Herta Müller "Quando vejo o papel em branco, o Prémio Nobel diz-me adeus"

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Herta Müller diz que a literatura pode ajudar a manter a liberdade ameaçada pela condição financeira da Europa Pedro Cunha

Quando se senta a escrever, a Nobel da Literatura 2009 também vê a folha em branco. A escritora romena exilada na Alemanha está em Lisboa a apresentar um romance e uma exposição sobre a sua vida

Herta Müller não anda de bicicleta. Apesar de essa ser uma das boas recordações que a Prémio Nobel da Literatura 2009 tem da aldeia romena da sua infância. "Uma vez tive um "acidente" numa bicicleta com um camião e fui catapultada pelo ar", contou ontem na conferência de imprensa que deu na Biblioteca Camões, em Lisboa, onde pode ser visitada até ao dia 28 a exposição O Círculo Vicioso das Palavras, que documenta a sua vida, desde a infância na Roménia ao exílio, em 1987, na Alemanha e vai até à atribuição, em 2009, do Prémio Nobel da Literatura.

A escritora romena de língua alemã fez parte de um grupo de autores contestatários do regime de Ceausescu intitulado Banat e perdeu o seu emprego como tradutora numa fábrica de máquinas por se ter recusado a colaborar com a polícia secreta do regime, a Securitate. Nas várias vezes que foi interrogada, a polícia secreta do regime ameaçava-a dizendo que era preciso que tomasse cuidado pois aconteciam muitos acidentes diários.

"Quando tive o acidente, pensei que era uma coincidência. Mas uns dias depois fui outra vez ao interrogatório e a pessoa ao lado da polícia secreta insistia: "Realmente existem acidentes diários, não é?"" Herta Müller ofereceu logo a bicicleta a uma amiga e nunca mais quis saber dela. "Até hoje não consigo andar de bicicleta. Isto está sempre comigo. Quando era uma criança adorava andar de bicicleta na aldeia. Mas, hoje, a bicicleta para mim está ocupada por esse evento. Sei muito bem que isso, em Berlim, não me pode acontecer. Mesmo assim [este medo] está sempre comigo, este é só um entre muitos exemplos que vos podia dar de como as vivências do dia-a-dia fazem sempre relembrar [o passado]."

Cortar e colar

Para a escritora, a exposição serve para que as pessoas saibam que ela "não caiu do céu romeno" e que percebam o seu contexto familiar (o pai foi oficial das SS e a mãe foi deportada para os campos de trabalho forçado na União Soviética) e o contexto da sua obra. Além de vídeos, a mostra tem reproduzidos em placards documentos e fotografias pertencentes à família de Herta Müller e também várias das colagens que a escritora tem feito desde há mais de 20 anos. São papelinhos com palavras e imagens e no início até os chegava a enviar pelo correio com algumas frases escritas no verso como se fossem postais. Quando está mais envolvida na escrita dos seus textos em prosa, a produção de colagens abranda ou é mesmo interrompida. No entanto, há alturas em que chega a fazer até cinco colagens por dia.

"Por vezes, alguns cartões iniciados ficam parados durante dias ou meses, até ser encontrada a continuação ou a finalização apropriada. O pior, diz Herta Müller, é quando uma palavra cai ao chão e desaparece. Ou quando já não há espaço suficiente no cartão", é-nos explicado na exposição.

Não é a primeira vez que a autora de Já então a Raposa Era Caçador (D. Quixote) está em Lisboa. Nos anos 1990 veio mais do que uma vez participar em colóquios, mas desde que chegou, na segunda à noite, ainda não conseguiu aperceber-se das mudanças no país. Mal chegou à cidade e já lhe tinham roubado a mala. "Não foram portugueses que me roubaram a mala, são profissionais que se dedicam a isso", explicou.

Manifesto

Em Maio, com outros intelectuais, assinou o manifesto Nós Somos a Europa!, que foi iniciado por Ulrich Beck e Daniel Cohn-Bendit. "Trata-se da ideia de que a Europa não é meramente um assunto financeiro, mas é uma união cultural. Não é preciso estar a dizer isto sempre, é óbvio. Não sou perita em questões financeiras, também não sei qual seria o remédio mágico para combater a crise, mas seja qual for o funcionamento económico e financeiro, países como a Grécia e Portugal são parte da Europa." Lembrou que em países onde a situação financeira "vai de mal a pior" existe "um grande risco de surgimento de ideias nacionalistas" e de enraizamento do pensamento de que "o Estado tem de dirigir e fazer tudo por nós, pondo de parte o acto individual". "Evidentemente, isto é um grande perigo para a liberdade de uma sociedade. Aqui é que alguma literatura pode ajudar um pouco a que isso não aconteça."

O romance Já então a Raposa Era Caçador foi escrito há 20 anos. É baseado na sua própria experiência na Roménia, país em relação ao qual Herta Müller continua a ter uma posição muito crítica. "Nos últimos meses houve bastantes acontecimentos na Roménia, como aquele referendo [à impugnação do Presidente] que me parece um golpe de Estado. E se vemos bem os meios e os métodos empregues é realmente assustador. Para mim, a Roménia, nos últimos meses, perdeu toda a confiança. É uma pena", lamentou.

A obra vai ser apresentada quinta-feira, às 18h30, no Goethe-Institut, em Lisboa, com uma conversa entre a Nobel e a escritora portuguesa Lídia Jorge, moderada pelo tradutor e ensaísta João Barrento. E para quem pensa que a vida da escritora mudou muito depois de 2009, desengane-se. Quando está a escrever, não está a pensar que é Nobel e o prémio também não a ajuda nada na hora de escrever. "Quando vejo o papel em branco, o Prémio Nobel diz-me adeus!", diz a rir-se. "É tudo igual ao que era antes."

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