Em Portugal, é época alta de surf o ano inteiro

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Portugal e o surf nunca pareceram tão apaixonados e o turismo de nicho que resulta da sua união é interessante para a economia. O primeiro guia das ondas portuguesas, que lista mais de 180 spots no continente e ilhas em português e inglês, é lançado dia 11. Os gourmets das ondas estão a chegar?

Surfar em Agosto em... Tavira? Ter uma experiência paradisíaca nas remotas fajãs de São Jorge? Descer a Avenida da Boavista em pleno Porto e fazer as ondas da Praia Internacional? Partilhar esperas no mar com o multicampeão Kelly Slater em Peniche ou com Tiago "Saca" Pires na sua Ericeira? Começar na Costa de Caparica, evoluir para Carcavelos, experimentar o cool de Sagres e o ambiente internacional à la Erasmus de Peniche, tiritar no Moledo ou descobrir mais uma onda secreta na zona Centro - o Portugal Surf Guide, o primeiro guia de surf português (e bilingue), lista os 183 pontos para surfar Portugal, uma onda de cada vez.

A viagem (e por conseguinte o menos poético "turismo") está desde sempre ligada ao surf. A sintomática "ride" em inglês é a viagem num tubo reluzente e azul, mas também é o carro atulhado de pranchas, fatos e amigos para chegar à praia, passando pelas viagens Endless Summer de free surfers em busca de ondas e, claro, pelas voltas ao mundo dos surfistas em competição. A surf trip é turismo e o surf português tem época alta o ano inteiro. Ou quase. "O que nos diferencia é a acessibilidade - aterrar em Lisboa e poder surfar logo numa série de sítios -, a qualidade e quantidade de oferta. No limite, na península de Peniche surfa-se todos os dias do ano, esteja o mar grande, pequeno, seja qual for o vento; e em Lisboa diria que há 350 dias de surf por ano. Nos Açores e na Madeira surfa-se 330, 340 dias por ano, o que é incrível", diz António Pedro de Sá Leal. "Fazer surf todos os dias", evoca sorridente Francisco Cipriano - que sim, surfou em Tavira em pleno Agosto.

E é isso que nos dá vantagem perante a concorrência europeia - sul de França (Hossegor), País Basco espanhol (Mundaka e companhia) e as Canárias -, defendem os surfistas e autores do Portugal Surf Guide à conversa na Praia de Carcavelos. O areal está deserto, um nadador-salvador solitário espera o fim da época balnear e só mais tarde chegarão seis rapazes e duas raparigas para testar a subida da maré e umas ondas tímidas que podem desabrochar. Pertencem a uma escola de surf e o professor cumprimenta António Sá Leal. Surfista há perto de 20 anos, tantos quantos Francisco Cipriano tem de função pública, já fez de quase tudo que o surf pode gerar: escola de surf (uma das cerca de 150 no país) - sim; organizar campeonato nacional - sim; organizar campeonato internacional - sim; ter uma revista - sim. "Sou licenciado em Filosofia e houve um momento da minha vida em que achei que queria fazer exactamente o que gostava, que era surf, e desenvolvi a minha vida profissional toda à volta disso."

Há três anos, na vertigem dos 40, Francisco Cipriano, hoje assessor do secretário de Estado Adjunto da Economia e Desenvolvimento Regional, tinha o surf (e a subida ao Kilimanjaro) como objectivos por cumprir. Já pôs um "visto" em frente a cada um deles na sua lista. Conheceu António como aluno na escola de surf e mais tarde trocavam ideias sobre o que faltava fazer com este mar carregado de potencial, abraçado por uma terra com mais oferta cultural, dos espectáculos à gastronomia, do património ao comércio, do que muitos dos destinos de surf europeus. Uma espécie de Califórnia atlântica, muito pelo clima e pela variedade. Ao dispor de estrangeiros e de portugueses.

Surf trip dos números

O guia, que é quase um dicionário português/inglês dos spots do surf made in Portugal, foi em si uma surf trip: 183 locais, Açores e Madeira incluídos, com fotografia de/ou editada por André Carvalho, mapas, informações sobre cada onda, acessibilidades, apoios de praia, ventos, marés, número de pessoas na água e conversas com shapers, surfistas, donos de hotéis, pioneiros ou sonhadores. É estranho, comenta a Fugas em Carcavelos naquela manhã nublada de fim de Setembro, que este seja o primeiro inventário do género - que é apresentado dia 11 durante a etapa portuguesa do mundial de surf, o Rip Curl Pro em Peniche. O surf teve um pico de popularidade em Portugal nos anos 1990 e outro na última década, com o mais internacional dos surfistas profissionais portugueses, Tiago Pires, entre os 20 primeiros do surf mundial. Mas não, não havia um guia total das ondas portuguesas e país adjacente, apesar de a net compilar informação, de as câmaras produzirem pequenos guias sobre as "suas" praias e de as revistas de surf fazerem a sua divulgação. Portugal Surf Guide é agora editado pela Uzina Books, vai custar 25€ e teve apoios de autarquias, companhias aéreas, cerveja, marcas de surf, bancos e grandes empresas portuguesas, mas também do Turismo de Portugal, dos turismos da Madeira e dos Açores e da Secretaria de Estado do Mar.

Francisco e António viram o potencial da natureza, Pedro Bicudo e Ana Horta, do Instituto Superior Técnico, estimaram o do negócio: o seu estudo de 2009 diz que o surf pode valer perto de três mil milhões de euros por ano ao turismo português. São 1200 quilómetros de costa com ondas de todos os tipos, mas António de Sá Leal não vê nas praias futuras "estâncias em que maciçamente se recebem muitas pessoas", como na neve, ou "hipermercados de aulas de surf". "O surf em Portugal é interessante e deve ser explorado de forma racional - temos todas as condições para sermos um país destino de surf de qualidade. Estamos longe dos grandes centros de decisão, mas estamos no centro do surf", argumenta geograficamente.

"A maior parte dos surfistas do mundo ainda não conhece Portugal, mas Portugal é um destino conhecido de surf. Peniche é uma onda que todos os surfistas conhecem por causa do campeonato", descreve António. "Será que um havaiano vem para Portugal fazer férias de surf? Se calhar não. Mas um nova-iorquino sim."

Hoje, uma surf trip não se faz só de um grupo dentro de uma carrinha parada sobre uma falésia. Uma família de surfistas, miúdos incluídos, pode, como diz Francisco, ficar a dormir no Ritz, um dos mais vetustos cinco estrelas de Lisboa, e ir surfar a Peniche e à Costa, voltar a Lisboa para ver um museu, ir às compras e jantar. E o Portugal Surf Guide pensa nessas alternativas. A estimativa do estudo de Pedro Bicudo e Ana Horta é que cada turista-surfista gaste uns mil euros por semana (alojamento, deslocações, alimentação e actividades paralelas) e que o número de estrangeiros que procura as ondas portuguesas ronde os 60 mil por semana - o mesmo número de praticantes portugueses em 2009, de acordo com os académicos. Os mesmos que podem desconfiar da veracidade das histórias de um surfista de Faro, que podem desconhecer a beleza selvagem das fajãs de São Jorge. É que este guia também é para eles, para os surfistas portugueses que "têm por norma viajarem para fora, mas viajarem pouco dentro de Portugal", como descreve António Sá Leal.

Segredos revelados?

Francisco e António, autocolante do Portugal Surf Guide no carro e olho no mar que começa a levantar espuma, sabem bem como o surf cresceu na última década em Portugal e como a big wave da Nazaré no Guinness, cortesia de Garrett McNamara, poderá agora trazer um punhado de homens que cavalgam montanhas a Portugal quando houver uma grande ondulação atlântica. Há a reserva mundial de surf da Ericeira, os quatro Centros de Alto-Rendimento planeados para o surf (Viana do Castelo, Aveiro, Nazaré e Peniche), as etapas dos mundiais nos Açores ou em Peniche (que criou a marca "capital da onda"). O surf está cada vez mais ligado às povoações que o apoiam em terra e as ondas a quem as habita.

Como Carlos Valério, um dos surfistas que lhes abriu portas e ondas para o guia e que marcou Francisco Cipriano. "Uma pessoa que fez aquilo que todos queremos fazer mas que raramente temos coragem, que é chegar a um sítio - a Fajã de Santo Cristo, nos Açores - e dizer: "vou passar o resto da minha vida aqui". Vivia nas Caldas da Rainha e decidiu mudar-se para um sítio onde só se chega a pé ou de Moto 4, não há estradas, não havia água canalizada, electricidade, rede de telemóvel. Construiu a sua casa e vida ali. A força que o surf teve para o mover", suspira. "E falou-nos daquele espaço sem medos, com um espírito de partilha."

Os secret spots e o localismo, a protecção regional que dá prioridade de usufruto de uma onda a quem a conhece e surfa há mais tempo, são parte integrante da cultura surf. Não é por acaso que algumas ondas ficaram de fora do Portugal Surf Guide. António Sá Leal, que já tinha surfado grande parte dos locais agora listados no guia, é pragmático: "Hoje, com o Google Earth e com uma carta de previsão de marés percebes logo onde podes surfar e onde não há ondas". Ainda assim, há sítios que são apenas sugeridos no guia - há "pistas, sítios mágicos" -, também porque, por mais apetitosa que seja, se "a onda só aparece duas vezes por ano, as pessoas muito provavelmente não iam encontrá-la", completa Francisco.

O Portugal Surf Guide custou mais de 50 mil euros a fazer e tem planos para o futuro: um site, uma app para smartphones, um pequeno filme para festivais de cinema de surf (Portugal teve o seu primeiro este Verão) e uma série documental sobre as ondas portuguesas, mas também sobre a viagem de Francisco e António. Francisco, surfista há três anos, descobriu "que Portugal é um destino de surf absolutamente fabuloso, com cultura de surf própria em cada local" (ver infografia, em que se destacam alguns spots das sete regiões em que se divide o guia). António reviu a matéria dada, conhecedor que era de muitas destas ondas, que agora partilhou com Francisco e com os seus anfitriões em cada paragem, conversando no mar.

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