Torne-se perito

20 anos de TV privada por 20 vozes

Foto
A SIC introduziu um novo paradigma no jornalismo televisivo em Portugal carlos lopes/arquivo

Nuno Morais Sarmento diz que nunca lhe passou pela cabeça privatizar a RTP, Marcelo Rebelo de Sousa defende que as televisões privadas mudaram a relação entre jornalismo e política. São duas das 20 vozes ouvidas por Felisbela Lopes, num livro sobre os 20 anos de televisão privada em Portugal

Foi o primeiro dia de uma nova realidade que ainda não parou de mudar. Na tarde de 6 de Outubro de 1992 a SIC iniciava as suas emissões e começava também um percurso de aprendizagem na sociedade portuguesa. Mudou o país, o panorama audiovisual, o entretenimento e as indústrias culturais, o jornalismo, a tecnologia e os próprios cidadãos, enumera a investigadora em jornalismo e pró-reitora da Universidade do Minho, Felisbela Lopes, no livro Vinte Anos de Televisão Privada. A obra congrega 20 entrevistas a outros tantos protagonistas do panorama audiovisual português nas últimas duas décadas das quais aqui se reproduzem pequenos excertos. Assinale-se já uma falha: Emídio Rangel, um dos mentores da SIC e apontado por todos os entrevistados como uma das figuras que marcou indelevelmente a TV nos últimos 20 anos, recusou participar.

Num livro com conversas mais ou menos revivalistas, mais ou menos interpretativas, surge uma revelação importante. Nuno Morais Sarmento, ministro da Presidência dos Governos de Durão Barroso e Santana Lopes (entre 2002 e 2005), confessa que nunca teve a intenção de privatizar qualquer canal da RTP e que tudo não passou de uma encenação sua. Quando em 2002 ameaçou com o encerramento ou venda da RTP, queria forçar os operadores a entenderem-se na auto-regulação e implementar uma verdadeira revolução na gestão da RTP.

"Nunca na minha cabeça esteve a privatização do segundo canal. Nunca", diz o ex-governante, para quem "a existência de um operador de serviço público não é uma questão política, é uma questão de identidade nacional." E isso ainda hoje se mantém. "Eu nunca pensei privatizar nem a RTP1, nem o segundo canal, porque não via maneira - e continuo a não ver - de se fazer uma de duas coisas: tentar integrar num único canal o que cabe num canal generalista e noutro complementar, resultando daqui uma programação esquizofrénica que ninguém vê, ou amputar o serviço público de uma destas pernas, o que pode significar que o operador de serviço público corre o risco de deixar de ter uma programação mainstream."

Hoje, o Governo PSD insiste na mesma intenção, mas desta vez o processo parece não voltar atrás e um dos maiores argumentos é o financeiro. "O Governo não pode exigir menos à RTP do que exige ao país."

Revolução na informação

Com o aparecimento da televisão privada, o campo político viu-se obrigado a "uma maior exigência na capacidade de comunicação com a opinião pública e a uma adaptação entre o tempo da notícia e o tempo da acção", considera Cavaco Silva, chefe do Governo que abriu o concurso de concessão das licenças de TV privada. A agenda passou a ser determinada por um equilíbrio de forças entre televisões e políticos.

"As televisões privadas trouxeram tribunas novas para novos protagonistas com opiniões diferentes dos protagonistas mais ou menos controlados pelo Governo", lembra Marcelo Rebelo de Sousa. Programas irreverentes de análise político-social que dificilmente poderiam existir numa estação pública como A Noite da Má Língua (SIC) "conferiam maior vivacidade" à política: "Apareciam como quase marginais e em que era possível discutir tudo num estilo muito forte, rompendo com aquilo a que se estava habituado."

Criou uma cultura de escrutínio na informação, que começou logo com a SIC e que a TVI depois também desenvolveu com José Eduardo Moniz. A emissão da SIC arrancou com um noticiário apresentado por Alberta Marques Fernandes. E foi na informação que a estação "marcou a diferença desde o primeiro dia, pela abordagem, pela linguagem, pela forma de filmar e editar as reportagens", elogia António Luís Marinho, director-geral da RTP mas que passou pela TVI e SIC. "Achávamos que aquilo era o jornalismo: um jornalismo de contrapoder, no sentido em que não tínhamos qualquer tipo de restrição", conta Luís Marques, actualmente director-geral da SIC. As notícias da estação tinham uma aura de verdade inquestionável.

Nuno Santos, que partilhou a sua vida televisiva entre a SIC e a RTP, diz que "com a TV privada mostrou-se o país que somos, tocando a vida das pessoas. Nestes anos, a televisão influenciou bastante a estrutura tradicional da sociedade, nomeadamente a família convencional. Muitas mutações chegaram aos portugueses e foram questionadas através da televisão."

E haverá jornalismo diferente no serviço público e nos canais comerciais? José Alberto Carvalho, agora director de Informação da TVI, mas que já passou pelos outros dois canais, pensa que não, ainda que admita que possam existir "especificidades". "O jornalismo nunca se distinguiu dessa maneira. Não há nenhum manual de jornalismo que diga que o jornalismo de serviço público é uma coisa e o jornalismo de serviço privado deve ser outra."

Um dos programas emblemáticos dos primórdios da SIC foi o Praça Pública, desenhado por Emídio Rangel, apresentado por Júlia Pinheiro, que o recorda como "um conceito inovador que integrava o cidadão na informação". Nessa altura, "a informação da televisão era muito marcada pelo Portugal sentado, pela agenda política, pelas visitas dos estadistas internacionais e por duas ou três histórias mais relevantes, mas que nunca tomavam o cidadão como protagonista", diz a apresentadora. Para Júlia Pinheiro, a SIC foi a TV "da modernidade, do arrojo, da ousadia", embora reconheça que nos últimos anos "perdeu a identidade".

A ascensão das privadas - sobretudo da SIC, que em três anos passou a liderar as audiências, levou a um contínuo e duro declínio das audiências e das finanças da TV pública - estancadas pela acção de Nuno Morais Sarmento, com um plano de reestruturação e uma recentralização do conceito de serviço público. A TVI começou por ser um projecto da Igreja, mas não vingou comercialmente. Vinte anos depois, e apesar das vicissitudes do projecto, o padre António Rego, o seu primeiro director de Informação, continua a acreditar que "a Igreja tem um lugar nos actuais canais de televisão". Mas "não deverá voltar a ter um canal generalista de TV" e duvida mesmo de que haja espaço para um canal católico, até mesmo no cabo.

A televisão privada ofereceu "maior diversidade de conteúdos, maior pluralismo na informação e contribuiu indirectamente para que a RTP se afastasse da submissão aos ditames do poder político e se tornasse uma empresa mais ágil e competitiva. Exibiu excelentes programas, mas também emitiu, em contraste, conteúdos comercialmente proveitosos mas de fraca qualidade", considera Alberto Arons de Carvalho, antigo secretário de Estado da Comunicação Social de Governos de Guterres e actual vice-presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

A era Big Brother

Entre os vários programas inovadores lançados pelas privadas nestes 20 anos, o Big Brother é, sem dúvida, o mais emblemático. Os direitos do programa foram propostos por Piet Hein-Baker, da Endemol, à SIC, mas Emídio Rangel não o quis. José Eduardo Moniz, já à frente da TVI, aceitou-o na hora. O primeiro reality show da TV portuguesa estreou-se em Setembro de 2000 e foi o clic para a ascensão do canal de Queluz de Baixo, que acabou por ultrapassar a SIC. Balsemão diz continuar a acreditar que "na altura, isso não foi um erro". Porém, também admite que "se agora pudesse voltar atrás, e tendo em conta a programação que depois surgiu a esse nível, se calhar não teria a mesma opinião em termos comerciais".

"O formato era caríssimo", diz Moniz, que teve que o potenciar, espalhando-o pela grelha com directos, especiais, resumos - cerca de três horas por dia. Muito mais que os 25 minutos que o formato original previa. "Transformámos aquele programa num evento", recorda. De tal modo que as estórias iam entrando no Jornal Nacional. E no léxico comum entrou também o termo infotainment. Que já tinha tido expressão em alguns programas da SIC, onde os conteúdos informativos se confundiam com entretenimento, como a Máquina da Verdade. Alcides Vieira, director de Informação da SIC, admite que o programa poderá ter "causado alguma confusão". "Em Portugal, e nos outros países, as fronteiras entre a informação e o entretenimento esbateram-se por causa de alguns programas de daytime", diz o jornalista, que acredita que "com o tempo, as pessoas conseguem distinguir o que pertence ao campo do jornalismo, que tem regras bem estruturadas, e o que é infotainment, que tem margens mais dilatadas em relação à ética, à deontologia, à responsabilização em relação aos factos".

Na mesma altura, enquanto a SIC dava uso à parceria com a Globo para as novelas, a TVI começou a apostar na produção nacional. As novelas sucediam-se a um ritmo vertiginoso, primeiro uma, depois duas diferentes por noite. Jardins Proibidos, Filha do Mar, Espírito Indomável, Ilha dos Amores, mas também a saga juvenil Morangos com Açúcar. O segredo para o sucesso estará muito na proximidade que os espectadores sentem com o enredo. "As nossas novelas são histórias dos amores, dos desamores, dos encontros e dos desencontros, dos maus, dos bons, das traições, das deslealdades", diz Adriano Luz, director da Casa da Criação, integrada na produtora Plural.

A RTP tinha as galas formais como o Festival da Canção, mas a televisão privada, essencialmente a SIC, trouxe a televisão-espectáculo e o glamour. Como o dos Globos de Ouro, ou o de programas de caça-talentos musicais como o Chuva de Estrelas.

As televisões privadas sempre se afirmaram como o arauto da independência - que vincavam também para marcar a diferença em relação a uma RTP mais estatizada e politizada. Foi na TVI que nasceu uma das maiores polémicas de intromissão da política na área editorial. Marcelo Rebelo de Sousa fazia crónicas semanais no noticiário da noite de domingo, e as críticas afiadas ao Governo PSD não passavam despercebidas nos corredores do executivo, que moveu as suas influências. Miguel Paes do Amaral, dono da TVI, pressionou Moniz mas este não cedeu e o empresário acabou mesmo por dispensar o cronista. "A TVI assumiu uma posição de intervenção e de interferência na situação política nacional. E isso não era aceitável", justifica o empresário, para quem "uma televisão privada não é uma plataforma para interferir na situação política do país".

Embora considere que Portugal "tem canais a mais", José Paquete de Oliveira, primeiro provedor do espectador da RTP, diz que a televisão privada, "com defeitos e virtudes, liberalizou o espaço televisivo", e "forçou a RTP a ser menos institucional". Só isso é uma grande vitória. Já José Azeredo Lopes, antigo presidente da ERC, questionado sobre o que o novo regulador mudou na TV, entende que a regulação "não pode, nem deve, ter a pretensão de "mudar" a TV. Mas deve sentir como seu dever impor o cumprimento de regras básicas".

O resumo da "nata" destes 20 anos é de Marcelo Rebelo de Sousa: "A autorização das televisões privadas; a contratação de Emídio Rangel por Francisco Pinto Balsemão; a contratação de José Eduardo Moniz por Belmiro de Azevedo e a sua manutenção no cargo por Paes do Amaral. Também foi marcante o momento em que a Igreja saiu da TVI e este canal se transformou num canal competitivo. Foi marcante a criação do primeiro canal de notícias especializado, a SIC Notícias, que obrigou depois a RTP e a TVI a criarem um canal semelhante. Foi muito marcante um tipo de informação desenvolvida na justiça, nomeadamente a justiça criminal. Foi marcante a mudança do papel do futebol na televisão. Foi marcante a viragem das televisões para obras sociais: há cada vez mais momentos marcantes na televisão. A mudança é a grande constante na televisão em Portugal. Por isso, os desafios que se colocam são cada vez mais difíceis. Uma outra grande mudança foi o facto de o cabo ter passado a ganhar, desde o Verão de 2011, aos restantes canais. O peso da Internet e do multimédia é também marcante. Daqui a dois ou três anos, a televisão em Portugal vai ser muito diferente do que é hoje."

É Guilherme Costa, até há poucas semanas presidente da RTP, que levanta o véu. "A televisão do futuro incorporará fortemente as tecnologias digitais, assumindo uma fortíssima convergência com a Net e um uso exponencial dos novos dispositivos, designadamente os smartphones e os tablets. Focar-se-á na actividade editorial, desintegrando-se das actividades (...) de produção e distribuição. E os operadores de televisão terão de alinhar a sua estrutura com os novos modos de consumir."

Sugerir correcção