Lisandro Alonso nunca andará sozinho
Faz filmes para poder estar com a solidão de outras pessoas. O argentino, expoente do novo cinema sul-americano, está em Portugal no festival Cinecoa.
La libertad surgiu no primeiro ano do séc. XXI - coincidência perfeita para marcar um novo gesto numa nova época. Em 2001, Lisandro Alonso, de Buenos Aires, deslocara-se para os isolados campos do seu país para retratar a rotina de um simples lenhador, humilde trabalhador cujos simples gestos de trabalho e caça retratavam uma vida ainda em estado natural de sobrevivência - estado esse que marcaria a forma do cinema de Alonso. Los muertos (2004; hoje, 23h), segunda longa, focar-se-ia no percurso de um ex-presidiário a entrar na paisagem selvática onde vive a filha, trilhando pelos seus caminhos para reencontrar uma família perdida, entre a vida e a incerteza da sua morte. Depois de Fantasma (2006), Alonso, 37 anos, sairia de novo da cidade para filmar Liverpool (2008; amanhã, 23h), história de um novo reencontro familiar num lugar também remoto, quase esquecido, em que as relações frágeis entre homens, mulheres e filhos.
O que leva este realizador a filmar gente simples e silenciosa? "Faço filmes porque parece-me ser uma forma de não me tornar numa pessoa pior, para sair de mim mesmo e ver como é a vida para outras pessoas e em outros lugares, para ter novas experiências que não me fechem no meu mundo", diz. A sua própria família vive fora da cidade, onde Alonso também trabalha entre filmes. "Faço um trabalho rural com ela, a nossa economia depende de terrenos no campo onde se criam vacas e se faz agricultura." Desde cedo, portanto, que deixa a capital argentina para ir ao encontro de paisagens rurais. "Foco-me sempre num lugar em particular onde vejo que gostaria de fazer um filme. Depois de decidir onde vou filmar, vou para esse lugar durante semanas e começo a ver o que as pessoas fazem. Penso em como fazer um filme com elas de maneira a que o lugar seja um protagonista", explica. "Fazer cinema é a melhor desculpa que tenho para conhecer pessoas e lugares. Sem isso, não poderia ter a experiência de estar dois meses com elas e ver qual é a maneira delas de estar no mundo."
A maneira de estar no mundo: um anseio comum a quem tem desejo de cinema, uma forma de saber olhar e estar entre os outros. Mas também um desejo solitário de quem se revê no isolamento destas vidas. "Estas histórias são as que podem acontecer a qualquer ser humano que esteja numa situação de solidão. Muito do que acontece nos filmes tem também a ver com aquilo em que o espectador está a pensar. Quando não existe muita informação, o espectador começa a criar o seu filme." É este o poder do cinema de Alonso: quando "nada" parece acontecer, tudo sobressai nos longos planos dos filmes - a natureza humana e a sua paisagem, um silêncio que faz levantar os que aí vivem e os que já morreram.
O desejo de ser livre
No cinema de Alonso, a natureza não é um cenário nem um adereço - a água existe com toda a força ou tranquilidade do seu rumo, as árvores na sua inteira presença, a neve ou a terra simplesmente por aquilo que são. A liberdade está, portanto, em filmar as coisas simples e pessoas inteiras, sem artifícios ou palavreados. "Desde o primeiro filme que me pergunto o que significa a liberdade e como é que ela se aplica às pessoas - se ela existe, de que forma somos livres e que peso isso tem. É uma pergunta à qual as personagens que filmo talvez também não saibam responder. Este foi o mundo que lhes calhou. Nós podemos ver isso como um mundo de liberdade, mas para eles é também [o facto de] não terem um outro." E enquanto cineasta, ser livre "é algo de básico: a liberdade sobre o que quero filmar, quando e com quem. Não tomo o cinema como um trabalho em que cumpro um horário todos os dias, não o vivo dessa forma. Isso tem os seus riscos, também nos afastamos do público. É o mesmo que acontece com as [minhas] personagens, parecem livres mas talvez não o sejam."Um cinema inspirado na história da vida das pessoas - algo que o próprio descobriu depois de terminar os seus estudos em cinema. "Trabalhei com um realizador argentino chamado Nicolás Sarquís, que organizava uma mostra chamada Contracampo, em Mar del Plata, Argentina. Foi o primeiro que começou a mostrar filmes de Sharunas Bartas, Tsai Ming-liang, Abbas Kiarostami, Hou Hsiao-hsien. Sentia-me representado por esse tipo de cinema." Mas a sua ligação mais forte talvez seja ao cinema português. "Para além de Miguel Gomes e Pedro Costa, gosto muito de João Nicolau e de Manoel Oliveira, João Pedro Rodrigues e João César Monteiro. Todo o cinema português tem uma energia e liberdade que é única, com realizadores selvaticamente livres. Ver um filme de João Nicolau ou de Miguel Gomes é uma fonte de energia." Essa inspiração tem-lhe trazido maior companhia no seu trabalho: "Tenho amigos no cinema da América do Sul mas sinto-me sozinho na maneira de fazer cinema e no meu gosto. Encontrei uma correspondência maior nestas pessoas." E como cantam os adeptos do Liverpool, clube e cidade que deu o nome ao seu filme mais recente, dizemos também: Lisandro Alonso, "you"ll never walk alone".