Aqui vivem pessoas, gritam os cartazes no Bairro de Santa Filomena
A “identidade” do bairro de Santa Filomena, na Amadora, mudou. Hoje vive entre escombros. Os moradores protestaram e imploraram. De nada serviu. A Câmara da Amadora avançou com o projecto de erradicação deste bairro nos dias 26 e 27 de Julho, deixando o trabalho restante para este mês. Porém, ainda há quem acredite na vida do bairro. E afixou-a em cartazes nas fachadas em ruínas. Enormes fotografias de moradores espreitam por todo o lado.
Onde antes existiam casas preenchidas de vida encontra-se agora um “tapete” de destroços. Restos de tijolo, cimento e cabos eléctricos, entre outros despojos, que criam uma estranha banda sonora debaixo dos sapatos. Crak, Clot, Clap, “canta” o piso incerto. Porém, não foi só as casas que “caíram”, mas também o ânimo dos moradores. As pessoas ficaram mais “desligadas, mais egocêntricas e mais pessimistas”, explicou Eurico Cangombi, representante dos moradores. Muitos dos que foram despejados recusam-se a voltar aquele lugar. Atingiram a “alma” do bairro.
Contudo, uma iniciativa de dois jovens voltou a dar energia para unir os esforços da comunidade local. Ana Santos e Diogo Doria são alunos finalistas do curso de design de comunicação na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, que ficaram tocados pelas imagens divulgadas durante a primeira fase de demolição do bairro da Amadora.
Desde essa data, decidiram ajudar o bairro. Inspirados no trabalho que o artista francês JR fez nas favelas brasileiras, aplicaram o mesmo conceito — fotografias gigantes dos moradores, coladas nas fachadas das suas casas. Uma mensagem nas entrelinhas: Aqui vivem pessoas.
“Queríamos que quando vierem deitar isto abaixo, esses indivíduos vejam as pessoas que estão a deixar de rastos”, sublinhou Ana Santos ao PÚBLICO. “A maior preocupação destas pessoas é ter um tecto para viver. Muitas delas até gostariam que o bairro fosse abaixo, desde que saíssem daqui com alguma estabilidade e conforto”, acrescentou.
Como qualquer estranho ao local, é preciso fazer pequenos passos de aproximação. “No primeiro dia, não entrámos no bairro. Ao segundo, fomos até à entrada, e assim sucessivamente. Começámos a vir vários dias por semana”, descreveu Diogo Doria.
São dez fotos em grande formato, que agora preenchem as fachadas dos restos de casas demolidas ou das casas que estão para demolir. Em oito delas podem-se ler excertos doo artigo 65 da Constituição portuguesa: “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.”
Segundo alguns moradores, o Programa Especial de Realojamento (PER) está fora de “validade”. O que para a autarquia local é entendido como um processo louvável, para alguns moradores é uma violação dos direitos humanos.
O problema da maioria das pessoas é que vive no bairro há pouco tempo, ou pelo menos, depois de 1993, altura em que foi feito um recenseamento nos vários bairros da Amadora. Segundo esse levantamento, 562 agregados familiares, residentes em 442 habitações precárias, iriam necessitar de realojamento. No total, seriam 1945 pessoas que teriam de sair. Mas o recenseamento que serve de base ao Programa Especial de Realojamento foi feito há 20 anos e muitas das pessoas que agora vivem em Santa Filomena ainda não ali residiam nessa altura. Por não estarem incluídas nesse levantamento, agora não têm direito a ser realojadas.
Eurico, representante dos moradores do bairro, mostrou as “entranhas” do espaço — ou pelo menos o que resta delas. É como um labirinto de caminhos estreitos e casas que as crianças usam como o seu parque de diversões privado.
As casas não têm forma arquitectónica regular e muitas vezes o acabamento exterior nunca foi terminado. Não existiu dinheiro para tal. Contudo, na casa do senhor Zé — em risco de despejo e retratado nas fotografias — as necessidades básicas estão garantidas. Cabo-verdiano, mora no bairro há seis anos. Ficou com a casa de um antigo morador que foi para os EUA. Incapacitado de trabalhar por motivos de saúde, recebe mensalmente do Estado 74 euros. Não tem para onde ir.