresa de Lisieux viram o seu pensamento reconhecido a este nível - em 1970, as duas primeiras e em 1997 a última (o espanhol João d"Ávila receberá também hoje o mesmo título).
O título de doutora da Igreja é mais que justificado: Hildegarda é "uma das personalidades mais relevantes, um caso único da espiritualidade ocidental europeia, que tinha uma cultura vastíssima e um conhecimento extraordinário para a sua época", define à revista 2 a professora catalã Victoria Cirlot, destacada especialista na obra da monja.
A sua marca maior está nas visões que teve e descreveu. Deve-se mesmo a esses acontecimentos o facto de se ter revelado como escritora. Na primeira visão, Hildegarda conta, em pormenor: "Aos três anos, vi uma luz tal que a minha alma tremeu, mas, devido à minha pequenez, nada pude dizer acerca disto. Aos oito anos, fui oferecida a Deus para a vida espiritual e até aos 15 vi muito (...)Os que ouviam ficavam admirados, perguntando-me de onde vinha e de quem era. A mim, surpreendia-me muito o facto de que, enquanto olhava no mais fundo da minha alma, mantivesse também a visão exterior, e assim mesmo aquele que não tivesse ouvido nada parecido com ninguém, fez que ocultasse quanto pude a visão que via na alma."
No início, Hildegarda receara contar as suas visões. Sentia-se "presa por um grande medo" e não se atrevia a "dizer nada a ninguém". Apesar de, como escrevia, se considerar uma "pobre forma feminina", ela contava, na sexta visão, ter visto "nobres donzelas junto a outras que com ardente amor ouviam da [sua] boca as palavras de Deus, das quais estavam sempre famintas".
O monge Theoderich von Echternach, primeiro biógrafo de Hildegarda, autor de Vida de Santa Hildegarda, comenta que os textos da monja revelam "tal excesso de conhecimento e verdade que seria uma tremenda temeridade de mente obstinada não abarcar toda a sua obra nem venerá-la com todas as forças".
Essa capacidade de interpretar a Bíblia e o reconhecimento público de que gozou deu-lhe um protagonismo único para uma mulher do seu tempo. E isto é verdade, mesmo sabendo que outras mulheres da época, como Juliana de Norwich, também se notabilizaram pelos escritos ou pela liderança espiritual que exerceram junto dos seus contemporâneos.
As barreiras que rompeu fizeram com que Hildegarda fosse adoptada como ícone por algumas feministas. Numa das visões, aliás, a monja fala da "imagem da mulher perante o altar diante dos olhos de Deus".
Victoria Cirlot não vê aqui qualquer defesa do acesso das mulheres ao sacerdócio. A imagem pode remeter, antes, para o símbolo da Igreja como esposa de Cristo. Mesmo assim, há uma dimensão feminina importante, sublinha a investigadora. "A linguagem de Hildegarda está cheia de metáforas a falar do feminino, por oposição à ordem patriarcal que dominava. E ela fala mesmo de Deus a partir do conceito feminino de caritas [caridade]."
Maria Leonor Xavier, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, especialista em filosofia medieval e autora de um estudo sobre a monja, confessa à revista 2 que os textos de Hildegarda sobre a mulher não a encantaram, porque estão presos da mentalidade da época e de uma visão masculina da autoridade na Igreja. "Ela assume o preconceito e tem expressões misóginas", admite. Mas era uma mulher com uma "personalidade fortíssima" que apresenta mesmo "traços femininos" na visão teológica que expressa.
Num texto que escreveu em Pensar no Feminino (ed. Colibri), Leonor Xavier concretiza que Hildegarda vê o universo como um ovo que simboliza Deus omnipotente. "Não se trata, porém, da visão de um deus impassível e separado do mundo. (...) Deus incarna e padece no seu Unigénito, o que não poderia acontecer senão num mundo como o dos seres humanos."
Leonor Xavier justifica ainda com a fidelidade de Hildegarda à doutrina tradicional o facto de ela ter acabado por ser tão bem aceite, "apesar da sua condição de ser mulher". Mas não hesita em afirmar: "Era uma figura singular e incontornável da cultura europeia do século XII." José Tolentino Mendonça e Joaquim Félix de Carvalho definem-na como uma mulher de "actividade intensa", na introdução a Flor Brilhante (ed. Assírio & Alvim), que recolhe poesias musicadas e pinturas de Hildegarda. A ela é "atribuída a criação da água de lavanda, a sua favorita, a que se juntam também as muito conceituadas água-de-carmelita e água-milagrosa", escreve Alexandra Gil em Essências - À Descoberta das Fragrâncias (ed. Quidnovi). Os vários escritos da monja manifestam a "versatilidade de interesses e a vivacidade cultural dos mosteiros femininos da Idade Média, contrariamente aos preconceitos que ainda pesam sobre aquela época", dizia o Papa Bento XVI em Setembro de 2010, quando se referiu a Hildegarda em duas das suas catequeses das quartas-feiras.
Apesar de ser uma monja de clausura e de ter uma saúde muito frágil, Hildegarda viajou, nos últimos anos da sua vida, para falar várias vezes em público - incluindo nas catedrais de Colónia e Trier. "Exortava sobretudo as comunidades monásticas e o clero a uma vida em conformidade com a própria vocação", afirmou ainda Bento XVI há dois anos.
Um dos alvos da monja eram os cátaros, que advogavam uma profunda reforma da Igreja, mas desprezava as coisas do mundo. "Para Hildegarda, a matéria e o mundo não são condenáveis, muito pelo contrário", explica-nos Victoria Cirlot. "Nesse sentido, ela tinha uma concepção muito moderna do espírito e da matéria, vendo-os como uma unidade. Por isso é tão claramente anticátara."
Esta mulher de "múltiplos interesses", como diz Leonor Xavier, nasceu em Bermersheim (Alzey), na Renânia (actual Alemanha), em 1098. Filha dos nobres Hildebert e Metchild von Bermersheim, era a mais nova de dez irmãos. O seu nome significará "aquela que protege na batalha". E Hildegarda não terá deixado de ir mesmo além dessa vocação: os seus pais destinaram-na à vida religiosa e desde cedo a sua personalidade se destacou, tendo enfrentado bispos, monges e imperadores.
Aos oito anos, Hildegarda foi entregue ao cuidado da mestra Judite (ou Jutta) de Spanheim, no mosteiro de São Disibodo. Aos 14, fez a profissão solene de vida de clausura. Três anos depois, a cela de Judite e Hildegarda era transformada num pequeno mosteiro beneditino.
Aos 38 anos, em 1136, com a morte de Judite, Hildegarda é escolhida como mestra do mosteiro. Cinco anos depois, tem uma visão em que recebe a ordem de pôr por escrito as revelações que tinha desde a infância. Começa logo nesse ano (1141) a escrever Scivias (abreviatura de Scito vias Domini, conhece os caminhos do Senhor). Para escrever esta que é uma das suas obras maiores, Hildegarda teve a colaboração de Volmar, monge de Disibodo, e da monja Richardis von Stade.
Entre 1146 e 1147, Hildegarda troca correspondência com Bernardo de Claraval, a quem pede opinião sobre a origem divina das suas visões. "Conheço o sentido interior da exposição do Saltério [salmos], do Evangelho e de outros volumes, que me foi mostrado nesta visão. Como uma chama ardente, [a visão] comoveu o meu peito e a minha alma, ensinando-me o seu sentido mais profundo. (...) Responde-me sobre o que te parece isto", pedia ela ao futuro S. Bernardo.
"Alegramo-nos pela graça de Deus que há em ti. (...) Que podemos aconselhar ou ensinar onde há um conhecimento interior e uma unção que tudo ensina?", replicava Bernardo de Claraval (carta publicada em Vida y Visiones de Hildegard von Bingen, editado por Victoria Cirlot e publicado em Espanha na Biblioteca Medieval das edições Siruela).
Nos dois anos seguintes, o Papa Eugénio III manda uma pequena comissão investigar as visões de Hildegarda. Durante um sínodo em Trier, o próprio Papa lê em público um fragmento de Scivias. Eugénio III envia depois uma carta a Hildegarda, exortando-a a escrever as visões e "confirmando com a sua autoridade a sua faculdade visionária", descreve Victoria Cirlot. Uma nova visão "ordena" a Hildegarda que deixe o mosteiro de Disibodo, onde estava sujeita à autoridade dos monges vizinhos, para se instalar em Rupertsberg, em Bingen. O episódio valeu-lhe a firme oposição dos monges de Disibodo. Mas a mãe da monja Richardis von Stade persuade o arcebispo de Mainz e Hildegarda começa a construção do seu mosteiro. Em 1150, ela e mais 20 monjas mudam-se para Bingen.
As visões evidenciam a "extraordinária capacidade simbólica" de Hildegarda, diz Victoria Cirlot. Os seus textos mostram que "matéria e mundo não são condenáveis, bem pelo contrário". E as obras científicas traduzem ainda a "imensa capacidade perceptiva", na qual convivem o olhar interior e o físico.
A redacção de Scivias só termina em 1151, dez anos depois do início. A seguir, e durante sete anos, Hildegarda escreve os tratados médicos Physica e Causae et Curae. No primeiro, diz Leonor Xavier, descreve as propriedades medicinais das criaturas, plantas, animais, metais e pedras (incluindo pedras preciosas). No segundo, explica as causas dos problemas de saúde mais comuns e a forma de os curar.
No mesmo período, revela-se uma outra faceta de Hildegarda: compõe a Symphonia armonie celestium revelationum, ou Sinfonia da harmonia das revelações celestes, um conjunto de poemas para a oração litúrgica (antífonas, responsórios, hinos e sequências). "Compus também poemas e melodias para louvor de Deus e dos santos, sem que alguém mos ensinasse, e cantava-os, mesmo que ninguém me tenha ensinado a notação musical ou o canto", conta ela, numa carta ao seu biógrafo Godofredo, citada em Flor Brilhante.
"Hildegarda ocupou-se da medicina e de ciências naturais, e também da música, sendo dotada de talento artístico", resumia o Papa em 2010. "Compôs hinos, antífonas e cânticos (...) que eram executados jubilosamente nos seus mosteiros, difundindo uma atmosfera de serenidade e que chegaram até nós. Para ela, toda a criação é uma sinfonia do Espírito Santo, que é alegria e júbilo em si mesmo."
A beleza musical das suas composições teve um surto de descoberta no final da década de 90, quando se completaram 900 anos do seu nascimento. Vários discos foram gravados a partir da execução ou adaptação dos hinos ou antífonas compostos por Hildegarda. "Até os mais jovens ficam encantados com a sua música", diz Leonor Xavier.
Um dos poemas musicados é uma antífona: "O Espírito Santo vivificador/ tudo move e de tudo é raiz,/ de toda a impureza purifica,/ lavando máculas e ungindo feridas:/ vida fulgente e digna de quem o louva,/ suscita e ressuscita todas as coisas."
À sua poesia associa-se "uma grande musicalidade, própria da liturgia enquanto canto", diz-nos Joaquim Félix de Carvalho. Era também uma expressão poética que se permitia uma grande inculturação, pelo uso de expressões latinas apenas utilizadas naquela região. Que são, por isso, difíceis de traduzir, admite este padre de Braga, especialista em liturgia e autor do estudo Pontifical de Luxo Brácaro-Romano (ed. Pedra Angular).
Apesar da intencionalidade litúrgica, essa poesia é também muito sensorial: Hildegarda convoca expressões que traduzem os vários sentidos: o "jorro de sangue", os "tímpanos e cítaras", os "perfumes inebriantes", a "coruscante luz das estrelas", os "dóceis abraços"...
Na antífona Transborda Claridade, publicada também em Flor Brilhante, pode ler-se um desses exemplos: "Em tudo transborda a caridade:/ notável desde os abismos aos céus mais altos,/ mais amável dos bens,/ o Rei supremo/ ela beijou."
"Para a época, essa linguagem sensorial é algo de muito suspeito, como ainda hoje para alguns", sublinha o tradutor da poesia de Hildegarda. "Faz parte do génio germânico, mais dramático e lírico, que não encontramos na liturgia romana", explica.
Do mesmo modo, as suas iluminuras revelam também uma utilização de cores e formas "invulgares" no tempo: quadrados, formas e expressões corporais, utilização de cores intensas, tudo se conjuga para uma pintura de "fantasia incrível", diz Joaquim Félix.
Victoria Cirlot desde há muito que se impressionou com uma das iluminuras: Hildegarda "recebendo no seu rosto, voltado para o céu, as chamas do Espírito como garras poderosas" (ver iluminura nesta página). A miniatura relaciona-se com um texto de Hildegarda nas Scivias: "À idade de quarenta e dois anos e sete meses, veio do céu aberto uma luz ardente, que se derramou como uma chama em todo o meu cérebro, em todo meu coração e em todo o meu peito. (...) E de imediato compreendi o sentido dos livros, dos saltérios, dos evangelhos e de outros volumes católicos, tanto do antigo como do novo testamento."
A partir de 1155, começam novas aventuras da monja de Bingen. Sucedem-se várias enfermidades, ao mesmo tempo que enfrenta de novo os monges do mosteiro de Disibodo, que pretendiam ficar com os dotes das freiras de Rupertsberg (várias delas eram oriundas de famílias nobres).
O facto de ter sido atingida pela doença e a sua preocupação com o corpo também revela o seu enraizamento na vida concreta, diz Victoria Cirlot. Mas, apesar das enfermidades que a atingem, Hildegarda faz três longas viagens de evangelização, entre 1158 e 1163.
No mesmo período, escreve Liber vitae meritorum (Livro dos méritos da vida), a sua segunda obra de carácter profético, depois de Scivias, e inicia a redacção de Liber divinorum operum (Livro das obras divinas). No primeiro, explicava Bento XVI em 2010, "é descrita uma única e poderosa visão do Deus que vivifica o cosmos com a sua força e luz". Hildegarda, acrescentava o Papa, "realça a profunda relação entre o homem e Deus e recorda-nos que toda a criação, da qual o homem é o ápice, recebe a vida" de Deus.
"O escrito está centrado na relação entre virtudes e vícios, pela qual o ser humano deve enfrentar quotidianamente o desafio dos vícios, que o afastam do caminho rumo a Deus, e as virtudes, que o favorecem. O convite é para se afastar do mal para glorificar Deus e, depois de uma existência virtuosa, entrar na vida "toda de alegria"."
Nos dois discursos em que falou de Hildegarda, Bento XVI acrescentava que, no segundo livro deste período, considerado por muitos a sua obra-prima, Hildegarda descreve "a criação na sua relação com Deus e a centralidade do homem".
Na polémica sobre os anti-Papas que se verifica na época e que opunha o imperador Frederico ao Papa Alexandre III, Hildegarda começara por ter uma posição neutral. Mas acaba por admoestar severamente o imperador, em 1164 e, depois, em 1168.
Em 1178, regista-se um último conflito com autoridades da Igreja: um nobre excomungado é sepultado no mosteiro de Bingen. Hildegarda resiste à ordem de exumação, argumentando que o homem se reconciliara com a fé antes de morrer. O mosteiro fica interdito durante largos meses, mas ela acaba por vencer mais esta batalha. A ordem é retirada em Março de 1179, meio ano antes da morte da "Sibila do Reno", como ficaria conhecida, em Setembro seguinte. Tinha 81 anos.
Na biografia ficcionada Música Escarlate (ed. Círculo de Leitores), Joan Ohanneson descreve assim os últimos momentos de Hildegarda: "Recostando-se nas almofadas, murmurou: "Agora preciso de descansar" (...). Tantas mãos que se estendiam para ela, tantos rostos, onda após onda de insuportável beatitude, erguendo-se em direcção à música escarlate! Lá fora, levantou-se vento que redemoinhou em torno da árvore nua uma última vez quando Hildegarda deslizou para os braços da Luz Viva, no outro lado do silêncio."