Um país chamado cinema pela mão de João Mário Grilo

Foto
Que Viva México!, de Eisenstein, abre o programa DR

A partir de hoje e até sexta, o realizador expõe a sua visão entre cinema, realidade e paisagem na Cinemateca Portuguesa

A fase mais ardente da cinefilia é quando nos perguntamos onde estará a realidade - no mundo real em que acordamos, ou naquele que vemos numa sala de cinema, quando os olhos se abrem às sensações de um mundo reproduzido por imagens em movimento. Essa fractura leva a criarmos os nossos filmes, ou antes a caminharmos por paisagens verdadeiras e aí vermos as personagens que as habitam no cinema.

Este é o caminho proposto por um conjunto de obras a serem projectadas, esta semana (sempre às 18h), na Cinemateca, em Lisboa, escolhidas por João Mário Grilo: Que Viva México! (1931-33), de Sergei M. Eisenstein (hoje); Os Dominadores (1949), de John Ford (amanhã); Stromboli (1950), de Roberto Rossellini (dia 26); Las Hurdes (1933), de Luis Buñuel; e O Fim do Mundo (1993), do próprio João Mário Grilo (dia 27); e, por fim, O Rio Sagrado (1951), de Jean Renoir (dia 28).

"Exceptuando O Rio Sagrado [filmado na Índia], conheço todas as paisagens destes filmes. Interessou-me sempre fazer a viagem que os filmes experimentam", diz o realizador ao PÚBLICO. Para João Mário Grilo, a sua relação com o cinema passa por ver como se pega na paisagem do mundo para transformá-la no território de um filme, à imagem do seu realizador. "Como é que um cineasta pode filmar variadíssimas paisagens e estar a filmar um mesmo território? No caso de Ford, fabricou um território que é igual à paisagem: é impossível ver Monument Valley a três dimensões, é uma paisagem totalmente atravessada pelo fantasma que os filmes fizeram dela", diz-nos. "Foi um mundo que conheci na sala de cinema, era o território de um cineasta e [tornou-se no] meu próprio território. Ou, como dizia Serge Daney, "um país chamado cinema"."

O lugar do autor no mundo

A fractura entre realidade e cinema abre espaço à criação de um autor - ou seja, a possibilidade de criar um filme como testemunho da nossa forma de ver o mundo. Que Viva México!, de Eisenstein, é um exemplo: um filme não sobre o México, mas sobre a forma como um determinado autor viu a ideia desse país. "Tanto O Rio Sagrado como Que Viva México! são filmes de cineastas que estão a fugir de alguma coisa: Renoir, da experiência americana e da disciplina da indústria; Eisenstein, de Estaline", explica João Mário Grilo. "Mas fogem para encontrar um sítio onde possam continuar a filmar as suas próprias coisas."

Com o neo-realismo italiano, depois da tragédia humana da Segunda Guerra Mundial, surge uma reaproximação do cinema à realidade do mundo, acentuando também a vertigem existente entre vida e cinema. "Stromboli é um filme totalmente biográfico: o envolvimento [de Rossellini] com Ingrid Bergman, o seu isolamento. Lembro-me de sair da ilha - que é um vulcão -, regressar a partir de Messina [em Itália] e ter a sensação de que aquilo nunca existiu. Para quem viu o filme, aquela ilha nunca mais será a mesma." E a entrada do cinema nas nossas vidas assemelha-se ao caminho que a actriz fez nessa paisagem estrangeira. "A imagem emblemática do programa é Stromboli: irmos à procura do nosso próprio vulcão", diz o realizador.

Por sua vez, Las Hurdes, de Buñuel, costuma ser apresentado como um "documentário". Mas dificilmente se pode olhar aí para esta aldeia e reconhecê-la como "autêntica". "O verdadeiro território de Las Hurdes não é bem o que o filme mostra", explica João Mário Grilo. "É o filme que tem mais a ver com uma peregrinação a um sítio onde um cineasta já esteve, e esse é um caminho para o espectador fazer" - percorrer o filme para encontrar um mundo surrealista.

A noção de caminho acaba por ser uma das ideias mais fortes do próprio cinema de João Mário Grilo. Para o realizador, "há uma máxima interessante de Miguel Ângelo: "A estátua está na pedra". E o que o escultor faz é extrair algo que já lá está. Vejo o mundo nessa dimensão: quando se faz um filme, tem que se procurar o filme que já lá está." Um gesto presente em O Fim do Mundo, obra inspirada na história verídica de um homem condenado à prisão (também um percurso). "Alguém que anda e que não tem nenhum outro propósito senão esse pode ser altamente transformador. Nos filmes, o mais interessante está nesse movimento de fuga em relação ao real, um grande escape." Porque entrar no cinema "é como abrir uma estrada".

Sugerir correcção