Os circuitos cerebrais resultam de encontros acidentais entre neurónios
O que é que rege as ligações entre neurónios? Por que é que estas células estabelecem comunicações com algumas das suas congéneres, mas não com outras? Cientistas têm uma nova e surpreendente explicação
Um cérebro humano contém à volta de cem mil milhões de células nervosas e um número ainda muito maior de ligações, ou sinapses, que ligam essas células e lhes permitem comunicar entre si. E um dos grandes desafios das neurociências actuais é mapear essa intricadíssima cablagem - o já célebre conectoma -, que faz do nosso cérebro o mais complexo órgão que se conhece. Mas, para isso, é preciso desvendar as regras que governam o estabelecimento das sinapses entre neurónios - saber o que leva cada neurónio, no cérebro em formação, a ligar-se efectivamente com uma série de congéneres, mas não com todos.
Sabe-se que a construção dos circuitos cerebrais é guiada em particular por sinais químicos específicos entre neurónios, uma espécie de sistema de "cheiros" que faz com que dois neurónios se atraiam ou se repelem. Mas, agora, surpreendentes resultados publicados na revista Proceedings of the National Academy of Sciences sugerem que essa é apenas uma pequena parte da história. Henry Markram e colegas, da Escola Politécnica Federal de Lausanne (EPFL), concluem que o essencial da construção do incrível emaranhado de ligações neuronais que temos na cabeça se deve, ao que tudo indica, a... uma série de encontros acidentais entre neurónios.
"O que nós descobrimos é que a regra de base do estabelecimento de sinapses entre neurónios é muito simples", diz Markram numa entrevista no site da EPFL. "Pensamos que os neurónios crescem da forma mais independente possível uns dos outros e que formam sinapses essencialmente nos locais onde, acidentalmente, colidem entre si", salienta.
Estes cientistas estavam à procura de regras que lhes permitissem determinar a localização das sinapses porque estão a desenvolver, desde 2005, um projecto baptizado Blue Brain, cujo derradeiro objectivo é simular um cérebro humano realista num computador.
Neste seu mais recente trabalho, utilizaram 20 anos de resultados experimentais baseados em amostras de córtex cerebral de ratinhos para, por um lado, obter modelos 3D de todos os tipos de neurónios presentes nesses tecidos e, por outro, ver onde se formavam as sinapses nesses circuitos reais.
A seguir, criaram um modelo virtual do circuito cerebral do ratinho. "Pusemos todos esses modelos de células num espaço 3D virtual e utilizámos um algoritmo e um supercomputador Blue Gene da IBM para determinar onde é que os neurónios se cruzavam entre si", frisa Markram. Era lógico, numa primeira aproximação, supor que as sinapses só se pudessem formar nesses cruzamentos.
Mas aquilo de que os cientistas não estavam mesmo à espera, ao compararem o mapa das sinapses "acidentais" gerado pelo computador com o das sinapses reais nas amostras de tecidos, era de descobrir que esses dois mapas fossem tão semelhantes. "Tirando algumas excepções, que também podemos tomar em conta no modelo, conseguimos prever a localização das sinapses", diz o cientista.
Mas então, se não é um sinal químico que determina se um neurónio se vai ou não ligar a outro, o que é? É a própria forma do neurónio, afirma. "Os neurónios só "sabem" qual a forma que vão ter e, quando crescem todos juntos, fazem o que devem quando acidentalmente se encontram", salienta o investigador. Sem recorrerem a quaisquer sinais químicos; basta deixar os neurónios virtuais desenvolver a morfologia certa e tudo corre como na realidade em 75 a 95% dos casos.
Os resultados também permitem explicar por que é que o cérebro pode recuperar a seguir a uma lesão. "Esta maneira de posicionar as sinapses é muito robusta, permite a perda de muitos neurónios", diz Markram. E também por que é que dois cérebros da mesma espécie são tão parecidos entre si. "A diversidade morfológica dos neurónios de cada espécie faz com que os circuitos cerebrais dessa espécie sejam basicamente iguais de um indivíduo para outro", salienta.
A confirmarem-se, lê-se na revista New Scientist, os resultados também poderão ajudar a perceber a origem de doenças tais como a esquizofrenia, que se pensa serem devidas a falhas na cablagem cerebral. "Os neurónios com malformações, que não se ligam correctamente aos outros, poderiam ser um factor nestas doenças", explica aquela publicação.
Para além da surpresa do resultado em si, esta foi uma muito boa notícia para o projecto de simulação do cérebro humano em que a equipa está envolvida, na medida em que torna o mapeamento do cérebro muito mais fácil. "Se não fosse assim", diz Markram, "poderia levar décadas, para não dizer séculos, a mapear a localização de cada sinapse no cérebro. Isto aumenta enormemente a nossa capacidade de construir modelos realistas".
O projecto Blue Brain, coordenado por Markram, foi fundado por um grupo internacional de 13 instituições, entre as quais o Instituto Sanger do Wellcome Trust (Reino Unido), Instituto Karolinska (Suécia), Instituto Pasteur (França), Universidade Politécnica de Madrid (Espanha), Universidade Hebraica (Israel) e Universidade Técnica de Munique (Alemanha). Até ao final deste ano, este consórcio - que reúne cerca de 150 equipas científicas, três das quais portuguesas (da Fundação Champalimaud, da Universidade de Coimbra e da Universidade do Minho) - deverá saber se o seu projecto, que apresentou no ano passado no âmbito da iniciativa Tecnologias Futuras e Emergentes (FET) da União Europeia, irá receber um financiamento de 100 milhões de euros por ano durante dez anos para construir um "modelo de silício" do nosso cérebro.