Louvor e questionação de Emmanuel Nunes
Emmanuel Nunes foi sem dúvida um dos autores mais destacados da criação musical nas últimas quatro décadas. Impõe-se reconhecer a sua grandeza, embora a sua inscrição na actividade musical em Portugal não possa também deixar de ser questionada, tendo mesmo sido nalguns momentos altamente polémica.
Discípulo de Fernando Lopes-Graça, Nunes radicou-se em Paris em meados dos anos 60, inclusive também por motivos políticos. Como tantos outros compositores dessa época, absorveu exaustivamente o Penser la musique aujourd"hui de Pierre Boulez, compositor que com Karlheinz Stockhausen viria a ser um dos mais influentes na sua criação. Era uma concepção da história da música implicando que os conceitos de composição tinham necessariamente de passar pela ruptura com a tonalidade funcional e o dodecafonismo da Escola de Viena, sobretudo de Webern, e pela radicalização dessa herança no serialismo integral da vanguarda do segundo pós-guerra, com Boulez e Stockhausen como chefes de fila, e enfim pelo pós-serialismo, em que Nunes sempre se inscreveu.
Pela situação periférica do país e pelo isolamento imposto pela ditadura, o meio musical português permaneceu alheio às mutações do pós-guerra. A introdução da actualidade estética verificar-se-ia apenas nos anos 60, com Jorge Peixinho e depois Emmanuel Nunes. Mas enquanto Peixinho optou por voltar para o país e tentar do interior alterar as condições da criação e difusão musicais, Nunes permaneceu sempre no eixo internacional hegemónico da música contemporânea, franco-alemão, e até mais precisamente entre Paris e Colónia.
A estreia de Purlieu para cordas em 1972 na Gulbenkian foi um momento inolvidável da criação musical contemporânea em Portugal. A estreia do extraordinário Ruf no Festival de Donaueschingen em 1977 valeu-lhe a consagração internacional. Cimentada essa nomeada, Nunes seria objecto de um apoio ímpar por parte do Serviço de Música da Gulbenkian, instituição também ela única na apresentação da música contemporânea em Portugal. Sucederam-se-lhe as encomendas e iniciaram-se também os workshops de composição por ele orientados, que sem dúvida, pelo menos nos primeiros anos, muito contribuíram para uma inédita renovação no panorama composicional em Portugal.
A persistência desta situação ao longo dos anos levou à questionação de um "favoritismo". Mesmo se no caso do próprio Nunes a sua reputação internacional seria justificativa da situação de privilégio, já era bem mais discutível a extensão do apoio a alguns discípulos, dos quais de resto, apenas um, Pedro Amaral, se viria a emancipar, os outros sendo meros epígonos. Mas seria a estreia da ópera Das Märchen no São Carlos em 25-01-2007 que daria azo a uma polémica sem precedentes.
Numa situação de conflito com o então director do teatro, Paolo Pinamonti, seria mesmo Nunes a anunciar que aquele seria substituído, o que se veio a confirmar. O então secretário de Estado da Cultura, Mário Vieira de Carvalho, amigo de longa data do compositor e seu destacado defensor como crítico e produtor discográfico, fez mobilizar meios inéditos para essa estreia, incluindo a transmissão televisiva em directo em diversos locais, o que afinal suscitou um efeito de ricochete na imagem pública de Nunes.
O título de uma monografia publicada pelo Centro Cultural da Gulbenkian em Paris, Emmanuel Nunes, compositeur portugais (e biografia escrita pela sua mulher, Hélène Borrel), acaba, aliás, por indiciar a ambivalência da sua posição, objecto de um favorecimento único como "compositor português" - apesar de se sentir como um "turista" no seu país de origem - mas de há muito reconhecido com integrante do meio musical francês.
Mas a questionação do seu estatuto não pode também, de modo algum, obscurecer o reconhecimento da sua criatividade composicional, mormente no domínio das grandes formas e meios orquestrais e da espacialização do som. Depois de Ruf, o outro pináculo da sua produção foi o assombroso Quodlibet, obra estreada no Coliseu dos Recreios de Lisboa - sala onde Nunes enquanto jovem tinha assistido a muitos concertos - em 11-05-91 e inspirada nas possibilidades acústicas da sala, com o público em torno de um conjunto instrumental mas também rodeado de outras fontes sonoras, aliás, com músicos deslocando-se entre diferentes locais.
Quodlibet é também uma obra representativa do profundo interesse de Nunes pelo uso da electrónica em tempo real, característica saliente da sua música desde meados dos anos 80, e desenvolvida no IRCAM, instituto fundado por Boulez em Paris. Musik der Frühe, Nachtmusik ou o tríptico Lichtung são outros exemplos, por vezes à custa de recusarem ao auditor a possibilidade de percepção de um trajecto, mas representativos de um pensamento musical complexo e multifacetado, sem dúvida distintivo de um grande compositor.