Um mar de palavras
Ao longo de séculos, os poetas portugueses cantaram o mar. Muitos mares: o mar afável das praias e dos banhistas, o mar duro da faina dos pescadores, ou ainda esse mar que levou os navegadores quinhentistas à descoberta de um novo mundo
A poesia portuguesa é uma praia constantemente batida pelas ondas do mar. Foi-o sempre, desde os primeiros trovadores galaico-portugueses até aos poetas dos nossos dias. Há setecentos anos, o jogral galego Martim Codax perguntava, assumindo a voz de um sujeito poético feminino: "Ondas do mar de Vigo,/ se vistes meu amigo?/ e ai Deus, se verrá cedo?".
Mas já na poesia medieval este mar próximo, costeiro, quase doméstico, cúmplice dos amores do poeta - "Ai ondas, que eu vin veer,/se me saberedes dizer/ porque tarda meu amigo/ sem min?", escreve o mesmo Codax -, podia também representar perigo e constituir um obstáculo à consumação do desejo, como acontece na notável cantiga de amigo de Mendinho, que abre com os versos "Sedia-m"eu na ermida de Sam Simiom/ e cercarom-mi as ondas que grandes som (...)". A donzela que fala no poema receia que o amado não venha resgatá-la e que, incapaz de voltar a terra, esteja condenada a morrer virgem: "Nom ei i barqueiro nem sei remar/ e morrerei eu fremosa no alto mar./ Eu atendend"o meu amigu"... e verrá?".
O mar, e por extensão toda a água, teve sempre um simbolismo ambivalente: é origem, fecundidade, vida, mas também é distância, desastre, morte. A água, escreve António Ramos Rosa, "(...) é um móvel túmulo e um berço errante/ em que a vida e a morte se consumam unidas/ numa pátria de metamorfoses incessantes".
No tempo das Descobertas, mais do que em qualquer outro período da história portuguesa, essa ambivalência tornar-se-ia uma realidade quotidiana, uma vivência colectiva. O mar que nos levava a novos mundos era o mesmo que separava famílias, amigos, amantes. O mar que nos trazia especiarias e riquezas várias era também o mar dos sucessivos naufrágios, que Bernardo Gomes de Brito depois compilaria na sua muito justamente intitulada História Trágico-Marítima. "Deus ao mar o perigo e o abismo deu,/ Mas nele é que espelhou o céu", resume lapidarmente Fernando Pessoa no célebre dístico final do poema Mar Português.
Sendo Portugal um país pequeno com uma costa extensa - "O meu país é o que o mar não quer", diz um verso de Ruy Belo -, não surpreende que o mar esteja obsessivamente presente em inúmeros poetas de sucessivas gerações. Mas o mesmo se poderia dizer, por exemplo, da lírica inglesa, que nos deu alguns dos mais notáveis poemas sobre o mar da literatura ocidental. Ou da grega, desde logo com a Odisseia, protótipo de todas as epopeias marítimas.
Se algo distingue o modo como a poesia portuguesa, no seu todo, se relaciona com o mar, essa singularidade talvez decorra, antes de mais, da "intromissão" do facto histórico dos Descobrimentos, decisivo não apenas ao nível material, mas também de consequências duradouras no plano identitário e simbólico. Sem a aventura da expansão marítima, não haveria grande diferença entre o mar de Martim Codax e Mendinho e o mar de poetas do século XX, como Sophia de Mello Breyner Andresen ou Eugénio de Andrade. Assim, e embora se trate sempre do mesmo "mar imenso solitário e antigo" evocado num dos primeiros poemas de Sophia, talvez seja lícito falar, na poesia portuguesa, de um mar anterior aos Descobrimentos e de um mar posterior aos Descobrimentos. E ainda, como a expansão foi um processo, e não um mero instante no tempo, do mar dos próprios Descobrimentos. Que não é apenas, ou nem sequer principalmente, o mar dos autores contemporâneos da expansão marítima. É sobretudo um mar lido a posteriori, na ressaca dessa aventura que levou o país, como escreve Camões, a mostrar "novos mundos ao mundo".
Escritos num momento já sentido como crepuscular, com a pátria "metida/ No gosto da cobiça e na rudeza/ Duma austera, apagada e vil tristeza", Os Lusíadas serão a referência inescapável de toda a poesia que, ao longo dos séculos seguintes, irá evocar de múltiplos modos o período da expansão marítima. O peso da epopeia camoniana - quer no cânone literário, quer na própria definição da língua - é tão avassalador que se torna difícil perceber se essa centralidade do mar dos Descobrimentos na poesia portuguesa se deve mais ao facto histórico da expansão marítima, simbolizável na viagem de Vasco da Gama, ou ao poema que sublimemente a relatou.
Senhora Nagonia
É claro que, tal como sucede noutras tradições poéticas, o mar da lírica portuguesa se subdivide numa abundante e diversificada tipologia de mares, muitos deles sem nenhuma relação com as Descobertas. Temos o mar épico dos navegadores e o mar trágico dos naufrágios, mas também, por exemplo, o mar da faina piscatória, muito sugestivamente descrito por António Nobre no segundo andamento da sua Lusitânia no Bairro Latino: "Oh as lanchas dos poveiros/ A saírem a barra, entre ondas de gaivotas!/ Que estranho é!/ Fincam o remo na água, até que o remo torça,/ À espera de maré (...)/ Que vista admirável! Que lindo! Que lindo!/ Içam a vela, quando já têm mar:/ Dá-lhes o Vento e todas, à porfia,/ Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas,/ Rosário de velas, que o vento desfia,/ A rezar, a rezar a Ladainha das Lanchas:// Senhora Nagonia!// Olha acolá!/ Que linda vai com seu erro de ortografia.../ Quem me dera ir lá! (...)".
Este mar dos pescadores, mas numa versão um pouco mais negra, atravessa também toda a obra do poeta neo-realista Álvaro Feijó: "Ó Ribeira das Naus! Ó meninos/ ranhosos e famintos!/ ó odor enjoativo do pescado!/ ó mulher de ancas largas, peneirando/ como o fluir das vagas!/ lobos do mar, bamboleando os corpos/ ao ritmo da bordada, mesmo em terra! (...)". E, para não alongar exemplos, acrescente-se apenas um excerto do poema A Virgem dos Sete Véus, de Vitorino Nemésio: "(...) Oh menina sem medo, de mãos pobres,/ Tira as conchas do arrojo para os dedos/ E marcha no trabalho e cava na maré/ Teu caldo de honra, tua horta de algas. (...)". A obra de Nemésio, como a de outros poetas insulares, serviria também para ilustrar esse mar muito específico que é o mar visto da ilha, um mar familiar e próximo a ponto de se poder tornar claustrofóbico.
Um mapeamento de todos os mares que encharcam a poesia portuguesa seria uma tarefa vasta, mesmo sem entrar nos mares fortemente pessoais e intransmissíveis de alguns poetas contemporâneos, entre os quais o mais estranho é porventura o que se dá a ler na poesia de Luís Miguel Nava: "Agora que se o mar ainda/ rebenta é por acção da memória, arrancam-me/ basalto ao coração ondas fortíssimas (...)". Ou: "(...) O mar, bata ele onde bater, é uma decalcomania que não podemos arrancar sem que atrás fique o nosso próprio corpo em carne viva".
Mas cingindo-nos a mares mais partilhados, podia ainda evocar-se essa espécie de versão avariada do mar das Descobertas que é o mar que nos anos 60 e 70 do século XX levava os soldados portugueses para a guerra colonial em África. Veja-se como Eugénio de Andrade e Fiama Hasse Pais Brandão fazem ecoar nos seus próprios poemas uma cantiga de João Zorro para sugerir o confronto desse mar acabrunhado e corrompido com a integridade limpa do mar medieval. "En Lixboa, sobre lo mar/ barcas novas mandei lavrar,/ ai mia senhor velida! (...)", cantou Zorro. Responde-lhe Fiama por cima dos séculos: "Lisboa tem barcas/ agora lavradas de armas// Lisboa tem barcas novas/ agora lavradas de homens// Barcas novas levam guerra/ As armas não lavram terra (...)". No poema de Eugénio o eco é mais subtil, e quase só a reiteração da palavra "barcas" assinala o diálogo com a cantiga de Zorro: "Que soldado tão triste esta chuva/ sobre as sílabas escuras do Outono/ sobre o Tejo as últimas barcas/ sobre as barcas uma luz de desterro (...)".
Raça de marinheiros
Um mar que, por si só, daria uma antologia é o mar das cenas de praia, como esta descrita por Vasco Graça Moura: "(...) na praia lá do guincho as velas/ de windsurf saltam sobre as ondas/ e o meu olhar, equestre,/ pula nos peitos das banhistas, enquanto/ um cachorro tenta agarrar a cauda.// nos feriados tudo é insuportável/ menos o sol e o mar/ apesar das famílias (...)". Ou esta, de Ruy Belo: "Raça de marinheiros que outra coisa vos chamar/ senhoras que com tanta dignidade/ à hora que o calor mais apertar/ coroadas de graça e majestade/ entrais pela água dentro e fazeis chichi no mar?". Também de Ruy Belo, esta inquietante imagem do mar, que o poeta atribui a um interposto "burguês na praia": "O mar faz-lhe lembrar um cego horizontal/ de olhar embaciado".
Em matéria de praias, há ainda a praia selvagem e deserta, que em Sophia de Mello Breyner Andresen se torna numa espécie de praia absoluta: "De todos os cantos do mundo/ Amo com um amor mais forte e mais profundo/ Aquela praia extasiada e nua,/ Onde me uni ao mar, ao vento e à lua", afirma a autora num dos poemas do seu primeiro livro.
Apesar da importância do mar em poetas como Eugénio de Andrade, Ruy Belo ou Gastão Cruz, para citar apenas alguns, o grande poeta português do mar da segunda metade do século XX é mesmo Sophia, a quem devemos esta sugestiva Inscrição: "Quando eu morrer voltarei para buscar/ Os instantes que não vivi junto do mar".
Um inventário destes mares feitos de palavras implicaria ainda dirigir o leme para águas mais metafóricas, para poemas onde o mar está em vez de natureza, como é frequente nos poetas românticos, ou é outro nome do absoluto. Ou em que o mar é humanizado, como nesta Carta ao Mar de Gomes Leal: "Deixa escrever-te, verde mar antigo,/ Largo Oceano, velho deus limoso,/ Coração sempre lírico, choroso,/ Eterno visionário, meu amigo!".
Mas também seria preciso descer ao pormenor e ver como todos estes mares que fomos referindo encerram outros mares mais circunscritos. O tema da viagem náutica, por exemplo, tanto poderia englobar a epopeia marítima, representada pel"Os Lusíadas, como muitas outras subcategorias, incluindo o curioso tópico do capitão de navio, presente em poemas (e ficções) de quase todas as literaturas. Na lírica portuguesa, o tema já está presente no romanceiro popular, com a Nau Catrineta - "(...) Passava mais de ano e dia/ Que iam na volta do mar,/ Já não tinham que comer,/ Já não tinham que manjar./ (...) Deitam sortes à ventura/ Qual se havia de matar;/ Logo foi cair a sorte/ No capitão-general" - e chega a um dos mais notáveis poemas de Vitorino Nemésio, A Vaga Verde: "(...) O capitão do navio é só capitão de navio;/ O homem que ele tinha no forro - morreu (...)// Vai o navio duro à vaga verde,/ Com sino de nevoeiro, lanternas, porões:/ É um bocado de escuro que se perde/ Na vida eterna, sem provisões".
Três poetas
Regressando ao argumento inicial, o que se sugere é que, na poesia portuguesa, esta tipologia de mares se cruza com um eixo crónico cujo centro são os Descobrimentos. Crónico no sentido de temporal, mas também na acepção em que dizemos de uma patologia que é crónica, ou seja, que está sempre a regressar, sem cura.
Quando pensamos na poesia portuguesa sobre o mar, três nomes ocorrem imediatamente: Camões, Pessoa e Sophia. Podiam ser outros. Não é certo que o tópico do mar esteja mais presente nestes poetas do que, por exemplo, em Eugénio de Andrade ou Ruy Belo. Mas não será por acaso que se trata de três poetas em cuja obra os Descobrimentos são um tema essencial, mesmo se em qualquer deles há "outros mares". Pessoa, na Mensagem, dialoga com o Camões épico, e Sophia dialogará depois com ambos.
Se Os Lusíadas recontam a história do país, dando destaque à viagem de descoberta do caminho marítimo para a Índia, conduzida por Vasco da Gama, Pessoa tenta algo de semelhante na Mensagem, ainda que num registo muito diferente. Como já Camões fizera, Pessoa evoca o precedente mítico da Odisseia - dando o título de Ulisses ao poema que abre com o célebre verso "O mito é o nada que é tudo" -, e também ele concede um lugar central aos Descobrimentos, dedicando-lhes a segunda secção do livro, justamente intitulada Mar Português. O primeiro poema desse conjunto, endereçado ao Infante D. Henrique, é um dos mais conhecidos e citados: "Deus quer, o homem sonha, a obra nasce./ Deus quis que a terra fosse toda uma,/ Que o mar unisse, já não separasse./ Sagrou-te, e foste desvendando a espuma (...)".
Menos vezes lembrado, o segundo, Horizonte, encerra assim: "(...) Buscar na linha fria do horizonte/ A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -/ Os beijos merecidos da Verdade". Talvez se possa entrever um diálogo discreto com este poema nesse outro, de Sophia, que abre com o verso "Navegavam sem o mapa que faziam" e fecha com esta bela estrofe, na qual a autora resgata o momento em que os navegadores depararam, do outro lado do mar, com a revelação de um novo mundo: "Depois surgiram as costas luminosas/ Silêncios e palmares frescor ardente/ E o brilho do visível frente a frente".
Nem em Camões, se não esquecermos o autor dos sonetos e canções, nem no poeta dos heterónimos, o tema do mar é tão obsessivo e dominante como em Sophia. Mas deve-se a Fernando Pessoa, sob o nome de Álvaro de Campos, aquele que é sem dúvida um dos mais extraordinários poemas sobre o mar de toda a moderna poesia ocidental: a Ode Marítima, espécie de sinfonia em mar maior que, segundo assegurava o próprio Campos, tinha subjacente uma "disciplina interior" que "nenhum regimento alemão jamais possuiu".
Se na evocação do Infante D. Henrique, o poeta ortónimo celebra esse mar que passa a unir o que outrora separara, já o mar da Ode Marítima é o mar da experiência da distância, de todos os modos como a distância pode ser sentida: "(...) Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, foste tu/ Que me ensinaste esse grito antiquíssimo, inglês,/ Que tão venenosamente resume/ Para as almas complexas como a minha/ O chamamento confuso das águas./ A voz inédita e implícita de todas as coisas do mar,/ Dos naufrágios, das viagens longínquas, das travessias perigosas (...)". Um grito, prossegue Pessoa/Campos, que "(...) parece narrar todas as sinistras coisas/ Que podem acontecer no Longe, no Mar, pela Noite...".