O design brasileiro não é McDonald"s: é low-tech e slow flood. Vamos devorar
São mais de 80 peças de mobiliário e iluminação com um pé no passado modernista e outro no presente multiforme, muitas delas para descobrir pela primeira vez em Portugal. Os morros do Rio estão no Mude
Nas curvas da cadeira Praiana, de Óscar Niemeyer, vemos os morros do Rio de Janeiro. E vemo-la, uma de apenas sete exemplares existentes no mundo, ao pé do Tejo, a partir de amanhã no Museu do Design e da Moda (Mude). Na Baixa de Lisboa há também peças históricas do design de mobiliário brasileiro que há 20 anos não iam ao museu, como o banco Peixe, peça única dos irmãos Campana, que não era mostrado desde 1989. Design Brasileiro - Mobiliário Moderno e Contemporâneo fala de um século em que Niemeyer construía e o filho de um marceneiro português, Joaquim Tenreiro, mobilava (1942), em que os irmãos Campana estavam Desconfortáveis na sua exposição seminal (1989), em que Zanini de Zanine pôs Pássaros a voar como prateleiras (2008).
Se o Brasil tivesse pés, calçava Havaianas. Se o Brasil tivesse paredes, elas tinham graffiti d"Os Gêmeos. Se o Brasil se sentasse, era numa cadeira de Fernando e Humberto Campana - ou de algum dos seus "herdeiros", a geração contemporânea cujo trabalho inspiraram. Design Brasileiro - Mobiliário Moderno e Contemporâneo mostra bem a influência destes irmãos nos jovens designers que falam a língua da sustentabilidade. Os comissários da mostra, que integra a programação do Ano do Brasil em Portugal e está no Mude até 4 de Novembro, são Zanini de Zanine e Raul Schmidt Felippe Jr. e circulam com o PÚBLICO no Mude entre peças coloridas, cordas, tecidos e cartão comprimido. É tudo obra de alguns dos designers mais relevantes do mobiliário de autor made in Brasil.
África é uma cadeira de madeira, PVC e cordas, colorida como o Brasil, obra de 2006 de Rodrigo Almeida, um dos claros discípulos dos Campana e autor de um trabalho "completamente anárquico", como descreve Zanini de Zanine. Almeida trabalhou com eles e partilha uma filosofia de "reutilização, de subversão" em que matérias-primas encontram outras funções sob a mesma forma. "É uma linha de pensamento muito forte no design brasileiro" actual, confirma Zanini de Zanine, também designer. A cristalização dos crafts brasileiros em modelos de design será um dos elementos distintivos do produto brasileiro no mercado internacional, mais focado em novos polímeros, na tecnologia.
Entre mais de 80 peças de mobiliário, mas também de iluminação, estamos com um pé no passado modernista e outro no presente multiforme. Fala-se de "resgate", mas não no contexto em que alguns países europeus, Portugal obviamente incluído, usam hoje a palavra. É o resgatar da tradição artesanal, dos ícones e cores de um Brasil que agora se ama mais. "Essa geração está com uma vontade muito grande de retratar o país", explica Zanini, juiz em causa própria. Não é por acaso: o momento é bom, a economia é melhor e, ao mesmo tempo, realista. O maior desafio no trabalho dos Campana, diz Humberto Campana, "é fazer um retrato do nosso país pobre, belo e culturalmente rico".
O Brasil era bem mais pobre quando Desconfortáveis, "o grande marco" que lança o design brasileiro contemporâneo, como descreve o coleccionador Raul Schmidt, aterrou em São Paulo. Schmidt diz que Peixe "é um exemplo de uma explosão de criatividade". O trabalho posterior dos Campana viria então a influenciar "o maximalismo, uma chuva de informações, de cores" da produção actual, completa Zanini. A exposição dos Campana acontece quatro anos depois do fim da ditadura militar brasileira (1965-85), que secou grande parte da produção fulgurante e financeiramente próspera do modernismo (tardio) brasileiro de arquitectos como Niemeyer ou Paulo Mendes da Rocha - e que contaminara o design. Muitos artistas exilaram-se durante a década de 1970 e até o tropicalismo, sinónimo de Brasil, teria primeiro uma identificação no Reino Unido e só depois no país de Vinicius, Caetano ou Gilberto Gil.
Fome de design
Design Brasileiro - Mobiliário Moderno e Contemporâneo está no Mude financiada pelo Ano do Brasil em Portugal e teve uma passagem prévia e ligeiramente diferente por Berlim. A seguir, viaja para Praga. É fruto da fome coleccionista de Schmidt, que há 30 anos constrói um espólio nas artes plásticas e que desde 2010 começou a coligir mais intensamente mobiliário brasileiro da era do modernismo (desde 1940 até ao início dos anos 1970) e dos mais jovens designers. Um deles é o também comissário Zanini de Zanine, que tem a madeira e o design no sangue - filho do pioneiro José Zanine Caldas, designer e arquitecto autodidacta, colaborador de Niemeyer. A ligação arquitectura-design brasileiro é directa. "Na década de 1950, essas peças nasciam para equipar essa arquitectura", descreve Zanini de Zanine. "As peças de Niemeyer [como a Praiana] falam muito com a proposta de trabalho dele", explica, apontando para a cadeira negra ondulada como os edifícios do centenário arquitecto, "assim como o trabalho de Paulo Mendes da Rocha", cujo design de mobiliário também integra a exposição. "A arquitectura é o berço do mobiliário no modernismo", resume.
Esse berço bem podia ser de madeira. Os interiores do brutalismo e do modernismo enchiam-se de madeira, matéria-prima tão abundante e variada no Brasil que foi trabalhada até à exaustão das espécies. "Na década de 1950 praticamente 80% do mobiliário brasileiro era baseado no uso da madeira. O meu pai tinha uma arquitectura muito diferente, as peças são de madeira porque as casas eram de madeira", ressalva Zanini de Zanine.
Olhamos pelo piso 1 do Mude e lá está ela. Primeiro, a imponente madeira escura com uma rede para as tardes de Verão de José Zanine Caldas; depois o jacarandá ou a itaúba dos modernos; por fim, as madeiras de demolição recuperadas de velhos caminhos-de-ferro ou de soalhos de tábua corrida, agora cadeiras como Astúrias, de Carlos Motta (mais um designer-arquitecto), um dos contemporâneos. Cópias de Milão.
É o Ano do Brasil em Portugal, mas podíamos dizer que é mais um ano do Brasil no mundo, em alta crescente. E o país tem a "auto-estima mais à flor da pele", sorri Zanini de Zanine, sem esquecer os imigrantes que, enquanto jovem país, contribuíram para o design que agora vemos em Lisboa. Entre eles, Joaquim Tenreiro, português.
O filho de um marceneiro foi um dos pioneiros do design de mobiliário brasileiro e uma espécie de embaixador não oficial do modernismo no Brasil. Traçou peças límpidas (defendia a "leveza da forma"), como a mesa de cinco madeiras que é exposta pela primeira vez nesta mostra ou como a elegantíssima cadeira Três Pernas (1947). Outro assento bem mais relaxado é a poltrona Mole (1957), de Sérgio Rodrigues, um dos grandes impulsionadores da internacionalização do design brasileiro pelo prémio que a Mole venceu num salão de mobiliário em Itália em 1961. Durante décadas, "todas as casas brasileiras tinham uma", nota Zanini.
O prémio italiano de Sérgio Rodrigues pôs o Brasil no mapa. Mas 20 anos depois, os brasileiros eram persona non grata nessa cartografia. "O brasileiro era muito mal recebido em Milão [epicentro do design de produto e base do Salone del Mobile, o mais importante evento anual do sector], porque a cultura do Brasil do final dos anos 1980/90 era de cópia - eles iam, copiavam de Milão e voltavam", recorda Zanini. Algo que acontecia noutras áreas do design, como a moda, em parte fruto do proteccionismo mercantil brasileiro de então, motivado pela crise, e da circulação mais lenta da informação na era pré-digital.
Agora, os curadores falam-nos do boom de popularidade das artes plásticas, de reservas de petróleo, de certificação de madeiras e de descentralização, do eixo São Paulo-Rio abandonado pelo design local, Brasil fora. Maria Helena Estrada, crítica de design brasileira e curadora, escreve num texto para a passagem de Design Brasileiro... por Berlim que "o design contemporâneo [do Brasil] só começou a ser consistente na viragem do milénio. Nas nossas peculiaridades, os valores inexplorados do Brasil renasceram". Uma grande parte do design brasileiro, generalizemos, não quer ser McDonald"s, quer ser low-tech, slow food.
Hoje, o cenário é este: no mercado de coleccionismo, as peças dos modernos brasileiros estão mais caras, em Milão os brasileiros já são recebidos como originais que "viram tendência", diz Zanini de Zanine. Vive-se, diz Maria Helena Estrada, "um design de possibilidades".