Orgasmo, conexões neuronais, cultura e Freud

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Paul Stuart/

Vagina é o novo livro de Naomi Wolf. Quando a escritora feminista reparou que o sexo se tinha tornado menos agradável para ela, lançou-se numa inesperada viagem de descoberta, não só do seu próprio corpo mas também de como a linguagem sexista pode destruir a vida das mulheres

Há mais de 20 anos que Naomi Wolf é uma das mais famosas feministas do mundo - e ela própria admite que tem um trabalho bastante estranho. Quando escreveu O Mito da Beleza, em 1991, tinha 27 anos, estava matriculada no doutoramento e não planeava fazer carreira no campo da crítica feminista. "Não é um emprego que alguém tivesse descrito como uma possibilidade", diz, rindo-se. O sucesso desse livro, e as críticas que atraiu, lançou-a como uma figura de algum peso cultural - parte académica pop (só agora está a terminar o seu doutoramento), parte opinadora e, mais recentemente, parte activista dos direitos civis no movimento Occupy. Não é por acaso que tem um ar à Joana D"Arc: em geral, as feministas com maior exposição pública não atraem o correio de fãs mais saudável. "Sem dúvida", responde Wolf à pergunta sobre se, quando escreve sobre mulheres, tem uma taxa maior de reacções violentas. "E então?"

Estamos em Nova Iorque, onde Wolf vive com os seus dois filhos e trabalha entre coisas relacionadas com o seu doutoramento em Oxford. O seu novo livro, Vagina, está a atrair muita atenção, muito por causa do título - uma engenhosa forma de marketing que não hesitou usar porque, diz, "essa palavra ou é tão tabu, ou está rodeada de conotações negativas, ou envolta em vergonha, ou é transformada em algo clínico, e é muito importante voltar a reclamá-la". O livro é em parte memórias, em parte história cultural e em parte viagem científica em torno da sexualidade feminina. Os melhores elementos são aqueles que iluminam quão pouco sabem as mulheres sobre a sua anatomia - é uma espécie de manual sexual cerebral - e os piores aqueles que cedem ao jargão académico que Wolf tanto aprecia, que tem de ser bem espremido para se lhe extrair algum significado. (Um exemplo: "... nem esta negação do paradoxo da nossa autonomia feminina que coexiste inquietamente com a nossa necessidade feminina de interdependência...")

Aquilo em que consiste a "alma feminina" é bastante discutível. Recordando um passeio que deu com um grupo de mulheres cientistas, Wolf conta "aquele momento ligeiramente selvagem, ligeiramente inexplicável - quando o vento, a erva e os animais pareciam todos parte do que estávamos a aprender sobre nós". É este tipo de momentos que, ao longo dos anos, tem contribuído para uma vaga sensação de que Wolf, por mais boas intenções que tenha, também diz algumas patetices.

É o que se passa com Vagina, uma nobre tarefa que visa libertar o prazer sexual das mulheres de milénios de bagagem cultural, localizando-o no campo do facto científico - nas suas palavras, um "espantoso conjunto de descobertas; esta ciência profética, incrível para mim". Tudo começou com um problema que Wolf estava a ter na sua própria vida sexual: a qualidade dos seus orgasmos subitamente mudou - passaram de uma experiência cheia de luz e cores, algo que descreve em termos transcendentais, para algo enfadonho e sem vida. Foi ao "homem dos nervos pélvicos de Nova Iorque", o que lhe exigiu alguma presença de espírito. No seu lugar, muitas pessoas teriam ido a um psicoterapeuta.

"Não sou assim tão doida", diz. "Sabia que havia algo fisicamente errado. Era físico. Era uma experiência física."

Wolf tinha toda a razão. O médico diagnosticou-lhe uma forma leve de spina bífida e disse-lhe que a sua coluna vertebral, que estava desalinhada, estava a comprimirum ramo do seu nervo pélvico. Ele explicou-lhe então a ciência do orgasmo: os impulsos do nervo pélvico viajam até ao "cérebro feminino" ou, como resume no livro, "como os genitais se ligam à espinal medula inferior, que por seu turno faz a ligação ao cérebro". Isso explicava porque é que ela sofria de uma falta de reacção psíquica, tal como física, durante o sexo.

"Quase caí da ponta da marquesa de tão espantada", escreve. "É isso que explica os orgasmos vaginais vs. orgasmos clitorianos? Ligações neurológicas? Não a cultura, não a forma como fomos criados, não o patriarcado, não o feminismo, não Freud?" E prossegue: "Nunca tinha lido que a forma como melhor atingimos o orgasmo, como mulheres, se devia em muito às ligações neuronais básicas."

Wolf submeteu-se a uma cirurgia para colocar uma placa metálica nas costas, depois da qual, felizmente, tudo está bem. Mas agora tem um novo e profundo conhecimento da forma como a vagina, na sua até agora pouco publicitada ligação ao cérebro, "medeia a consciência".

Haverá muitas mulheres (e homens) para quem isto não será propriamente uma revelação, não porque seja de conhecimento geral, mas porque parece que todas as semanas sai um novo livro que atribui os mais variados estados de alma e comportamentos - o amor, a felicidade, a raiva, o vício - à química cerebral ou às conexões neuronais, acompanhado por informações saídas de um scanner e de uma série de ratinhos de laboratório desmoralizados. O sentido da vida parece muito bem estar nas neurociências. E então?

Bom, diz Wolf, a sua missão com este livro era "livrar-se daquela camada extra de vergonha, ignorância, confusão e culpa por coisas que a evolução ou a anatomia construíram". Já que as feministas - e as antifeministas - de outrora passaram tanto tempo a digladiar-se quanto à política do orgasmo das mulheres, é útil ter os conhecimentos básicos da fisiologia. "Freud estava errado e Shere Hite não tinha a informação toda, e as feministas que nos anos 1970 fizeram um cavalo de batalha para que o clítoris fosse uma prioridade em vez da vagina dispararam ao lado, porque cada mulher tem ligações diferentes", diz Wolf. "Por que é que não nos disseram isto no 8.º ano? Ninguém nos disse. Toda esta revelação sobre o sistema nervoso e quão complexo ele é, além da sua relação com a coluna vertebral e com o cérebro, foi absolutamente nova para mim. Mudou toda a minha forma de pensar em como estamos articulados."

O que está muito bem e é sensato. Mas Wolf tira a política da equação, depois volta a introduzi-la. Parte da sua investigação gira em torno das várias hormonas e neurotransmissores activados no corpo de uma mulher durante um encontro sexual "bem sucedido", como a dopamina, "que aumenta a construção química da confiança, motivação, foco, todas estas qualidades feministas. Perseguir objectivos. Ser assertiva".

No livro, escreve, "a dopamina é "o" químico feminista no cérebro das mulheres", uma frase que parece ter saído da boca de um relações públicas e que convive desconfortavelmente com a linguagem científica da obra. Já a oxitocina é "o superpoder emocional das mulheres". A vagina é "não só co-extensiva em relação ao cérebro feminino mas também é parte da alma feminina". E, finalmente, "se a feminilidade residisse em algum lugar", escreve Wolf, "diria que mora ali, naquela rede eléctrica interior que se estende da pélvis até ao cérebro".

É o tipo de linguagem que faz os cientistas gritar. Questiono-me se ela hesitou em usar termos como "alma"?

"Está a focar-se exactamente nas partes do livro que envolveram maior cuidado, mas também maiores dificuldades", diz. "Sei que é arriscado invocar essa dimensão ou mesmo esse discurso. E é por isso que tive tanto cuidado ao defini-la de forma tão precisa. Há um silogismo linear no livro. Não uso essa linguagem sem a basear detalhadamente no campo do físico. William James disse que há experiências transcendentais, que muitas pessoas têm, e apurou isso a partir de muitas entrevistas que fez. E vários neurocientistas têm vindo a cartografar onde a transcendência acontece no cérebro. Uma das minhas frases favoritas sobre o livro é a de um médico a quem pedi que lesse o manuscrito e que, quando eu dizia algo como "sabe, estamos só a falar de estados de consciência", disse que a única forma que temos de experienciar estados de consciência é no [campo do] físico, o que não os torna menos reais."

O tipo de estados de consciência sobre os quais Wolf escreve eram condenados por muitas mulheres activistas nos anos 1970, quando a escritora crescia com os seus pais, académicos, em São Francisco, por não serem feministas. Estar apaixonado, com as suas sensações de "ânsia, dependência, necessidade", como descreve Wolf, era considerado uma sabotagem da independência feminina. "O discurso que herdei", diz Wolf, "era do tipo "mantém [esses sentimentos] à distância, não os reconheças, são vergonhosos, são fraquezas". Sempre senti que isso era entrar numa visão da natureza humana que é sexista ou tradicionalmente masculina. E, pensei, se as mulheres sentem estas coisas de forma tão regular, não basta dizer que é só masoquismo."

Esses eram os tempos do "uma-mulher-precisa-tanto-de-um-homem-como-um-peixe-precisa-de-uma-bicicleta" e desde então o feminismo mudou. Ainda assim, existirão críticos feministas que lêem o seu livro e ficam alarmados com o seu essencialismo, que considerarão os seus esforços para encontrar uma definição neurológica da "feminilidade" - algo que há anos defendem que é sobretudo uma construção cultural - redutores e reaccionários.

"Percebo. E conheço essas escolas de análise e são muito, muito úteis em termos conceptuais, e no trabalho com a literatura e a filosofia. Mas estão constantemente a ser desafiadas pelo que se passa nos laboratórios. Eu vi ratinhos - os ratos não teorizam sobre a sua existência - a comportar-se como fêmeas, sabe? E, uma vez mais, há espaço para muitos, muitos tipos de discurso no feminismo."

O que nos leva a um... "cuntini". Uma das coisas interessantes analisadas por Wolf é a forma como a linguagem sexualizada é usada para desmoralizar as mulheres que atingem o poder em mundos dominados pelos homens. A maioria das mulheres sabe-o por experiência própria: o insulto sexual é a forma mais rápida e mais comum de as minar e os homens, seja online, seja na rua, estão sempre a usá-lo. De certeza que Wolf já se deparou com toneladas deles. Mas há uma cena no livro que sugere que ela entrou num território onde o resto das pessoas terá dificuldades em segui-la. Com o tom pelo qual é conhecida, mais de mágoa do que de raiva, Wolf conta como o seu amigo Alan decidiu fazer-lhe uma festa para celebrar ter arranjado uma editora para Vagina. Alan disse-lhe, como piada, que ia fazer pasta em forma de vagina, o que cumpriu. Quando, em frente aos convidados, ele se referiu à massa como "cuntini" [uma agregação das palavras "cunt", uma das mais ofensivas/fortes formas de calão para vagina, e uma terminação italiana típica da identificação dos tipos de massa], Wolf ficou tão horrorizada, tão traumatizada pela sua linguagem, que, escreve, teve um bloqueio de escritor durante seis meses.

Sabemos que "não sejas tão séria, amor" é a resposta misógina mais básica perante protestos de uma mulher contra uma forma de agressão masculina. Mas esta parece uma reacção extraordinária a uma...

"Festa?", diz Wolf.

Sim.

"Quer dizer.. não sei. Não tenho a certeza de qual é a sua pergunta?..."

É difícil compreender como é que pode ter tido tal reacção a uma piada fraquita, mas que não é assim tão má.

"Bem, é uma boa pergunta." Na verdade, ela parece achar tudo menos que esta é uma boa pergunta. "Sabe, nunca compreendemos tudo sobre as nossas insuficiências e incapacidades, mas sei que estava nervosa [quanto ao livro]. Já não estou, porque um número suficiente de leitores já disse que ele é valioso para eles. Mas nessa altura ainda não tinha escrito o livro e estava assustada com o tabu que o rodeia. E assustada que pudesse gerar uma reacção adversa bastante pública; que fosse castigada."

Ela refere a legislação sobre as doenças contagiosas impostos na Inglaterra do século XIX, que permitiam ao Estado reunir as prostitutas e as mulheres que se pensava serem promíscuas para serem submetidas a testes obrigatórios de doenças venéreas e, depois, serem presas. "O que, acredite ou não, penso que na verdade é um grande trauma na psique das mulheres ocidentais - "Oh meu deus, se sou sexual ou se reclamo a minha sexualidade de alguma forma, vai acontecer-me algo terrível". Durante algum tempo, milhares de mulheres eram caçadas por serem abertamente sexuais e eram encarceradas por períodos até aos nove meses. E acho que há coisas como esta, momentos culturalmente traumáticos, que são herdados pelas gerações seguintes."

"Por isso, era assustador pensar que ia escrever este livro e pôr lá o meu nome e lançá-lo e acontecer alguma coisa terrível. Por isso, quando no meu círculo [de amigos e conhecidos] houve esta coisa humilhante em público [os "cuntini"], não sei se houve uma reacção causa/efeito e se foi por isso que não conseguia escrever, mas sei que não consegui escrever durante algum tempo depois daquilo. Mais uma vez, são ligações muito intuitivas. Por isso não posso dizer que foi isso que me silenciou. Mas reforçou a ideia de que algo mau ia acontecer."

Não é que isto não seja credível, mas Wolf aparentemente não ouve a forma como soa aquilo que diz. É o mesmo tipo de surdez que se encontra na forma como descreveu um homem de Chalk Farm, a norte de Londres, a quem ela dá grande importância, um "trabalhador do corpo" que tenta, através de massagens, voltar a despertar mulheres sexualmente traumatizadas e que, como Wolf relata sem se desmanchar, viu uma imagem da Virgem Maria numa vagina.

Agora que está a trabalhar sobre temas ligados aos direitos civis, a vida tornou-se ligeiramente mais fácil. Tem muitos seguidores, com menos malucos no grupo. Depois de ter sido presa no ano passado durante um protesto do movimento Occupy em Nova Iorque, Wolf viu-se de repente como uma heroína aos olhos do público. (Ela estava a informar os manifestantes dos seus direitos legais a manifestar-se pacificamente, sem que fossem cercados e detidos pela polícia, que a prendeu.) Foi, diz, uma experiência assustadora. "Levaram-nos da esquadra, onde os nossos advogados estavam à espera, para um local não identificado do outro lado da cidade, onde ninguém sabia onde estávamos. Podíamos apanhar 15 dias na prisão de Rikers Island, um lugar muito violento, se nos considerassem culpados. Onde não há hipótese. Acho que toda a gente no Reino Unido e nos EUA devia estar muito preocupado com a protecção dos procedimentos legais de acordo com as regras."

Neste campo, está profundamente desiludida com Obama. "Oh, meu Deus. Ele acusa informadores, mantém Guantánamo aberta, permitiu que o Departamento de Segurança Interna instalasse equipamento militar nas esquadras de polícia de todo o país, que depois foi usado contra os manifestantes. Tem sido pior do que Bush no que toca às liberdades civis."

Ainda consegue votar nele? "Tento não dizer em quem vou votar porque tento não dar o meu apoio a nenhum candidato." Mas, diz, "pessoas como [David] Cameron e Obama e Romney são, de certa forma... diferenças menores".

Vai continuar a fazer campanha, através do seu jornalismo, da sua defesa de causas e do seu site de "defesa/construção da democracia". Entretanto, Vagina provavelmente causará alguma agitação nos sítios onde tudo causa agitação; algumas livrarias recusarão pô-lo na montra e Wolf reforçará a sua certeza, como tem de ser, do seu poder de quebrar de tabus.

Exclusivo PÚBLICO/ The Observer/ The Interview People

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