Euro forte, euro fraco
Oeuro juntou, sob um mesmo regime monetário, dois grupos de países habituados a conviver com regimes monetários ajustados à sua cultura e às preferências sociais que dela emanam, diferentes entre si, e conducentes a divergentes resultados económicos. De um lado, um regime monetário inclinadamente inflacionário e gerador de uma moeda fraca, e, do outro, um regime comprometido com a estabilidade de preços e gerador de uma moeda forte. Estes dois regimes, que ao longo do texto são apelidados de "euro fraco" e "euro forte", respectivamente, são incompatíveis entre si, pelo que as preferências sociais que lhes estão subjacentes não podem deixar de gerar graves tensões se conviverem numa mesma união monetária.
A arquitectura institucional definida para governar a zona euro alinhou-se pelo regime "euro forte", pelo que os países do grupo habituado ao outro regime, para poderem ter sucesso económico dentro da União, teriam que ajustar os seus comportamentos compatibilizando-os com os requisitos do regime monetário comum.
Esse ajustamento não se verificou, pelo menos na medida necessária. Um boom da procura interna desencadeado pela convergência das suas taxas de juro com as do outro grupo de países, mais baixas, e a abundância de crédito fácil e barato facilitaram que a inércia inflacionista do regime anterior continuasse a dominar os comportamentos económicos, levando à acumulação de défices externos e à limitação do potencial de crescimento.
Quando a crise financeira internacional fechou subitamente a corrente de crédito que, financiando-os facilmente, alimentara a acumulação dos défices e das dívidas perante o exterior, estes países viram-se envolvidos numa armadilha, de que não conseguem sair sozinhos, de excesso de dívidas e sem a competitividade necessária para alimentar o seu crescimento económico.
A arquitectura institucional já referida não contemplara uma tal situação e, como tal, não previra os instrumentos necessários para com ela lidar, para além da aplicação de penalidades. Por isso, quando, no início de 2010, o primeiro país desse grupo, a Grécia, se apresentou em situação de iminente insolvência, com os demais a sinalizar sérios riscos de lhe seguirem o caminho, as autoridades europeias não dispunham, pura e simplesmente, de quadro mental, legal e institucional para lidar com a situação, para além, como já se disse, da aplicação de penalidades ao "infractor". A experiência ainda fresca do abalo provocado pela falência da Lehman Brothers - deixada acontecer pelas autoridades americanas com o intuito de prevenir o risco moral no sector - e a consequente ameaça de que a falência da Grécia desencadearia uma série de outras falências soberanas, bem como o colapso do sistema financeiro europeu, levou as autoridades à urgente busca, através dos "interstícios" legais, e apoiadas na invocação de um estado de extrema necessidade, de possíveis remédios de emergência.
No entanto, sem um quadro mental adequado e sem instrumentos apropriados para lidar com a situação, sobretudo na sua vertente sistémica, tais remédios foram surgindo na forma de medidas avulsas destinadas apenas a conter os sintomas mais prementes. Só recentemente se começaram a contemplar soluções sistémicas e eficazes, mas cuja aplicação ainda tardará, pela necessidade de ultrapassar diversas dificuldades institucionais.
Embora a questão mais urgente seja a de conter a insolvência potencial em que se encontram os países do grupo "euro fraco", a questão verdadeiramente central é a de esclarecer se os países deste grupo se conseguem adaptar às exigências do regime monetário do euro, sem sacrificar a capacidade de realizar o seu potencial económico e de satisfazer as aspirações de bem-estar das respectivas sociedades. Ou se apenas conseguirão atingir este desiderato deixando a união monetária e regressando a um regime monetário com que viveram mais confortavelmente pelo menos as três décadas anteriores à criação da moeda única.
Entretanto, a questão mais urgente, de conter a insolvência potencial dos países do grupo "euro fraco", dificilmente será resolvida sem uma qualquer forma de mutualização das suas dívidas, que lhes assegure um alívio significativo do respectivo serviço.
Esta crise poderia, assim, ser também uma oportunidade de reflexão - mais apoiada na razão que em profissões de fé - sobre se os grandes desígnios da integração europeia serão, nos tempos mais próximos, melhor servidos pela imposição de uma moeda única ao espaço comum, mas altamente diversificado - política, cultural, institucional e economicamente -, da União Europeia, ou se, pelo contrário, esta imposição não acabará por ter efeitos contraproducentes para o alcance daqueles desígnios.
No fundo, seria como uma reemergência do velho debate entre "monetaristas", convencidos de que a integração monetária seria instrumental para a convergência e, por isso, a deveria preceder, e os "economistas", que, pelo contrário, consideravam que a integração monetária só deveria prosseguir depois de garantida a convergência. Para quem já não se recorda, a Alemanha era "economista".