Duarte Belo e Vila do Conde

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A terra de José Régio, por onde passaram escritores como Camilo ou Antero de Quental, e onde hoje vive Valter Hugo Mãe, foi também de Ruy Belo. Atraído de Lisboa à foz do Ave pela mulher, a vila-condense Teresa Marques, o poeta de Aquele Grande Rio Eufrates e A Margem da Alegria escondeu o seu coração por aqui. E o fotógrafo Duarte Belo, um dos seus três filhos, nunca mais esqueceu este lugar.

Abre Aquele Grande Rio Eufrates, obra poética inaugural de Ruy Belo (n. 1933-1978), com o poema Para dedicação de um homem. Cujos versos finais - "É terrível ter o destino / da onda anónima morta na praia" - parecem, premonitoriamente, pô-lo a olhar para aqui. Nesse ano de estreia de 1961, Belo começava uma segunda licenciatura, em Filologia Românica, na Faculdade de Letras da Universidade Lisboa, tendo como colega de curso Maria Teresa Carriço Marques, com quem haveria de casar-se em 1966, na igreja do convento de Santa Clara, em Vila do Conde. A vila dela, que passou a ser de ambos, e dos três filhos, nos meses de descanso do tempo passado na capital.

Aqui é, então, Vila do Conde. A Praia da Senhora da Guia, mais precisamente. Onde, um dia, o banheiro resgatou das águas um poeta já quase sem sentidos, aturdido da sua vontade imparável de nadar. Onde, em 1994, Duarte salvou, desse anónimo destino lamentado pelo pai no poema, uma onda espumosa com que abriu um dos seus livros de fotografia, Ruy Belo - Coisas do Silêncio. Se não foi aqui que o poeta escreveu os seus primeiros versos, foi aqui que o fotógrafo começou a fotografar. Numas dessas férias, longas, com a máquina da mãe - uma Voigtländer Vito CD, de onde saíram quase todas as fotos conhecidas de Ruy Belo, tiradas por Teresa.

Ao filho Duarte, esse primeiro rolo a preto e branco haveria de lhe durar, parcimoniosamente, até ao final do ano de 1982. Foram as primeiras 36 fotografias de um homem, nascido em 1968, que hoje guarda o mais vasto espólio fotográfico da paisagem portuguesa. Ele percorreu-a toda, freguesia a freguesia, para algumas das suas obras. Portugal Património, cinco anos de trabalho, para dez volumes do Círculo de Leitores, foi a maior delas. Maior ainda só o sonho, gigantesco, de fazer do seu Horizonte Portugal(www.horizonteportugal.org), um sítio onde possamos encontrar imagens de um milhão de lugares deste pais que, mesmo pequeno, tem muito para nos surpreender.

As contas do fotógrafo

Que o diga ele. Antes de se encontrar com a Fugas na praia que foi sua e do pai, tinha passado onze dias a percorrer o Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG), retomando lugares por onde passara há 20 anos, e de onde trouxe, ainda assim, 17 mil fotografias. Vantagens da era do digital, elogia, lembrando que, da primeira vez, num mesmo período de tempo no PNPG fizera 1260 fotos. As contas estão anotadas num caderninho. Para fazer o mesmo trabalho, Duarte Belo teria, na década de 1990, de carregar 13 quilos e meio de rolos serra dentro. Um inconveniente, já se vê. Mas nem a evolução tecnológica minimiza a dimensão da sua empreitada de nos abrir uma janela para cada esquina deste país.

Se o trabalho o leva a todo o lado, os afectos levá-lo-iam mais tempo para o único parque nacional do país, a Peneda-Gerês. Ou para esta curva junto à praia, ao Forte de São João Baptista: curva que já foi de pista de corridas - e ele, que até já nem gosta de desportos motorizados, a recordar a entrada clandestina, para ver os treinos, ou os exercícios fotográficos que foi fazendo, na inicialmente difícil tarefa de fixar um carro em movimento. Não está longe da rua Ruy Belo esta curva que, durante dezenas de anos, foi a da seca do bacalhau, cujas ruínas, ainda visíveis, Duarte colou no seu Facebook após este regresso a Vila do Conde. Como as viu em 1997.

A antiga vila, hoje cidade, mantém muito do que conhecera. Falta-lhe, é certo, os avós maternos de Duarte, ele de Chaves, ela de Idanha-a-Nova, que tal como Ruy e Teresa se cruzaram em Lisboa. Acabaram a reinventar a doçaria conventual vilacondense, no Salão de Chá Doce de Santa Clara. Quando o negócio deixou de estar nas mãos da família, Duarte guardou objectos de trabalho da cozinha da avó. E foi com eles, entre outras imagens - algumas da sua "casa de Verão", o piso de cima, captadas precisamente nesse seu "primeiro ano" de 1982, aos 14 anos - que fez o livro Olívia e Joaquim. Uma obra, editada pela Assírio e Alvim em 2007, que surgiu porque, como diria Olívia, avó e doceira, citada pelo neto, "o trabalho quer amor".

Em pleno centro histórico de Vila de Conde, por cima do salão de chá, na Rua da Igreja n.º 10, a casa dos longos verões e dos fins-de-semana dos anos do curso de Arquitectura no Porto foi um "laboratório" para o jovem fotógrafo. E uma inspiração para o pai. Tem nas costas a matriz quinhentista e, à frente, a Rua de São Bento, merecedora de um poema, Esta Rua é Alegre. Que mais parecia um meta-poema - um "falar por falar", que "alegre sou eu", como escrevia Ruy Belo em Homem de Palavra[s] (1970). Esta é uma das mais típicas ruas da Vila do Conde, a lembrar os idos de 500, em que todos os quelhos não iam dar ao mar mas ao rio, à Ribeira das Naus de onde saíram navios para as rotas do Brasil e da Índia.

Empurrada para um espaço próprio - certamente com melhores condições - na margem sul do Ave, a construção naval em madeira ainda permanecia ali, na marginal ribeirinha da cidade, nesses verões da adolescência que o fotógrafo veio a Vila do Conde recuperar para a Fugas. Desses tempos, recorda o som da carpintaria a marcar o ambiente urbano. Cada bota-abaixo atraía os seus habitantes, como se uma parte de si de despedisse a caminho do mar, e Duarte Gostava de ver a marginal assim, laboriosa. Hoje, e depois de várias intervenções de reabilitação, uma nau atraca-nos aos tempos mais antigos e, num edifício envidraçado, celebra-se em silêncio, uma actividade que a penosa crises das pescas, do outro lado do rio, vai pondo em causa.

Um roteiro-poema

Através de Ruy, o roteiro por esta cidade podia ser um poema. Um poema sobre um lugar onde "o vento norte corta luas brancas no azul do mar", onde "o poeta solitário escolhe igreja pra casar; sobre o lugar das "luzes a alinhar o rio à noite" - visto certamente do miradouro do convento de Santa Clara, hoje uma gigantesca quase-ruína, a apodrecer por dentro; um poema sobre o sítio "da feira das sextas-feiras", já sem "gado" e sem "pó", mas com "povo", ainda. A Rimar, então como hoje, com esse verso "O lugar onde o coração se esconde", repetido ao longo de Portugal Sacro-Profano: Vila do Conde, da obra Homem d Palavra[s].

Através de Duarte, o roteiro podia ser uma colecção de imagens. Daquelas que ele há-de pôr, um destes dias no seu Horizonte Portugal. "Gostava de dar um tratamento especial a Vila do Conde", confessa, prometendo levar para ali a capela que nos guia a conversa, o paredão fronteiro, que fotografou batido pelo mar, toda a foz do Ave como o pai a descreveu. "Poria também aquelas rochas" - as mesmas em que se deixou fotografar, estranha sensação, pelo fotógrafo Adriano Miranda, para a Fugas. Ah, e poria a altaneira igreja em que Ruy e Teresa se casaram, com o aqueduto - "intervenção fabulosa no espaço" - a alimentar-lhe a fonte do claustro. Um lugar antigo, granítico, belo.

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