Em França, Oliveira também está em casa
A estreia em França de O Gebo e a Sombra, semanas antes de chegar a Portugal, foi o episódio mais recente da atenção que aquele país dedica a Oliveira. Sérgio C. Andrade, em Paris
A Cinemateca Francesa, em Paris, exibe hoje três filmes de Oliveira - O Acto da Primavera, O Princípio da Incerteza e Palavra e Utopia -, e a sua longa mais recente, O Gebo e a Sombra, entra na segunda semana de exibição no circuito francês, onde chegou duas semanas antes de Portugal (agendada para dia 11), e com um número de cópias (41) bem superior às oito previstas para os ecrãs nacionais. E, no entanto, isto não é nada de surpreendente na carreira de Oliveira: os seus filmes chegam normalmente primeiro a França do que a Portugal, e passam com regularidade no circuito daquele país, com maior ou menor empatia da crítica e do público (sempre mais da primeira do que do segundo), como acontece, afinal, com a generalidade dos cineastas.
Se é verdade que a homenagem e a retrospectiva integral iniciada na Cinemateca a 6 de Setembro com a antestreia de O Gebo e a Sombra (e que se prolonga até 21 de Outubro) têm um carácter de excepcionalidade - mesmo que se venha a repetir, em diferentes cidades francesas, desde que o "pai" da Cinématèque, Henri Langlois, lhe dedicou uma primeira retrospectiva em 1965 -, já a exibição comercial do novo filme segue o que vem acontecendo desde há um quarto de século, com Mon Cas (1986), e que é a estreia, em cada temporada, de um novo filme do realizador.
"Há um fenómeno Manoel de Oliveira, que é a regularidade anual da sua produção, que desempenhou um papel muito importante na sua aceitação por parte do público francês", diz o professor da Universidade de Lille e historiador do cinema português Jacques Lemière, que radica esse ciclo em especial no ano da estreia de Non, ou a Vã Glória de Mandar (1990). E acrescenta dois outros factores: a longevidade do realizador e o universo temático diversificado da sua obra. "Quando entram num cinema para verem um filme de Oliveira, os espectadores sabem que vão ver sempre algo diferente do que viram anteriormente".
A atestar a normalidade de mais uma estreia de Oliveira no circuito comercial francês está o reflexo na imprensa crítica. Segundo a contabilidade da revista Première, O Gebo e a Sombra reuniu uma média de três estrelas entre as doze recensões surgidas à data da estreia - trata-se, curiosamente, da mesma média conquistada pelo actual decano do cinema francês, Alain Resnais (90 anos), com Vous n"Avez Encore Rien Vu, estreado na mesma semana.
As críticas a O Gebo e a Sombra vão desde as muitas reservas do jornal humorístico Le Canard Enchainé (1 estrela), que fala de um "enfado hipnótico", até aos elogios rasgados (4 estrelas) do Nouvel Observateur (o filme "possui o brilho de um diamante e a densidade fibrosa de um pesadelo lancinante") e da Les Inrockuptibles ("quanto mais prolonga a sua vida, mais Oliveira depura a sua arte"). Ou da própria Première (2 estrelas), que acentua a "assumida teatralidade de difícil acesso" e a "falta de respiração"; como da revista de espectáculos Télérama (3 estrelas), que já vê essa teatralidade como "teatro de bolso, imagético, dinâmico", e as imagens no ecrã como "pintura minimalista".
Nada de mais normal, portanto, e que responde àquele que se imagina ser o objectivo de qualquer artista: ver o seu trabalho reconhecido, discutido, criticado, mesmo se admirado ou não.
Made in France
Aquando da antestreia de O Gebo e a Sombra em Paris, a produtora francesa do filme, Martine de Clermont-Tonerre (em parceria com os portugueses Luís Urbano e Sandro Aguilar), revelou que Oliveira decidira rodar o filme em Paris e em língua francesa - algo que já tinha feito em Le Soulier de Satin, Mon Cas, La Lettre ou Je Rentre à la Maison - em homenagem ao papel histórico que este país teve na divulgação e defesa da sua obra ao longo dos anos.O realizador já referiu por várias vezes que foi a um crítico francês, Émile Vuillermoz (1878-1960), que ficou a dever, no jornal Le Temps, a defesa da sua primeira obra, Douro, Faina Fluvial (1931), depois de ela ter sido pateada na estreia, em Lisboa. Mas o episódio mais marcante da atenção francesa surge em 1979, quando a crítica resgatou Amor de Perdição do "mal-entendido da recepção nacional ao filme", recorda Jacques Lemière, após a exibição televisiva (e a preto-e-branco), em Novembro de 1978, na RTP - algo que "não está ainda completamente dissipado", nota o investigador francês.
"Foi em Florença, em primeiro lugar, que Amor de Perdição começou a receber uma crítica extraordinária, mesmo se ela não teve a repercussão que, um pouco mais tarde, teve a crítica francesa. Em Paris, a crítica foi magnífica, o que deu origem a um processo de reconhecimento mundial. Foi "uma luta terrível", em Portugal, que eu ganhei, e foi graças à França que a ganhei", disse Oliveira numa entrevista ao Jornal de Letras, em 2003.
Em França, após a antestreia no dia 1 de Maio de 1979, na Semana dos Cahiers du Cinéma - promovida pelo então jovem programador português recém-instalado em Paris, Paulo Branco (que se recusou a falar ao Ípsilon sobre este tema) -, e a posterior entrada no circuito comercial, Oliveira teve direito à primeira página no Le Monde, onde o crítico Louis Marcorelles escreveu, citado por Jacques Lemière: "Oliveira reinventa uma arte perdida, aquela dos grandes primitivos franceses e americanos, para quem o cinema, bem mais do que uma arte codificada, envelhecida, destinada à semiologia, era uma forma inimitável de olhar vivamente os seres e o mundo, um bater do coração, um salto para as alturas".
No coro das críticas entusiásticas entraram as revistas da especialidade, como a Positif (por via dos textos de Jean A. Gili) e os Cahiers du Cinéma, ou o jornal Libération, além de figuras como o crítico Serge Daney - 1944-1992 -, que tiveram depois um papel preponderante na sustentação da obra do realizador português.
No seu artigo Algumas notas sobre a recepção em França da obra de Manoel de Oliveira (revista Camões, 2001), Jacques Lemière recorda esse momento crucial da estreia francesa de Amor de Perdição, em Junho de 1979, e que depois motivou a organização de uma retrospectiva na sala Action-République, programada por Paulo Branco. "Foi um verdadeiro acontecimento nos meios cinematográficos parisienses e franceses. O entusiasmo da crítica extravasou largamente o domínio das revistas especializadas". Cita os elogios de jornais como o popular France Soir (Amor de Perdição é "uma obra-prima"), ou o semanário de entretenimento VSD ("dificilmente se fará filme mais belo").
Este acolhimento francês da adaptação do romance de Camilo - que o crítico Denis Levy considerou ser mais "um filme que se adapta ao romance" do que a adaptação tradicional de um romance ao grande ecrã - viria alterar o olhar português sobre Amor de Perdição, que, após o desastre da exibição televisiva, seria de certo modo relançado nas salas depois da estreia no Festival de Cinema da Figueira da Foz, em Setembro de 1979.
Já sob a mão de Paulo Branco - o produtor de Oliveira durante mais de duas décadas -, o realizador regressa em 1981 a Camilo, mediado pela escrita de Agustina Bessa-Luís, em Francisca, filme que voltaria a cair no goto da imprensa francesa. O Libération dedicou-lhe uma página inteira e publicou um extracto do argumento, com a dedicatória "Para Oliveira, um dos dois ou três maiores realizadores em actividade"...
Entre Cannes e Veneza
E se Francisca viria a obter maiores favores da crítica do que do público, o filme marcaria também a entrada regular de Oliveira nas selecções dos festivais, em especial Cannes e Veneza, com ambos a disputar e a alternar a atenção ao realizador, mesmo se com resultados diversos - Cannes ovacionou Amor de Perdição e A Carta, mas Veneza tratou melhor Francisca, O Sapato de Cetim (uma produção de raiz francesa) e Porto da Minha Infância...No artigo para a revista Camões, Jacques Lemière avança os números das performances de bilheteira dos filmes de Oliveira em França até à estreia de Vou para Casa (2001): Amor de Perdição ultrapassou os 200 mil espectadores, Vale Abraão fez mais de 55 mil (e bateu o recorde de menções críticas, duplicando as de Amor de Perdição), O Convento, 53 mil, A Carta, 135 mil... Até que Vou para Casa - "o filme onde Oliveira articula, melhor do que nunca, com um raro domínio da sua arte, complexidade e simplicidade, gravidade e ligeireza, interioridade e distância", escreve Lemière - ultrapassou as 250 mil entradas, devendo manter-se ainda hoje como o filme de Oliveira mais visto em França, diz Lemière ao Ípsilon, ressalvando não possuir os números relativos à última década.
Já O Gebo e a Sombra, segundo os números do produtor, contabilizou nos primeiros cinco dias de exibição cerca de 6 mil espectadores, mais de metade dos quais em Paris.
Com Vou para Casa, como com outros filmes anteriores (após O Convento, de 1995) e posteriores, o sucesso (crítico e público) de Oliveira em França deixa de poder ser dissociado também da presença de actores reconhecidos, como Catherine Deneuve, Michel Piccoli ou John Malkovich. "Piccoli é um actor que salta de Godard para Claude Sautet - não poderia haver maior diferença de universos -, e que continua a ser consensual em França", diz Lemière, atribuindo também ao actor de Belle Toujours uma parte importante da popularidade de Oliveira nas salas francesas.
Mas também é verdade que nem todos os filmes do realizador resultam bem neste país, e Lemière cita os relativos fracassos de O Dia do Desespero (7600 espectadores), ou Non (25 mil). Como também aconteceria, na década mais recente - nota o crítico Mathias Lavin -, com O Quinto Império, Um Filme Falado ou Cristóvão Colombo, o Enigma. Afinal, filmes mais distantes do imaginário cultural francês.
A atenção francesa a Oliveira mantém-se intacta, e o realizador "continua a ser muito apoiado pela crítica", diz Lemière, mas "há uma parte desta que não sabe englobar os novos filmes no conjunto da sua obra", nomeadamente tudo o que está antes de Vale Abraão (1993), que o investigador nota ter sido, depois de Amor de Perdição, o filme que formou uma nova geração de cinéfilos e investigadores atentos ao seu cinema. Essa atenção foi, por exemplo, confirmada pela boa aceitação crítica de O Estranho Caso de Angélica (2010), a adaptação de um argumento que Oliveira tinha escrito na década de 50. O guião desse projecto fora já tema de um livro editado em Paris em 1998, pela Dis Voir; o argumento da nova versão, finalmente passada ao grande ecrã, voltou a ser publicado, no ano passado, pela revista mensal L"Avant Scène Cinéma (que já em 1999 tinha dedicado um número especial a Oliveira). Quantos realizadores estrangeiros, da família estética de Oliveira, terão direito a essa atenção em França?