ONU traça retrato de discriminação e "racismo subtil" em Portugal
São discriminadas no sistema de justiça, vítimas de discriminação racial e de violência pela polícia. O reconhecimento como pertencendo à sociedade portuguesa e os seus contributos ao longo da história para a construção e desenvolvimento do país são insuficientes. Finalmente: são vítimas de exclusão e marginalização, e em Portugal "o racismo é sobretudo subtil".
Este é, em traços gerais, o retrato da situação das pessoas de ascendência africana que vivem em Portugal feito por peritos da Organização das Nações Unidas (ONU), a partir de uma visita ao país em Maio de 2011, e que ontem esteve a debater o relatório, agora concluído, com representantes portugueses numa sessão do Conselho de Direitos Humanos em Genebra, Suíça. Oficialmente tornado público ontem, o documento do Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD, em inglês) é criticado pelo Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI), que contesta algumas das conclusões.
O conteúdo do documento é baseado nos encontros que o grupo de peritos teve com organizações governamentais e não-governamentais, nos pontos de vista de pessoas da sociedade civil e membros das comunidades afro-portuguesas. Ao longo do documento, critica-se várias vezes o facto de não existirem dados sobre minorias étnicas e raciais que permitam tirar conclusões factuais. A missão a Portugal aconteceu durante o Ano Internacional das Pessoas de Origem Africana (2011), agora proposto passar a década.
Na reunião de ontem, onde estiveram também representados países como o Senegal, EUA, Brasil e China, Verene Shepherd, actual chefe da missão do grupo de trabalho, reiterou que, apesar dos esforços do Governo para promover a integração e combater a discriminação, os imigrantes e as minorias étnicas e raciais em Portugal são "vulneráveis à discriminação e à desigualdade". Shepherd sublinhou que Portugal não tem medidas especiais de afirmação positiva em relação às pessoas de origem africana para "combater desigualdades estruturais". Por seu lado, Portugal respondeu que não desenvolve políticas para nenhum grupo racial específico para "garantir a mesma protecção para todos" e por considerar que medidas de discriminação positivas corriam o risco de ter um efeito contrário e estimular "divisões e choques na sociedade que não existem", lê-se no comunicado de imprensa.
Hierarquia de vítimas
Ao PÚBLICO, antes da reunião, Rosário Farmhouse, dirigente do ACIDI, discordou, por email, da abordagem. "A posição portuguesa tem assentado no princípio de que o fenómeno do racismo e da discriminação racial é universal e de que, como tal, terá de existir uma abordagem universal a esta problemática, que não individualize nenhum grupo populacional." Portanto, não concorda com "uma linguagem que crie uma hierarquia de vítimas de racismo": "A situação das pessoas com origem africana deverá ser tratada num âmbito mais genérico e integrada na política geral da União Europeia contra o racismo."
Apesar de congratular o facto de as políticas de imigração portuguesas terem ficado em lugares de topo em lista de países europeus, de elogiar os diversos programas de integração de imigrantes ou o facto de a diversidade ser valorizada na sociedade portuguesa, o relatório nota que em Portugal as pessoas de origem africana não são reconhecidas como grupo étnico ou racial mas como imigrantes. "Quando fala do tratamento de pessoas de ascendência africana, o Governo refere-se à integração de estrangeiros. Não existe um reconhecimento de pessoas de ascendência africana que sejam nacionais."
Os peritos mostram ainda preocupação com a falta de reconhecimento do seu legado no passado colonial português e do seu papel. Uma das críticas ouvidas pelo grupo foi justamente o facto de na escola ser ensinada uma "versão inexacta" do passado colonial português e de se passar a ideia de que "o racismo não é um problema em Portugal". Os currículos e livros escolares não espelham a contribuição das ex-colónias nem promovem junto das crianças de origem africana o orgulho nas suas raízes, acrescentam.
Sublinham ainda o facto de o racismo ser implícito e exigir a criação de programas e instituições centradas nas pessoas de origem africana, bem como uma mudança na política oficial que se aproxima mais de uma abordagem de assimilacionismo do que de multiculturalismo.
Esta última observação é veemente contestada por Farmhouse, que diz que "tal afirmação não corresponde à verdade". "Todas as políticas desenvolvidas pelo Estado Português, muitas delas através do ACIDI, são provas cabais do contrário". Portugal, defende, é "amplamente reconhecido no plano internacional face às suas políticas de integração inclusivamente pelas Nações Unidas" - como no Relatório de Desenvolvimento Humano 2009 ou nas avaliações do Index de Políticas de Integração de Migrantes (MIPEX, na sigla inglesa). "O modelo de gestão da diversidade cultural defendido pelo Estado Português é o da interculturalidade através da promoção do diálogo intercultural e não há nada no relatório que factualmente prove o contrário, é uma conclusão sem qualquer fundamento", acrescenta.
O grupo inclui no relatório a posição de várias entidades governamentais que defendem que a política seguida é de interculturalismo, mas sublinha que "a posição oficial de não recolher dados desagregados sobre minorias étnicas e raciais foi-nos dada como prova de que a assimilação é a política oficial de inclusão".
No documento de 18 páginas são deixadas oito recomendações. Uma é que Portugal devia garantir que os assuntos ligados aos portugueses de origem africana não sejam tratados como questões de imigração. Outra é que o Governo deveria rever a sua política que impede a recolha de dados sobre minorias étnicas e raciais pois estes permitiriam analisar as suas condições de vida. Sugere-se também a criação de um sistema de cotas para "aliviar as disparidades e ultrapassar a discriminação".
O ACIDI diz que as recomendações serão analisadas.