Um comunista no céu e na história

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Santiago Carrillo, Jordi Pujol e Felipe González, em Lisboa, em 1998 DOMINIQUE FAGET/AFP

O percurso de Santiago Carrillo, revolucionário desde a infância, actor da Guerra Civil, estalinista secretário-geral do Partido Comunista Espanhol e, por fim, artífice do pacto de reconciliação nacional, acompanha dois terços do século XX. Quem os espanhóis homenageiam é o último Carrillo, o da Transição

Os espanhóis são sempre excessivos na liturgia histórica. Só os que conhecem o fratricídio da Guerra Civil (1936-39) e as vicissitudes da Transição (1976-78) podem compreender a dimensão da homenagem ao antigo líder comunista Santiago Carrillo. O rei Juan Carlos e a rainha Sofia foram imediatamente à casa de Madrid onde Carrilho morreu aos 97 anos, na terça-feira, a fazer a sesta.

A mais enfática oração fúnebre foi ontem escrita no diário El País por Rodolfo Martin Villa, o ministro do Interior que, em Dezembro de 1976, prendeu Carrillo. "Senhor, decidiste que o teu filho Santiago, que tanto e tão bem trabalhou na Transição para que a Espanha fosse um reino para todos, nos deixasse. Quero pedir-te que o recebas no reino dos céus, que creio firmemente ser um reino de todos e, para mais, de iguais. Porque esse reino de igualdade assenta muito bem a um veterano comunista que, nos seus discursos parlamentares, era quem mais invocava o teu santo nome e nunca em vão, porque Santiago nunca dava ponto sem nó."

O que Villa pede é que os espanhóis transformem a morte de Carrillo numa confirmação da "reconciliação nacional". A jornalista Soledad Gallego-Díaz resume a ideia também enfaticamente: "A intervenção de Santiago Carrillo teve consequências transcendentes para este país. Sem ele, sem a sua decisão de reorientar a resistência antifranquista para a reconciliação, (...) a história recente da Espanha seria diferente e pior."

Carrillo não foi a personagem central da Transição. Houve o rei, houve Adolfo Suárez, houve Felipe González, houve veteranos generais franquistas, como Gutierrez Mellado, ou religiosos como o cardeal Vicente Tarancón. Mas o papel de Carrillo foi único e, no fundo, por uma razão simples - como actor da Guerra Civil, tinha legitimidade para a "enterrar".

O revolucionário

Santiago Carrillo Solares nasceu nas Astúrias em 1915. Filho de um sindicalista socialista, começa a militar no Partido Socialista (PSOE) aos 13 anos. Em 1934, líder das Juventudes Socialistas, participa na preparação da fracassada "revolução das Astúrias" desse ano. É preso e amnistiado em 1936, após a vitória eleitoral da Frente Popular. Discípulo de Largo Caballero, o líder da esquerda socialista a quem chamavam o "Lenine espanhol", Carrillo promove a fusão das Juventudes Socialistas e Comunistas.

Visita Moscovo e tem a "iluminação que guiará a sua vida", lembra o historiador Santos Juliá. "Perante a visão de destacamentos operários a desfilar de espingarda ao ombro, Santiago exclamou: "É isto o que quero!" Nascia um bolchevique.

Estala a rebelião franquista. Em Novembro de 1936, quando os rebeldes chegam às portas de Madrid, Carrillo filia-se no Partido Comunista de Espanha (PCE). O Governo republicano transfere-se para Valência e forma-se uma Junta de Defesa de Madrid, chefiada pelo general José Miaja, em que Carrillo é responsável pela Ordem Pública: a sua tarefa é eliminar a "quinta coluna" rebelde, sobretudo militares, cuja sublevação a Junta temia.

É o responsável pelas cadeias quando se dá o mais terrível massacre acontecido em território republicano: a "matanza de Paracuellos". Mais de 2000 presos, quase todos militares, são fuzilados em massa nos arredores de Madrid. Carrillo negará mais tarde qualquer responsabilidade pessoal no massacre - mas "nunca ofereceu um relato convincente", anota Juliá.

Limitou-se a dizer: "Não procuro justificações nem atenuantes. Em Novembro de 1936, eu, Miaja e toda a Junta de Defesa encontrávamo-nos no meio de uma situação dificilmente controlável e que não conseguimos controlar em muitos aspectos." O que também é verdade. Matava-se implacavelmente em ambos os campos.

O estalinista

Perdida a guerra e instaurada a ditadura de Franco, começa para Carrillo um exílio de 37 anos, que o levará a Moscovo e, por fim, a França. Em 1942, Dolores Ibárruri, "La Pasionaria", assume a direcção do partido e impulsiona a carreira do jovem Santiago, membro do comité central desde 1937 e em breve responsável pela organização do interior. Por entre oscilações, arbitradas por Moscovo, Carrillo ordena o fim das infiltrações guerrilheiras que se saldaram em sangrentos desastres. Propõe, de acordo com Moscovo, uma política de "infiltração" nos sindicatos verticais franquistas.

Em 1955, publica um artigo de defesa de uma política de "reconciliação nacional". A direcção condena o artigo e Carrillo terá estado prestes a ser expulso. A viragem de Khrutchov tê-lo-á salvo. Dolores Ibárruri demite-se em 1959 - diz-se que empurrada por Carrillo, que em 1960 se torna secretário-geral. "La Pasionaria" passa a presidente.

O PCE conheceu os seus "processos de Moscovo". Houve dirigentes assassinados e difamados. O escritor e antigo comunista Jorge Semprún denunciou um desses casos, o de Gabriel Trilla, apunhalado em Madrid, onde vivia na clandestinidade, por um enviado do PCE (El País, 23 de Abril de 1980). Numa entrevista ao El País (9.1.2005), Carrillo assume parte da responsabilidade neste "período sinistro", inclusive na "eliminação de pessoas" em nome dos imperativos da clandestinidade: "Era uma questão de sobrevivência porque estava em jogo também a vida de muitos militantes."

Em 1964, dois dirigentes, Jorge Semprún e Fernando Claudin, exigiram democracia interna e puseram em causa a estratégia do PCE: a morte de Franco não levaria a uma ruptura revolucionária, deveria ser uma transição democrática. São expulsos, acusados de fraccionismo, direitismo, revisionismo e "uma assombrosa vulgaridade reformista". Mantiveram, no entanto, as relações pessoais com Carrillo.

Em breve o secretário-geral recuperará as teses "reformistas", no plano internacional e em relação a Espanha. Em 1968, desafia Moscovo e condena a invasão da Checoslováquia. Procura estabelecer um eixo com os comunistas franceses e italianos para lançar o modelo de socialismo reconciliado com o pluralismo político e rompendo com o modelo soviético. Em 1972, propõe um Pacto pela Liberdade entre todas as forças do espectro político espanhol para derrubar a ditadura e reconciliar os espanhóis.

Franco morre em Novembro de 1975. Em Dezembro, Juan Carlos é coroado rei. Em Julho de 1976, nomeia Adolfo Suárez presidente do governo. Vai começar a Transição.

A questão do regime

Carrillo reentrara em Espanha, com passaporte falso, sem óculos e com uma peruca fabricada pelo barbeiro de Picasso, a 6 de Fevereiro. A operação foi organizada pelo seu amigo Teodulfo Laginero, advogado, empresário e comunista.

Joga a grande cartada no dia 9 de Dezembro, organizando uma conferência de imprensa perante 50 jornalistas e fotógrafos estupefactos. A convocatória, feita na véspera, era vaga e não indicava local. Os jornalistas foram transportados por militantes do PCE com todos os cuidados conspirativos. Foi uma bomba.

Disse Carrillo aos jornalistas: "Todo o mundo sabe que nós não aprovamos a forma como o rei ocupou o trono. Mas o rei está lá. É uma realidade. Estaria disposto a encontrar-me com ele para lhe explicar a posição do partido e, se a maioria do povo se pronunciar por uma monarquia constitucional e parlamentar, os comunistas acatarão como sempre a sentença do povo espanhol." Preveniu que o PCE não poderia ser marginalizado e deveria participar nas eleições.

Era uma declaração decisiva sobre o regime: no congresso do PSOE, acabado de realizar, a moderação de Felipe González não fazia a unanimidade. A assistência gritava: "España, mañana, será republicana!"

A estratégia de Carrillo assentava em dois delicados pilares: por um lado, demonstrar a força do PCE e, por outro, desfazer a ideia de que este poderia constituir uma ameaça. Disse a propósito do seu discreto regresso: "Imaginem o que seria chamar as pessoas à rua com bandeiras vermelhas e a cantar a Internacional."

Suárez e Carrillo já tinham feito os primeiros e discretos contactos através do advogado José Mario Armero. Mas o chefe do Governo não estava ao corrente da operação. Apanhado de surpresa - e com a polícia ridicularizada - abria-se uma nova fase no jogo: deter rapidamente Carrillo. No fundo, era o que a ambos interessava. A polícia de Martin Villa consegue detê-lo, em Madrid, a 22 de Dezembro. A imediata preocupação da polícia foi escondê-lo da extrema-direita. Será libertado no dia 30, em virtude da lei de amnistia.

A 27 de Fevereiro de 1977, Adolfo Suárez e Santiago Carrillo têm um longo encontro secreto numa vivenda dos arredores de Madrid, em que discutem a legalização do PCE e as condições de avanço da transição.

A Espanha de então era um foco de tensão e violência, de atentados e raptos, de extrema-direita e de extrema-esquerda, que poderiam a qualquer momento fazer derrapar o processo. A 24 de Janeiro, cinco pessoas de um escritório de advogados sindicais comunistas tinham sido assassinadas: foi a "matanza de Atocha". Uma multidão acompanhou o enterro, mas em silêncio.

O Partido Comunista foi legalizado a 9 de Abril desse ano, sábado santo, com o país de férias. Houve nos meios militares reacções furiosas mas inconsequentes. Carrillo, a "besta negra do franquismo", passava a ser um político institucional. A Espanha virava uma página. As primeiras eleições livres desde 1936 realizaram-se a 15 de Junho. Foram uma decepção para o PCE, que apenas obteve 20 deputados. Mas esta é outra história - a de Felipe González, que passará a hegemonizar a esquerda.

O homem do pacto

O papel de Santiago Carrillo era outro. E é bem ilustrado por uma história que contou na entrevista acima citada. Na tarde de 23 de Fevereiro de 1982, um tenente-coronel da Guarda Civil, Antonio Tejero, invadiu o Congresso (Parlamento), numa tentativa fracassada de golpe de Estado. Disparou e ordenou aos deputados que se deitassem no chão. Houve três pessoas que permaneceram de pé: Carrillo, Suárez e o general Gutierrez Mellado, vice-presidente do Governo, que enfrentou Tejero e foi agredido.

O general sentou-se depois ao lado do comunista. "Nunca poderei esquecer aquela noite junto de Gutierrez Mellado", diz Carrillo. "Senti-me muito próximo dele em muitas coisas. Pensava: o que é a vida! Porque em 1936, este general era um dos chefes da Quinta Coluna e eu era o conselheiro de Ordem Pública em Madrid, que tinha a missão de lutar contra a Quinta Coluna. Nesse momento éramos inimigos de morte. E pensava: agora, estamos aqui, juntos e, no pior dos casos, vamos morrer juntos esta noite."

Só os antigos inimigos se podem reconciliar. Carrillo foi o grande artífice deste pacto. Sem ele, Juan Carlos e Suárez teriam tido muito mais dificuldades. Também personagens como Semprún ou Claudin não o poderiam ter substituído naquele papel, porque não arrastavam o estigma da guerra civil. Por isso a Espanha homenageia o actor que teve a coragem de fazer o seu papel.

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