A guitarra de Jack White e as suas amigas

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White mostrou no Coliseu de Lisboa que é um monstro da guitarra MIGUEL MANSO

O problema - se assim lhe podemos chamar - que Jack White enfrentará na sua carreira a solo, iniciada este ano com Blunderbuss, ficou bem espelhado quando anteontem deixou o palco do Coliseu dos Recreios ao fim de uma hora e pouco de vertigem eléctrica: o público, que lotou por completo a sala, e ansiava pelo regresso para um encore, desatou a berrar "tum-tum-tum-tum-tum-tum-tum", emulando a linha de guitarra de Seven Nation Army, a canção dos White Stripes (a mais popular das anteriores bandas de Jack White) que se transformou num hino. Onde quer que ele vá, por mais anos que passem, essa canção há-de persegui-lo.

Quando os White Stripes surgiram, com o álbum homónimo, no final do século XX, ninguém se lembraria de aventar que o seu líder iria um dia atingir esta condição de ícone das massas - eram uma banda de culto que os fãs imaginavam "sua". Pensando bem, o estrelato estava lá em potência: a condição de duo levava-os a serem objectivos e ferozes a cada canção (não se desperdiçava uma nota), o visual era pensado e a percentagem de riffs infecciosos elevadíssima.

À medida que os Stripes foram crescendo, tornou-se notório que o minimalismo a que estavam votados (apenas guitarra e bateria) os limitava e acabaram por introduzir novos instrumentos - as aventuras subsequentes de White, nos Raconteurs ou nos Dead Weather, mostraram-no ansioso por explorar todas as vertentes possíveis do rock. A solo, em Blunderbuss, o blues é a sua matriz, ainda mais que nos White Stripes, e White surge como um respigador de cada subgénero alguma vez criado do folclore americano.

Mas o mais interessante é verificar como as canções de Blunderbuss crescem ao vivo. White rodeou-se de uma banda tremenda, com um baterista monstruoso, teclista, contra-baixista, um homem na slide-guitar que também toca violino, outro na pandeireta, harmónica e cordofones vários. As canções enchem, há espaço para jams controladas e temas como I Guess I Should Go To Sleep soam mais intensos ao vivo, com a pianola à cowboy a ganhar protagonismo. Mesmo Love Interruption, que em disco não é propriamente uma explosão eléctrica, larga faíscas por todos os lados.

White, ao contrário de muitas estrelas estabelecidas que a solo se escondem nos temas da banda de sucesso a que pertenceram, não fugiu a Blunderbuss (o prato principal da noite), embora não tenha tido pejo em ocasionalmente recuar na discografia para repescar uma ou outra canção - das gravadas pelos White Stripes, We"re Going To Be Friends e Hotel Yorba foram majestosas, em particular a última: com um ritmo hillbilly muito à Johnny Cash e a slide guitar a brilhar, parecia um comboio sem freios a atravessar a planície largando fumo.

White também inseriu temas dos Raconteurs e dos Dead Weather lá pelo meio e o resultado deste intercalar de canções extra-Blunderbuss com as do disco a solo foi uma demonstração inequívoca de quantos trilhos da música americana este rapaz já percorreu. A banda assenta-lhe bem, criando camadas e camadas de som, harmonias, mudando de género e ritmo com uma facilidade que impressiona.

Claro que White, já num encore, teve de acabar o concerto com Seven Nation Army - e, apesar de a ter tocado muito bem, sim senhor, fica a impressão de que ali estava em velocidade de cruzeiro, e que o que lhe dá verdadeiramente prazer é menos o rock do que as variações mais obscuras do blues, e transformá-las em suor mercê de um espancamento às seis cordas. Está transformado num monstro da guitarra e mesmo a solo tem canções à altura - razões para estar optimista quanto ao futuro.

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