O Alentejo a caminho das estrelas

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Na reserva do céu do Alqueva, o grande lago surge ora iluminado pelas estrelas, ora palco de ctividades aquáticas

É uma nova forma de conhecer lugares. No Alqueva, começa-se a andar de cabeça no ar, a ver estrelas. A culpa é da Reserva Dark Sky que nos quer ensinar a observar a cultura e o património deste canto alentejano de olhos postos no céu. Andreia Marques Pereira (texto) e Nelson Garrido (fotos)

A escuridão estranha-se e depois entranha-se. É assim no rio Ardila, quando embarcamos num caiaque; é assim num terraço no Telheiro. Duas noites quentes de Agosto que nos apanham entre o céu, a terra e a água - ámen, que estamos no Alentejo à beira do "milagre" que é o Alqueva, o maior lago artificial da Europa. Aqui, onde a água invadiu a terra, apetece parafrasear Pessoa: mas nela reflectiu o céu. Porque é nele que andamos de olhos postos, cabeça no ar ou a espreitar por canudos.

Não um céu qualquer, o céu que se acende quando o dia se apaga para, na sua transparência, nos levar pela Via Láctea até aos confins do universo. Chamam-lhe Dark Sky porém, se tivermos sorte, é de luz, milhares, milhões de luzes, que se faz. E, para sermos honestos, na Reserva Dark Sky do Alqueva (3000km2 em seis concelhos) a questão da sorte nem tem tanta importância. É mais uma questão de natureza, preservada: as suas condições meteorológicas asseguram-lhe, em média, 286 noites de céus límpidos por ano e a sua poluição luminosa é reduzida - graças à fraca densidade populacional, os índices de escuridão são de cerca de 21,5%, dos melhores do mundo. Garantias de intensos mergulhos estelares.

Claro que isto de ver estrelas tem mais do que a nossa vã sabedoria concebe. E não é sequer a conhecimentos teóricos de astronomia que nos referimos - afinal, no Alqueva, se quisermos, temos guias para o céu. Referimos-nos a algo tão prosaico como o sentido de oportunidade ou a sorte de estar a olhar para o sítio certo na hora certa: de outra forma, como explicar que em duas noites de observação de estrelas tivéssemos sido os únicos a não ver uma estrela cadente? E não foi porque elas tenham sido tímidas. Na primeira noite, falam-nos de dúzias; na segunda há mais comedimento, mas entre 20 pessoas os avistamentos foram pelos menos outros tantos. Quase - nós ficámos em branco. Mas só no capítulo de estrelas cadentes, há que reconhecê-lo. Porque esquadrinhámos boa parte da Via Láctea, passámos nebulosas várias e entrámos Andrómeda dentro - aqui tão perto - sem pedir licença; deixámo-nos surpreender pela Ursa Maior e Cassiopeia, ensaiámos medições de céu a golpe de vista e realmente lá estava a Estrela Polar; também nos perdemos entre miríades de pontos luminosos que nada nos revelavam. Nada excepto a sua intrínseca luminosidade, amplificada nestes céus que justificam a metáfora de abóbada celeste - neste caso, quase celestial.

Estas qualidades foram fundamentais para obter a primeira certificação Destino Turístico Starlight, atribuída pela Fundação Starlight (Instituto de Astrofísica das Canárias), em conjunto com a Unesco (que em 2007 proclamou o céu e os astros Património Mundial), a Organização Mundial de Turismo e a União Astronómica Internacional. Contudo, um destino Starlight "é mais do a qualidade dos céus", sublinha Apolónia Rodrigues, presidente da Genuineland (uma associação de turismo rural e sustentável na Europa), que coordena o projecto da reserva, "é também a qualidade dos serviços associados". Serviços que foram agrupados numa Rota Dark Sky e que vão desde o alojamento e restauração às ofertas de animação turística com destaque para as nocturnas - como night birdwatching, wildnightwatching, moonbirding, passeios pedestres e a cavalo, canoagem e piqueniques. Sem esquecer, claro, a observação de estrelas, o motor deste projecto. Vamos, então, ver estrelas - e tudo o que vem com elas. Como a água.

Mergulhar e casar no lago

Temos dois dias no Alqueva. É início da tarde em Juromenha e o termómetro chega aos 45º. O pequeno castelo parece mais abandonado do que nunca e a paisagem à volta está saturada de ocres; quase ninguém nas ruas brancas. O hotel fica isolado num monte e parece abandonado de vida, excepto pelos gatos e cães que se estendem pachorrentamente. Espreitamos a piscina, descobrimos uma enorme lagoa mais ao fundo: o apelo da água é forte e se não caímos em tentação é porque nos espera um passeio por outras águas. As do Alqueva.

O Alandroal e seu castelo ficam para trás e alguns quilómetros depois surge Monsaraz, empoleirada e rodeada de muralhas. No Centro Náutico de Monsaraz espera-nos o Sem-Fim, nome com pergaminhos (turísticos) nestas paragens - havemos de almoçar no restaurante com galeria de arte que ocupa um antigo lagar de azeite no Telheiro para o nossa primeira "cabeça de xará" (enchido de porco) e para um doce de vinagre, sobremesa tradicional já pouco habitual na zona.

Agora, é o veleiro que nos leva num passeio de duas horas pelo Alqueva - quando o tempo assim o permite, a viagem é feita à vela; hoje o vento não mora aqui e a pacatez da tarde é atravessada pelo barulho dos motores. Tiago e Gil Kalisvaart, capitão e comandante do barco, filho e pai respectivamente, são os anfitriões destas viagens, que partem deste braço de água do Grande Lago - um dos muitos, desta imensidão de água que abraça 440 ilhas (número variável conforme o caudal) e tem 1160 quilómetros de margens (uma extensão superior ao litoral português). No total são 88 quilómetros navegáveis no braço principal e nós percorremos uma pequeníssima parte deles, o suficiente para oscilar entre velhos postos fronteiriços, marcos geodésicos, o ancoradouro de Ribeira das Velhas (também em Monsaraz) e essa originalidade que são as bóias brancas e vermelhas que assinalam o antigo leito do Guadiana. Navegamos no Guadiana transbordante sob um sol inclemente e luz intensa.

Continuássemos nós rumo a Sul e chegaríamos à aldeia da Luz, mas isso é passeio para oito horas, churrasco incluído. E com a "Expedição Sem-Fim" teríamos, em dois dias a bordo, uma excursão por muitas das oito aldeias ribeirinhas que compõem as Terras do Grande Lago. Contudo, o nosso passeio tem outro destino, "a ilha das pepitas douradas", também conhecida por "Ilha da Páscoa" pelas formas caprichosas dos afloramentos rochosos, explica Tiago, e é inegável a magia quando de repente nos vemos a meio caminho entre dois castelos, o de Monsaraz e o de Mourão, despidos do calor do dia para mergulhar no Guadiana. Não há choque térmico - as águas estão tépidas nesta pequena baía. Ao largo, um barco leva praticantes de esqui aquático e este é um local tão emblemático que a Sem-Fim já aqui organizou dois casamentos - altar na praia, notário, flores.

Faz parte deste passeio, a paragem para a "ida a banhos", a que se segue, já no barco, uma merenda de produtos regionais. A melancia é um sucesso a bordo de um insólito antigo cargueiro holandês de 1913, de fundo chato com patilhões para compensar as velas. Chegou a Portugal de camião pelo sonho do "comandante", Gil Kalisvaart, pintor e escultor holandês aqui radicado há mais de 40 anos, e foi montado no Alqueva. "As pessoas aqui dizem que ele ficou todo este tempo à espera que o lago enchesse para meter o barco", diz o filho, Tiago. No Verão há saídas às 17h, quando há grupos e eventos. "O barco vive no lago, se houver pessoas saímos."

Há guias de viagem, de fauna e flora, livros de História espalhados no barco, onde um toldo protege do sol - quem o prefere tem na popa e na proa bons decks. Florbela Alves e o marido, Carlos Lima, preferem a sombra, ao contrário das filhas gémeas, Márcia e Filipa, 12 anos. Vieram de Paços de Ferreira e já foram ao Menir do Outeiro - equitação e BTT estão nos seus planos de primeira vez no Alqueva. Os lisboetas Carla e Manuel Gaivotas, que vêm com a filha Maria, sete anos, vêm impressionados com a Aldeia da Luz, "não tem alma".

Fernando Crispim também está impressionado com o antes depois, mas as suas referências são outras: há 32 anos que não vinha aqui. Emigrado em Paris, aproveita todos os verões para com a mulher Fernanda "ir conhecendo partes diferentes do país". Este ano, calhou o Alentejo e ele voltou a nadar no que antes era Guadiana, agora Alqueva. "Já não conheço isto", diz; bem tentou, perguntando pela "ponte de caminho-de-ferro". Está submersa.

Chapéu de chuva de estrelas

O antes era uma terra de planuras áridas, dependente das benesses do Guadiana; o agora é um espelho de água de 250 quilómetros quadrados que se tornou num pólo de atracção e que quer ser um grande dinamizador turístico da região. A agricultura perdeu peso, mas o peso da ocupação humana é um legado incalculável. Habitado desde o Neolítico, o Alentejo chegou à actualidade como a região europeia com a maior concentração de monumentos megalíticos - não é incomum os campos verem a sua monotonia quebrada por intrigantes aglomerados de pedras. Há monumentos funerários e outros terão estado ligados ao movimento dos astros, assinalando a passagem dos meses, das estações, do tempo. Atravessaram milénios intocados e o céu que espelhavam teve a mesma fortuna. Porque aqui se consegue manter uma escuridão que se assemelha à desses tempos primitivos em que a luz dos homens não ofuscava a das estrelas.

Esse céu abriu portas para o projecto Reserva Dark Sky Alqueva, no contexto da Agenda para a Sustentabilidade e Competitividade do Turismo Europeu, que começou a ser implantada no Alentejo em 2005. A ideia Dark Sky surgiu mais tarde. Foi um belga que chamou atenção para o potencial que se abria quando o dia se fechava. "Fizemos pesquisas e percebemos que era uma grande temática, com tendência de futuro", recorda Apolónia Rodrigues, "e por isso criámos a marca umbrella". E o que começou como mais uma oferta num segmento de sustentabilidade tornou-se no programa mais visível dessa agenda.

Desde o início, a ideia foi conciliar a observação do céu nocturno com uma componente turística. Para que qualquer um possa usufruir das estrelas independentemente do seu conhecimento e para promover a região. Juntaram-se esforços: a Parceria Terras do Grande Lago Alqueva (promotora) reúne a Rede de Turismo de Aldeia do Alentejo/Genuineland (coordenador), a Turismo Terras do Grande Lago Alqueva, a Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva e a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Alentejo (CCDRA); a Associação Portuguesa de Astrónomos Amadores, sobretudo através de Guilherme de Almeida (autor do Roteiro do Céu) e Vítor Quinta, apoia na parte técnica e no entusiasmo (dividido com "não afiliados" como Raúl Lima); os municípios de Alandroal, Barrancos, Moura, Mourão, Portela e Reguengos de Monsaraz comprometeram-se a reduzir a poluição luminosa.

A formação dos empresários foi o grande investimento - e veio acompanhada de mudança de mentalidades. Não só receberam formação em astronomia como perceberam que era necessário adaptar-se a um turismo nocturno em coisas tão prosaicas como pequenos-almoços mais tardios e, nos casos do turismo rural, permitir entradas a qualquer altura. É um work in progress, mas já com resultados: a auditoria para a certificação Starlight em 2011 teve o sucesso pretendido. Hoje "todos trabalham a rota a sério, não cada um para seu lado", diz Apolónia. Os empresários já programam regularmente actividades nocturnas - por exemplo, observa-se o céu a qualquer altura no Telheiro e já há canoagem à noite - embora falte uma agenda global.

Telescópio de céu profundo

É ao Telheiro que vamos ver as "primeiras" estrelas. Chegamos antes delas com tempo para massagens no Monte Alerta, algo invulgar num turismo rural. É Vitória Duarte a massagista de serviço e proprietária da casa, onde se pode fazer massagens na sala indicada ou em plena natureza. O avô nasceu aqui, a bisavó no vizinho Monte de Santa Catarina onde iremos ver estrelas guiados pelo filho, Vasco, que explora esse turismo rural. Antes, jantar - o cozinheiro é o outro filho, Sérgio.

Abriram o Monte Alerta ao turismo há "pelo menos 17 anos", na casa da família onde agora há sete quartos e duas suites e nos espaços comuns o mobiliário e objectos contam histórias de gerações. No jardim, a piscina e um relvado onde cães e gatos se espraiam: a paisagem inclui uma lagoa, um jacuzzi, um terraço. Jantamos numa sala quase monacal no seu pé direito descomunal e lareira gigantesca - secretos de porco e fondant de chocolate entre outras iguarias. A massagem, essa, é eclética e inclui taças do Tibete.

Quando chegamos lá fora já não vamos a tempo de ver Júpiter surgir no horizonte, a leste - ele só viria mais tarde. Temos sorte, dizem-nos, está uma noite fantástica para olhar o céu (escuro, de lua nova). Nós e as quase duas dezenas de pessoas que se juntam no terraço em torno do telescópio Dobson GCS 12"", que parece um pequeno canhão. Ao leme está Vasco Ambrósio que com a mulher Susana explora o Monte de Santa Catarina mesmo aos pés de Monsaraz - a sua fortaleza "antes estava mais iluminada", refere Apolónia Rodrigues, "desde que começámos a trabalhar a certificação a câmara tem muito cuidado. Vai trocar a iluminação dos globos, por exemplo".

Vasco Duarte fez a formação da reserva estrelada, mas anda de cabeça no ar desde os 12 anos a olhar os céus. Começou com um "telescópio pequenino, de planetas" e a reserva trouxe-lhe este "de céu profundo" (que completa com binóculos). Tão profundo que se entra na galáxia Andrómeda, esta noite "com uma luz incrível" - cada um espreita para a ver. Uma luz de laser rasga a noite quando Vasco nos desvenda o mapa do céu, apontando estrelas e constelações; depois aponta o telescópio e nós chegamos mais perto delas. Não vimos, mas estariam lá, as constelações mais conhecidas do Verão, como Cisne, Águia, Escorpião, Lira... Quem já conhece os meandros do céu sabe como chegar de umas às outras, nós ainda não chegamos lá.

Há quem se empenhe em tirar fotografias, quem comente as especificidades do telescópio, quem fale de ovnis. "É quase tudo é explicável", ri-se Vasco, "balões metereológicos, satélites...". Quem tem sorte vê estrelas cadentes, todos percorrem o leito da Via Láctea, maravilhados: "Ter esta Via Láctea!...", ouve-se.

São quase todos os portugueses, estes caçadores de estrelas, muitos sem qualquer conhecimento astronómico. Mas há alemães curiosos, incluindo quem tenha editado uma coluna de astronomia numa revista e tenha vindo de propósito pelo Dark Sky; e uma família luso-inglesa assídua das star parties na Grã-Bretanha. "Chegámos hoje e marcámos logo", diz Cristina Pizarro, vinda de Londres.

Ela e Steve, o marido, já estão habituados a estas longas noites. Os filhos, Luís e Filipe, sete e dez anos, são neófitos. Nunca viram tantas estrelas, contam, e o telescópio do pai, de plástico, já lhes parece de "brincar". Com um caderninho na mão, apontam entusiasmados os novos avistamentos - esta noite já anotaram três novas nebulosas, M52 ("muito difícil de ver"), M74 e M85, Andrómeda... "Parece pó", descreve Luís. Durante o dia também gostam de ver o céu - falam das "explosões no sol", "em arco, como manchas solares". "Viram num telescópio, com filtros, não directo", completa a mãe. Todos os anos, nas férias portuguesas, seguem a agenda Ciência Viva - este ano no Alqueva querem aproveitar ao máximo. Birdwatching, o Centro de Avifauna Ibérica e o widenightwatching, com a possibilidade de avistamentos de raposas, veados, javalis são hipóteses.

Vasco, 28 anos, também começou a fazer observação nocturna de animais selvagens e birdwatching, tudo parte deste regresso à sua terra há um ano e meio. "Fizemos uma aposta, é uma mudança de vida", sublinha. "Surgiu a oportunidade e estamos de corpo e alma."

Espada na lua com planetas

Se nos surpreendemos com as massagens, podemos dizer que a surpresa com as aulas de cozinha não é menor. Já avançámos no território Dark Sky, deixámos a órbita do Alandroal e de Reguengos de Monsaraz para nos instalarmos em Portel, vila de pergaminhos - e onde Miguel Claro, astrofotógrafo assíduo destas terras conseguiu a "fotografia do dia" do site da NASA, que é uma boa síntese do que o Dark Sky Alqueva tem para oferecer. A espada da estátua do condestável D. Nuno Álvares Pereira parece atravessar a lua em quarto crescente, acompanhada por Júpiter a um canto, Vénus por baixo e as Plêiades por cima.

O Hotel Refúgio da Vila é o nosso porto de abrigo para a segunda noite e o primeiro contacto é pela cozinha. Não a cozinha do seu restaurante, mas a cozinha que noutros tempos servia a enorme casa senhorial: a matança era feita no exterior, a carne era aqui preparada e conservada. É, portanto, um local fresco, onde se mantêm utensílios antigos e... electrodomésticos. Já só serve para as aulas de cozinha que atraem gente de todo o mundo - "até da Índia já vieram duas mulheres que nunca tinham cortado cebola na vida", conta Pedro Soudo, o chef do restaurante e professor da escola. Hoje somos quatro a aprender a confeccionar pratos típicos da cozinha alentejana: a Fugas e um casal inglês-holandês, Jacquelina Deerenberg e Jerry George, à espera da primeira filha em comum, Rosalina. Ela é visita assídua em Portugal, filha de uma portuguesa, ele está a descobrir as raízes da companheira.

Vieram ao Refúgio da Vila só fazer a aula: um jornal inglês colocou esta escola no top 10 europeu de cozinha tradicional. Avental, chapéu de cozinheiro e metemos as mãos na massa. Aperitivo, peixe, carne e sobremesa são o trabalho (e almoço) de hoje: tomatada alentejana, coentrada de cação ("little shark") , migas com carne do alguidar e bolo de queijo com mel. O chef não esconde que gosta de dar "roupagens diferentes" aos pratos tradicionais, algo que nestas aulas não pode fazer. "As pessoas procuram o tradicional."

Partimos ovos e separamos claras das gemas; Jerry corta cebolas com mestria; Jacquelina ri enquanto amassa o pão: em casa ela faz a comida de "monday, tuesday...", ele, originário de Kerala (Índia), faz a comida indiana. "A good deal", brinca Jerry. "Quando sou eu a cozinhar uso outro tipo de temperos para dar mais gosto", confessa Pedro Soudo, mas com estrangeiros há mais susceptibilidades. Por exemplo, a banha é quase interdita: "às vezes ainda pergunto se posso utilizar, eles dizem que sim mas depois notamos que não comem".

Os aprendizes de cozinheiro surpreendem-se com as horas que demorava a preparar as migas no tempo da avó do chef - agora é colocar o pão, a água já quente e bater; querem saber todos os temperos, ficam curiosos com a pasta de pimentos e a tomatada e escutam atentamente como se prepara o molho para a coentrada, "a parte mais difícil", avisa o chef Pedro Soudo; há incredulidade perante a quantidade de ovos e açucar da sobremesa.

Quando chegamos à mesa o problema é comer tudo. Jacquelina já está habituada às grandes quantidades à mesa portuguesa - comida que, quando era pequena, em casa da avó, lhe parecia muito estranha. Agora é fã incondicional de caldo verde ou o bacalhau à Brás. "Quando comemos aqui [em Portugal] foi: "uau"", afirma Jerry.

Tapete de estrelas

"Uau" poderia ser também a descrição do pôr do sol com que somos brindados na paragem seguinte. Estamos pela primeira vez com os pés do lado esquerdo do Alqueva, e deixamos Amieira, onde se alugam os famosos barcos-casa. Em Mourão o sol declina directamente à nossa frente, as águas azuis escuras são atravessadas por uma faixa dourada e bamboleiam com a brisa, rasgadas por pranchas de windsurf e alguns barcos. No ancoradouro ouvem-se mergulhos, mas a atmosfera geral é de tranquilidade. Cenário diferente encontra-se em alguns sábados, quando a água é invadida por desportos radicais - os hidroaviões têm passagem regular, o esqui, a canoagem, as bicicletas de água são assíduos, por exemplo.

Assentamos arraiais no Monte dos Estevais, sobranceiro a todo o cenário: BarZeco é o nome do local e à sua volta mais montes e água. Como medida do seu isolamento veja-se a electricidade, que provém de um gerador. Não há, portanto, poluição visual neste recanto que se abre para uma paisagem imensa, e tem nos alpendres que o rodeiam o melhor miradouro - pelo menos enquanto não se concretizar o plano de fazer um terraço no topo deste bar-restaurante que abriu há três anos, refere José Lourenço, o proprietário e espécie de guia informal para a região. Na realidade, o próprio Barzeco, construção de madeira com o aspecto informal de certos bares de praia, pintado em azuis e amarelos fortes acaba por funcionar como um trampolim para turistas, complementando o Posto de Turismo, com horário mais restrito - nos meses de Verão o horário pode ir das 7h às 2h, com descanso à quinta-feira (nos outros meses, só abre ao fim-semana). Todas as refeições aqui se fazem, com especialidades como achigã com molho de coentros ou lúcio-perca com arroz de poejo.

José Lourenço está nestas paragens há 30 anos e fechou a empresa que tinha antes e abriu o BarZeco e quer abrir um parque de campismo "o mais ecológico possível" nas redondezas (o que, a acontecer, vem responder a uma procura crescente, sublinha Apolónia). O negócio melhora de ano para o ano, mas, brinca, " isto é o Alentejo, tudo leva o seu tempo". Muitos portugueses, espanhóis, alemães e, este ano, franceses. Gosta de ver o seu bar como uma sala de visitas que instiga a estadias mais demoradas: durante o dia apetece dormir, à noite flutuar no Dark Sky estrelado. Com ou sem ajudas - aqui não há telescópios, mas já se improvisaram observações recorrendo a "equipamento" improvável que ajuda a usufruir do melhor trunfo do local, a localização "remota".

Que não haja ilusões, as distâncias por aqui podem ser curtas na teoria, mas no terreno, entre curvas e mais curvas, leva-se mais tempo do que supomos. Tanto que nos atrasámos para a canoagem. O dia continua a desaparecer entre os horizontes de montes e planícies e braços de água indisciplinados, mas quando chegamos à beira do Guadiana, em Moura, já se apagou totalmente - só vemos as caras dos nossos companheiros de jornada no final, em torno de uma ceia à beira-água e iluminação rudimentar.

É uma descida nocturna que normalmente ainda começa com luz. Hoje não. Mas como acontece nestas coisas de Dark Sky, como nos aconteceu na noite anterior, o que primeiro nos parece uma noite escura afinal revela-se uma noite carregada de luzes - basta que os olhos se habituem para as descobrirmos. E quanto mais tempo passa, mais luzes se acendem no céu. Porém, quando deixamos o Cais do Fragal - os antigos moinhos da barca, como é conhecido entre as gentes da terra "por ser o ponto onde antigamente a barca que transportava os automóveis" atravessava o Guadiana, explica Francisco Guerreiro, da organização - é apenas de vultos que se faz a paisagem.

Antes, uma breve explicação de como remar com uma pagaia; depois, já com os coletes salva-vidas vestidos, fazemo-nos à água para três horas de percurso, cerca de 15 quilómetros. O grupo é grande, as canoas levam duas pessoas. Ninguém se perde, mas o percurso não é linear. Voltamos à direita para entrar no rio Ardila; se seguíssemos em frente iríamos ter à barragem do Alqueva.

Sem pressas, entramos noite dentro e graças a Francisco Guerreiro descortinamos as óbvias Ursa Maior e Menor, Cassiopeia e a Estrela Polar e ensaiamos localizá-las recorrendo a alinhamentos e técnicas de exploração básicas ao som dos remos a fender as águas ou dos pássaros e grilos que vamos ouvindo. Quando a lua está cheia, contam-nos, não se vêm tantas estrelas, mas a paisagem ganha contornos feéricos de cor branca. O ritmo do passeio é tão calmo que permite paragens completas, em que estamos só nós e todas as estrelas que conseguimos abarcar; no resto do tempo, dependemos da nossa coordenação para as ver enquanto remamos.

A passagem por Moura ilumina a terra e obscurece o céu. Mas não dura muito, esta espécie de eclipse estelar: voltamos aos caminhos de silhuetas de árvores, ruínas e até pelos antigos pilares de uma ponte passamos. Ultrapassados os antigos moinhos, hoje habitat de morcegos, a chegada faz-se depois da ponte sobre o rio Ardila, que já foi caprichoso ao ponto de quase não correr e agora é disciplinado pelo Alqueva. Sair da canoa não é tarefa fácil, porém sejamos pragmáticos, a água já nos colou a roupa ao corpo. E, além do mais, a ceia espera-nos e inclui uma sopa quente. Tão quente como nos parece o tapete de estrelas do qual já não conseguimos tirar os olhos.

A Fugas viajou com o apoio da Reserva Dark Sky

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