O lixo de Tom Zé tem toda a lógica
Em Tropicália Lixo Lógico Tom Zé não e limita a revisitar o Tropicalismo: propõe uma nova tese fundadora do movimento e homenageia a cultura oral moçárabe em que cresceu.
Estava o Tropicalismo sossegado, com as suas raízes etiquetadas e medidas, os intervenientes identificados, as suas causas analisadas, estava o Tropicalismo explicado e legitimado quando veio Tom Zé confundir tudo. Afinal, diz Tom Zé ao Ípsilon, "Tropicalismo não é, como sempre se falou, nascido do rock internacional e da poesia de Oswald de Andrade", instâncias que, segundo o cânone, teriam acertado em simultâneo nas cabeças de Gil e Caetano, encarreirando-os da direcção do caldo multi-cultural, rural-sofisticado do Tropicalismo. As verdadeiras causas desse fascinante movimento em que o certo deixou de ser o belo, são mais complexas e envolvem - entre outros detalhes - a herança cultural árabe levada para o Brasil por cristãos portugueses, "miseráveis" e durante muito tempo "analfabetos", poesia provençal, cheganças e Aristóteles. Esta nova tese não é apresentada em livro recorrendo a documentação e notas de rodapé - antes nos chega sob o formato canção. Ela é a âncora e o alvo de Tropicália Lixo Lógico, o novo disco de Tom Zé, e o seu mais melódico em muitos anos.
Não é uma homenagem ao Tropicalismo nem uma reciclagem das estéticas que confluíram nesse movimento - já de si um aglomerado de contradições em que cabiam canções sinfónicas e o psicadelismo americano, poesia concreta e corte e colagem. É certo que o disco transporta marcas dessa época: as cordas, omnipresentes, lembram a década de 1960; as canções são "sabotadas", isto é, interrompidas por ruídos ou sons inesperados, que funcionam como que lembranças da ruptura tropicalista.
Mas o disco é também uma teoria - a versão de Tom Zé da real origem do Tropicalismo - musicada. "As faixas Apocalipsom, Tropicalea jacta est, Marcha-enredo da creche tropical e Tropicália lixo lógico contêm uma explicação da tese central" que o disco encerra, escreve-nos Tom Zé. Ele está em digressão e o mail foi o meio mais à mão para comunicarmos.
A tese central - exposta na citação seguinte - não é simples, pelo menos ao início. Mas mais à frente ficará clara.
Segundo Tom Zé, o rock internacional e Oswald de Andrade fazem parte da história da Tropicália, sim, mas são só uma parte. Ele enumera protagonistas, uns mais óbvios (o "Teatro Oficina, de José Celso Martinez Correia", "o encontro com os maestros Rogério Duprat e Júlio Medaglia", "o contato com Rita Lee e os Mutantes"), outros menos ("Hélio Oiticica e seus parangolés", "José Agripino de Paula"); mas "todas essas forças", que "fizeram parte de uma grande agitação cultural, naqueles finais dos 60", mais que responsáveis directos pela Tropicália, "actuaram como [e aqui seguimos a formatação que Tom Zé deu às suas respostas por e-mail]
GATILHO DISPARADOR
que, na capacidade intuitiva dos gênios Gil e Caetano, fez vazar um
LIXO LÓGICO
que, instalado no hipotálamo, continha os elementos de uma visão de mundo não aristotélica".
Explicando...
Simplificando os conceitos de Tom Zé: todas as influências que por norma são tidas como responsáveis pelo nascimento do Tropicalismo (os já mencionados rock e Oswald e ademais etcs) constituem afinal apenas (e dizemos apenas entre aspas) excitações, pequenos fotões de energia, que desabaram sobre Caetano e Gil, libertando neles um saber, uma mundivisão, que estava adormecida nos seus cérebros: o mencionado "lixo lógico".
Aquilo a que Tom Zé chama "lixo lógico", que será o verdadeiro culpado do Tropicalismo, é um conjunto de saberes pré-aristotélicos, pré-cartesianos, pré-científicos, que constituía o cerne da cultura do Nordeste brasileiro (de onde Gil, Caetano e Tom Zé vêm).
Essa cultura inclui "a poesia provençal, a canção celta/árabe/sufi [...] e vários outros artifícios" do povo que, "advindo de Portugal", foi "para o Nordeste somente em 1576 e lá se tornaram miseráveis [...] e [...] analfabetos". Esse povo, diz, "amando a cultura dos avós", traduziu "na dança, nas festas populares, nas canções [...] nos dramas representados" a força cultural que herdou.
Tom Zé diz que "no Brasil esse conjunto de conhecimento é chamado de educação moçárabe". Os moçárabes eram cristãos portugueses que viveram sob o regime árabe; no entender de Tom Zé, estes cristãos acabaram por povoar o Nordeste brasileiro, mantendo nas gerações seguintes muita dessa cultura, através das suas manifestações artísticas populares (uma espécie de cultura oral). Daí a importância das mencionadas "cheganças", com a sua carga teatral - que está presente nas primeiras manifestações do Tropicalismo.
Tom Zé, que chegou a fazer teatro e hoje diz que os seus discos não acabam nas canções porque só fazem sentido quando são "representados" em palco, conta como era ser menino nessa época: a infância foi povoada por personagens "do samba de roda, da chegança".
A chegança, conta, "é uma dança em que os cristãos expulsam os incréus, quer dizer, os árabes": "É uma batalha naval". "Veja como é o mundo mitológico", escreve: "Em Irará, não corre nem uma gota d"água, não há nenhum rio corrente. Entretanto, no mundo mitológico da cabeça dos nossos habitantes, circula uma dança dramática com quadrantes, sextantes, velames, espadas, navios, oceanos", escreve, referindo-se às cheganças.
Recorda ainda a tradição do Bumba-Meu-Boi, cheia de personagens ("O aguadeiro, o caseiro, o fogueteiro, o alfaiate, o marceneiro"); o Bumba-Meu-Boi é uma dança em que se comemora a ressurreição de um boi, uma forma de exaltar a força da natureza face à fragilidade do homem. Os instrumentos, todo percutivos, são tradicionais.
É por isto que Tom Zé tem dito que os músicos da região estavam mais preparados para o mundo confuso de finais de década de 1960 que os sofisticados da urbe e foram eles que fizeram o Tropicalismo: porque a cultura em que cresceram em meninos os preparava para encontrar significado num mundo de caos e estilhaços - a região vivia sob a vigência de uma cultura oral de séculos que em si já reunia estilhaços de diversos mundos.
Mas se Gil e Caetano (e Tom Zé, claro) apenas possuíssem o Lixo Lógico, talvez não se tornassem porta-estandartes do Tropicalismo. Entre a aprendizagem inconsciente dessa cultura e a sua transformação, houve um período de - chamamos nós - escolaridade clássica, que os tornou permeáveis à cultura ocidental.
"Aos 8 anos de idade, quando íamos para a nossa primeira escola, estávamos, como seres humanos, formados para viver [no] mundo moçárabe. Aí caía sobre nós o Aristóteles da escola, o Aristóteles da palavra escrita", narra Tom Zé. "Era um choque. Um choque delicioso, digamos".
"Acontece que todos nós sabemos que desde as cavernas o cérebro humano nunca jogou nada fora. Aquilo que não é usado no córtex vai "descansar" em algum lugar da mente, digamos, no hipotálamo". Pelo que a cultura moçárabe da meninice destes homens foi crescendo em segredo nos recessos dos seus cérebros, explodindo mais tarde "com a agitação cultural dos fins dos anos 60 ", quando se libertou da cultura aristotélica e desencadeou "a energia com a qual Caetano e Gil produziram a Tropicália".
A quem cai de pára-quedas na obra de Tom Zé ou no Tropicalismo, isto pode parecer estranho - mas no fundo Tom Zé está a dizer que as formas de criação mais sofisticadas podem estar ligadas às mundividências mais primitivas, ou, por outra, que estas são mais complexas do que aparentam. Não é uma novidade: imagem Faulkner no sul dos EUA a ler Shakespeare e Joyce e a produzir O Som e a Fúria.
Tropicália Lixo Lógico ganha uma dimensão maior quando pensamos que foi no Tropicalismo que o Tom Zé que hoje conhecemos surgiu. Essa ligação ao movimento - para mais tendo em conta que bastas vezes a sua participação foi menosprezada - terá adiado o momento de revisitar a época, algo estranho num músico que tantas vezes se apessoou de géneros para pensar as suas consequências sociais e culturais, o que é visível em obras como Estudando o Samba (1976), Estudando o Pagode (2005) ou Estudando a Bossa (2008).
"Essas ideias [as que formam Tropicália Lixo Lógico] foram um ajuntamento progressivo de informação histórica, tempos magicamente contraídos, chance and choice e realmente foi necessária uma distância no tempo para cristalizar a ideia".
Hoje Tom Zé diz "que a Tropicália refundou o País"; sempre metafórico, atribui à Tropicália o papel de lebre da Segunda Revolução Industrial (a do Princípio de Indeterminação, de Heisenberg), ou seja, para Tom Zé os tropicalistas abarcaram o caos antes mesmo dos cientistas descobirem a descontinuidade.
Olhando para trás, ele diz que "a lógica cartesiana, no Brasil, ficava muito ofendida com a falta de clareza" dos tropicalistas, ou seja, "com a indeterminação e descontinuidade das palavras da canção no mundo tropicalista".
E de certa maneira, ainda fica: a fábrica onde Tom Zé mandou fazer os discos de Tropicália Lixo Lógico, "depois de receber a masterização, devolveu-a dizendo que era impossível fabricar algo tão cheio de erros". A fábrica enviou então um relatório - hilariante - a Tom Zé, onde assinala cada ruído (propositado, note-se) que "interrompe" as canções e propõe soluções.
"Esses "erros"", escreve Tom Zé, "eram justamente o mais precioso artifício de composição que eu produzi em todos estes anos. Isso aconteceu porque venho perguntando: o que é um disco? o que é que se pode pôr nele? como se pode aproveitar ou articular o tempo dentro desse mídia? como é possível modificar e contrariar os hábitos estabelecidos, como se fossem obrigatórios e eternos dentro dele?"
Talvez seja este o maior mérito do Lixo Lógico: aos 76 anos Tom Zé ainda está à procura de nos excitar de novo, de nos fazer ouvir como se fosse a primeira vez - como se fôssemos Tom Zé a ver o Bumba-Meu-Boi pela primeira vez. Há que dar-lhe o mérito: conseguiu-o.